1. A Igreja Católica está em alta! Foi
a exclamação de um amigo ao mostrar-me, numa rua do Porto, a primeira página do
jornal, Le Monde. No Vaticano, está o Papa Francisco, António Guterres no topo
das Nações Unidas e o episcopado francês surge, na praça pública, com um grito
de alarme para que os responsáveis da direita e da esquerda reencontrem o
verdadeiro sentido da política. A laicidade do Estado é um quadro jurídico que
deve permitir a todos - crentes de todas as religiões e não-crentes - viverem
juntos, com as suas diferenças.
Não deitei água fria naquela euforia. Ele tinha vivido,
desolado, o inverno da Igreja desde os anos 80 do séc. XX e com melancolia a
mediocridade das lideranças do catolicismo português. Fomos conversar.
É um facto que o Papa Francisco é uma figura mundialmente
respeitada. Não apenas pelo seu empenhamento na reforma da Igreja, mas
sobretudo porque esse esforço não se destina a fixar-se em questões da
instituição ou baixar os braços dos adversários e acusadores.
Quando ele procura levar os católicos a ver o mundo a partir
dos excluídos, não é para aumentar os diletantes que discutem a irradicação
mundial da pobreza no mundo, mas nada fazem para que isso aconteça. O que lhe
importa é convocar as capacidades de todas pessoas - seja qual for a sua
ideologia ou religião – para uma política de serviço universal a partir das
comunidades e iniciativas locais.
O bem da Igreja Católica não é a sua-auto glorificação. Esse
é o seu funeral. Uma Igreja auto referente perde-se de Deus e do mundo, isto é,
de Jesus Cristo. A Igreja está em alta quando é guiada pela liturgia do
lava-pés e pela ética samaritana.
Bergoglio insiste que é satânica a invocação de Deus para
matar. Sabe que temos muitos testemunhos desses na Bíblia. Espero que ninguém
se lembre de a expurgar desses horrores. Revelam aquilo que os seres humanos
são capazes: atribuir ao supremo bem, a Deus, o que há de pior. Ainda no
domingo passado, certamente com a intenção de mostrar a necessidade da
persistência na oração, os seleccionadores das leituras para a Eucaristia
escolheram uma passagem tenebrosa do livro do Êxodo. Moisés, com a vara de Deus
na mão, pôs Josué a combater o dia todo, até ao pôr-do-do sol, desbaratando
Amalec e o seu povo, ao fio da espada.
Estes liturgos não se dão conta de que se tornam
colaboradores satânicos dos militantes do Daesh (Estado Islâmico).
Os pecados das religiões tiveram sempre sábios e profetas
para os denunciar, fustigar e apelar à conversão a um Deus de pura
misericórdia. Bergoglio procura algo mais: criar uma cultura, uma atitude de
vida e pensamento que, sempre que se fale de Deus, de pessoas e instituições
religiosas, se pense em nascentes de bondade, de misericórdia e serviço,
sobretudo dos marginalizados. É uma tarefa longa. Quando este Papa fala de uma
Igreja de saída, sabe que está com Jesus Cristo a continuar o estilo de vida de
muitas mulheres e homens que fizeram da sua existência um dom.
2. A Igreja católica está em alta
quando a palavra igreja evoca o conjunto dos cristãos e, neste caso, o conjunto
dos católicos. O pluralismo cristão e católico não é pecado. As tentativas de
obrigar os católicos a lerem todos pela mesma cartilha, pelo mesmo catecismo,
em nome da unidade, são a violência da unicidade, da ditadura, do puro vazio.
Longa tem de ser a aprendizagem do diálogo no interior da Igreja, para que toda
ela se confronte, hoje, com os problemas de toda a sociedade, na diferença
legítima das suas sensibilidades, mas trabalhando para vencer o abismo entre os
poucos muito ricos e os muitos muito pobres. É um caminho de conversão e sem
esse processo não é possível falar da generalização de direitos e deveres humanos.
O destino universal dos bens pode encontrar muitas modalidades de realização,
mas não muitas formas de o negar.
A Igreja está em alta não por um católico, no caso o
português António Guterres, ter sido escolhido para Secretário-Geral da ONU.
Este facto poderia ser interpretado como a glória de ver um católico
reconhecido e consagrado no topo da mais alta carreira política, a nível
mundial. Uma vaidade. Está em alta porque Guterres, segundo as próprias
declarações, não pretende ser o líder do mundo, mas com determinação e
humildade, ser apenas mediador e facilitador da causa da Paz. Como
Alto-Comissário da ONU para os Refugiados, perante situações de horror, chegou
à conclusão de que era necessário ter possibilidade de uma intervenção
política, ao mais alto nível.
O que se deve pedir à Igreja não é que ela produza ambiciosos
de dominação económica, política ou religiosa, mas que as pessoas, seja onde
for e segundo as suas possibilidades, desenvolvam o gosto de servir.
3. Em 1991, perante um tempo de
desilusão e refluxo das grandes ideologias, os bispos de França insistiram que
a política é tarefa de todos. Em 1999, produziram um célebre documento sobre a
reabilitação e a regeneração da política, que o Papa Francisco recordou e
recomendou no começo do seu mandato. No dia 13 deste mês, publicaram um texto,
que já deu brado, sobre o sentido da política num mundo em mudança, mas esta
questão fica para o próximo Domingo.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 23.10.2016
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