26 março 2017

UMA DISCUSSÃO BRAVA SOBRE A CEGUEIRA


      1. Já fui solicitado, várias vezes, para acompanhar peregrinações à Terra Santa. Nunca me foi possível e nunca fiquei com muita pena. Não me desagradaria ter os olhos povoados com esses lugares. Até teria algumas vantagens para ler os Evangelhos e conhecer a geografia das viagens missionárias de S. Paulo. Não tenho nada contra o chamado ”turismo religioso” e os seus negócios. Negócio é negócio e pode dar trabalho honesto a muita gente.
     Confesso que a minha branda alergia resulta da própria leitura dos atrevidos textos do Novo Testamento acerca do culto, dos seus tempos e lugares sacralizados.  
     No passado Domingo, S. João não deixou escapar absolutamente nada[1]. Desvalorizou, de forma radical, a importância dos templos: o de Jerusalém, dos judeus, e o de Garizim, dos samaritanos. A água do poço do patriarca Jacob não tem mais virtudes do que qualquer outra água. A razão teológica que Jesus apresenta não deixa margem para qualquer deriva: “Está a chegar a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade. São estes adoradores que o Pai procura. Deus é espírito. Os que o adoram têm de o adorar em espírito e verdade”.
     A samaritana ficou muito espantada com esta desenvoltura de um judeu que se sentia bem a conversar com ela, a herética e, aparentemente, sem se importar muito com a sua abundância de maridos. Percebeu que estava ali alguém que via o mundo às avessas. Para ela era um profeta de tempos novos.
     Ficou completamente seduzida. Deixou o seu cântaro e foi à cidade dizer às pessoas: vinde ver um homem que me disse tudo quanto eu fiz! Não será ele o Cristo? Saíram da cidade e foram confirmar.
     Aqui, o narrador introduz um parêntesis. Os discípulos, que tinham ido comprar alimentos, não perceberam nada do que se estava a passar e não viram com bons olhos o Mestre a conversar, a sós, com uma mulher e, para mais, samaritana. A situação era duvidosa para o bom nome de ambos.
     O Mestre, muito cansado, não mostrou interesse nenhum pelo almoço, o que levantou suspeitas aos discípulos. De facto, Cristo já estava noutro horizonte. Naquele encontro que os discípulos não perceberam, viu a revelação de um Deus que não é só para um povo escolhido: levantai os olhos e vede os campos como já estão maduros para a ceifa e os discípulos iriam ter a alegria de colher o que outros semearam.
     Para os costumes da época, era estranho que os samaritanos se deixassem conduzir por uma mulher. Ficaram tão entusiasmados com o encontro que ela lhes proporcionou que pediram ao hóspede para ficar com eles. No final desabafaram com a samaritana: “ já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o salvador do mundo”.
     É a primeira vez que esta declaração aparece no Evangelho de João. Nós somos herdeiros de uma fórmula que, por mau uso de séculos, parece gasta. No entanto, foi na Samaria que Jesus saltou o muro que separa os salvos dos perdidos, os bons dos maus, os de Deus e os do maligno. De uma fronteira de inimizade, entre judeus e samaritanos, fez um só mundo, salvo do ódio e do desprezo.
     2. Para este Domingo foi escolhida a narrativa da cura de um cego de nascença[2]. É uma controvérsia muito longa, muito estúpida e muito cega. Tentaremos, depois, mostrar a sua actualidade. Antes, importa ver o ridículo. Jesus, ao passar, viu um homem cego de nascença. Os seus discípulos reproduziram a ignorância generalizada: Rabi, quem pecou, ele ou os seus pais para que nascesse cego? Jesus não tinha resposta para uma questão idiota. Tudo era visto como prémio ou castigo. Quem estava bem, era amado de Deus, quem estava mal é porque tinha feito algum pecado, o próprio ou alguém da sua família. Não havia lugar para qualquer interrogação para além desta moral.
     Jesus não entrou nessa teologia barata, pois, se existe um mal, só damos glória a Deus tentando libertar a pessoa dessa situação. Foi o que Jesus fez de forma pouco ortodoxa, quanto ao método e quanto ao dia. O método não foi discutido. O azar foi o ter posto a ver um cego de nascença ao Sábado! Não era a primeira vez que Jesus se metia em sarilhos por violar esse dia sacratíssimo, reservado à glória de Deus, mesmo contra a felicidade humana. Que o homem continuasse cego, o problema era dele, azar, agora violar o Sábado era cometer um crime contra a melhor das religiões, que até colocava Deus a descansar ao Sábado!
     Deixemos aos judeus lidar, à vontade, com esses preceitos religiosos. Seria lastimável pretender imiscuir-se nas suas convicções. No Evangelho de S. João esses preceitos, como acontece nesta narrativa, não servem a libertação humana. Jesus disse, de muitas maneiras e, por vezes, à letra e ao espírito, que o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. Era a derrota do fundamentalismo religioso, não só do seu tempo, mas de todos os tempos e para todos os tempos, seja qual for a religião, sejam quais forem as suas mediações. Cego será quem não quiser ver isto.
     3. Porque teimar em ler na missa uma discussão tão azeda sobre a cegueira que pode invadir o culto? É porque esta questão é também uma questão da Igreja. Actualíssima. Andam por aí algumas pessoas e movimentos a dizer que este Papa, por querer alterar preceitos desumanos, coloridos de falsa religião, é herético. O Direito Canónico não pode pretender que os fiéis existam para o observar. É o Direito Canónico para os fiéis ou são os fiéis para o Direito Canónico?
     Isto não acontece só na Igreja e nas religiões. Ao longo dos séculos, foram realizadas grandiosas revoluções científicas, técnicas e políticas. As políticas e todas as outras esqueceram que lhes incumbe a vocação e o dever de usar os seus poderes, não para dominar, mas para servir a humanização da vida de todos. Quando estão ao serviço de desígnios de dominação, perdem-nos, não nos salvam. 
Frei Bento Domingues, O.P.

in Público, 26.03.2017




[1] Jo 4, 1 – 46

[2] Jo 9, 1 - 41

19 março 2017

O Nós Somos Igreja-Portugal
tem o prazer de anunciar a
CONFERÊNCIA – DEBATE

MARIA MADALENA,
APÓSTOLA DOS APÓSTOLOS
COM A PARTICIPAÇÃO DAS TEÓLOGAS

TERESA TOLDY
E
IR. MARIA JULIETA MENDES DIAS

MODERADORA: ALFREDA FERREIRA DA FONSECA
INTRODUÇÃO: PE. JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

25 DE MARÇO DE 2017 ÀS 15.30 H
CAPELA DO RATO
CÇ. BENTO DA ROCHA CABRAL 1 B (AO LG. DO RATO)
1250-047 LISBOA

NÃO REZEM COMO OS GENTIOS

       1. Dizem-me que, hoje, no campo religioso, a espiritualidade é a sua expressão mais chique e o esoterismo, a mais democrática pela numerosa oferta de expedientes, sem os aborrecidos mandamentos das religiões.
    Há espiritualidades para tudo e mais alguma coisa. Cada uma das ordens e congregações religiosas reclamam-se de uma espiritualidade original, marca da sua identidade. Os diferentes movimentos do laicado católico alargaram esse pluralismo ao apresentar e justificar os seus caminhos e mediações pretensamente inconfundíveis.
    Redescobriu-se, no diálogo inter-religioso, que o divino Espírito não é propriedade privada de ninguém. Existem movimentos agnósticos e ateus que se reclamam de uma profunda sabedoria espiritual. Mas ficava sempre alguma coisa de fora. A chamada espiritualidade holística é tão abrangente que nela há lugar para tudo.
    O todo é inabarcável e, como diz o Novo Testamento, o Espírito sopra quando e onde quer, sem pedir licença a ninguém, resistindo a ser domesticado. As classificações humanas dos carismas não podem impedir, no seu catálogo, a espiritualidade dos insatisfeitos.
    2. Jesus Cristo não pertencia à tribo sacerdotal. Era um leigo bastante sóbrio no tocante a expressões cultuais. Detestava o exibicionismo da religião do seu tempo e do seu meio. Os seus discípulos não percebiam as razões da sua discrição. Segundo S. Lucas, até se queixavam de serem um grupo sem livro de orações: Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou os seus discípulos[i].
    O anti exibicionismo do Nazareno era radical: «Quando orardes, não sejais como os hipócritas. Eles gostam de fazer orações pondo-se em pé nas sinagogas e nas esquinas, a fim de serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora ao teu Pai ocultamente e o teu Pai, que vê o que está oculto, te recompensará[ii]».    
    Na mesma passagem, S. Mateus destaca que o Mestre não quer nada com os moinhos de orações. São os gentios que insistem na vã repetição, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. O vosso Pai sabe do que precisais antes de lho pedirdes.
    A verdade da religião perde-se no vício do ruído e ganha-se no silêncio da escuta persistente.
    Não terá S. Lucas corrigido a extrema sobriedade de S. Mateus? Não me parece. Com pequenas diferenças, o Pai Nosso – resumo das grandes linhas e preocupações do Evangelho – é comum aos dois escritores. S. Lucas elabora, de facto, uma pedagogia completamente diferente. Criou uma parábola que parece dizer o contrário de Mateus. Serve-se da experiência do que muitas vezes acontece: só com muita insistência e aborrecida repetição se obtém resposta a um pedido incómodo.
    A narrativa pode dar a ideia de que Deus é surdo, que não está para se incomodar, insensível à urgência de uma pessoa aflita. Mas a parábola é, simplesmente, astuciosa. Dá um salto: a insistência na oração é fundamental, não para informar a Deus nem para o convencer, mas para nos convencermos da dificuldade que temos em nos abrirmos ao seu desígnio que é infinitamente melhor, para nós, do que os nossos cálculos mesquinhos. Precisamos de muita insistência para converter o nosso desejo ao desejo amante de Deus. Precisamos de entrar na sua onda, na onda do seu espírito. Tudo o que se faz, em religião, é apenas para conseguir uma abertura que nos torne disponíveis para as exigências do Evangelho, segundo o Espírito de Deus.
    Neste sentido, podemos dizer que Jesus Cristo era um grande espiritual. O caminho e o baptismo de João serviram, apenas, para lhe mostrar que aquele não podia ser o seu caminho, nem aqueles banhos rituais e moralistas podiam trazer o Reino de Deus. Contam os evangelhos que ele entrou em oração – abertura da terra ao céu – e teve a experiência mística do dom do Espírito Santo. Foi uma divina declaração de puro amor, mostrando que não é do céu que poderá vir a condenação da terra[iii].
    3. As Igrejas cristãs, ao longo dos séculos, encarregaram-se de contrariar a sobriedade e o anti exibicionismo religioso de Jesus Cristo. Com ritos e ritmos diferentes, com música ou sem música, encheram livros e livros com orações para todas as horas, para todos os lugares e circunstâncias, a propósito e a despropósito.
Conheço muitas colecções de livros com as melhores e piores orações do mundo, com santos especializados, sempre de serviço, para todas as aflições e ocasiões, para todos os objectos perdidos e acções de graças para os casos bem sucedidos.
Sempre me pediram para não me rir, mesmo das expressões mais ridículas da religiosidade e da superstição. Diziam: se isso ajudar as pessoas a viver, a superar o desespero e a depressão, talvez não sejam mais prejudiciais do que o recurso permanente às farmácias e pode ficar mais barato.
    A oração exprime a condição humana, na sua verdade mais pura: o nosso limite e o desejo ilimitado de felicidade. Elevar a Deus o nosso pedido de socorro ou de acção de graças revela, para o crente, uma atitude saudável. Significa que acreditamos que não estamos sós, mas seria grossa asneira supor que Deus é o substituto da investigação científica, da organização do Estado, do bom funcionamento do ensino, do serviço nacional de saúde, de hospitais de qualidade, do funcionamento da Justiça, da solidariedade, etc. Jesus Cristo fez muitas curas e até andou sobre as águas do mar, mas não deixou a receita. Os seus gestos dizem que o mundo não tem de ser uma desgraça, mas somos nós os encarregados de cuidar da casa comum, habitável e bela.
    Deus não é tudo. A ideia de mundo criado supõe um mundo limitado e falível. Não vale a pena discutir se Deus não podia criar um mundo perfeito. Seria uma absurda réplica de Deus, Deus repetido.
A oração ajuda a reconhecer a verdade da nossa condição humana limitada, aberta à transcendência absoluta do Amor que nos pergunta: Que fizeste do teu irmão?
    Frei Bento Domingues, O.P.
    19. 03. 2017


[i] Lc 11,1-13
[ii] Mt 6, 5-13
[iii] Lc 3, 21-22 //

12 março 2017

A CADA ANO A SUA QUARESMA

1. A Quaresma deste ano está marcada por dois movimentos opostos: o da intensificação da Reforma da Igreja, anunciada no programa do Papa Francisco e o da contra-reforma, organizada e com sinais visíveis que mostrem quem está com uma e quem está com outra. Sabíamos que o hábito não faz o monge, agora querem convencer-nos que o cabeção e a batina fazem o padre. Quem se apresentar sem estes sinais não sabemos se está com o caminho aberto por Bergoglio ou não. Terá de o mostrar pelas suas opções pastorais e de vida pessoal. Quem exige que os fiéis se ajoelhem na missa durante a consagração e para receber a comunhão parece que não gosta muito do Vaticano II nem das ousadias do Papa Francisco. Dizem-me que certos párocos tentam resgatar a memória de lugares marcados na igreja, anteriores ao Concílio, mediante genuflexórios forrados para joelhos delicados. Parece que ainda não está previsto dividir o espaço das celebrações colocando as mulheres atrás e os cavalheiros à frente.
Quando se participa em missas solenes, com bispo ou cardeal, uma das distracções possíveis é a contagem das vezes que lhes põem e tiram o solidéu, a mitra e o báculo.
As novas tecnologias, como por exemplo iPads, tablets e e-readers – coisas que me ultrapassam -, estão a substituir missais e breviários, livros antigos muito veneráveis e pouco portáteis, com muitas vantagens económicas, com recursos imagísticos e musicais e prontos a servir, sem ter de incomodar grupos ad hoc para baptizados, casamentos e funerais e, ainda, um reportório de homilias previamente adaptadas aos públicos e pregadores mais diversos. Haverá quem diga, como a nordestina brasileira, quando na missa substituíram o latim pelo português: tiraram-lhe a decência.
É muito possível que isto possa suscitar um novo debate sobre simbologia e ritualidade litúrgica e seus dignos e indignos suportes.
2. Os recursos oferecidos pelos livros litúrgicos – ou as suas cópias, electrónicas ou não – para viver a Quaresma, tanto bíblicos como patrísticos, são uma verdadeira mina para o alimento espiritual e para a reflexão teológica, em função da transformação da vida nas suas diversas dimensões. Ao tentar fazer a ponte desse universo litúrgico com o mundo actual, podemos esquecer que sem as questões que nos surgem a nível pessoal, familiar, profissional, no contexto económico, político e cultural cairemos na tentação de colar duas realidades, tornando-as justapostas, sem se desafiarem mutuamente. Não se pode viver em dois mundos separados: algum deles sairá sacrificado. O cristianismo é incarnacionista: não há Deus por um lado e o itinerário humano por outro.
A Quaresma de cada ano, como Páscoa em devir, nunca é igual à do ano anterior, sobretudo quando vivemos num mundo em aceleradas mudanças, umas vezes para melhor, outras para pior. O Papa Francisco inaugurou a sua intervenção com um documento sobre a alegria do Evangelho, mas denunciando a suprema tristeza de uma economia que mata, quando só tem sentido como forma de desenvolvimento humano, sustentável, com todos e para todos. Crescem as faculdades de economia e gestão, os institutos de investigação económica. Há universidades católicas, muito cotadas, precisamente no âmbito da economia e da gestão. O Papa manifesta, continuamente, que outra economia é possível. Será que a economia é ininvangelizável, reino da divinização do dinheiro?
Na missa do passado Domingo, S. Mateus descreveu as tentações messiânicas de Jesus. Foram apresentadas como tentações
diabólicas, isto é, como solicitações para Jesus trair a sua missão, de forma demagógica ou populista, no seu estado mais puro, pela exibição do domínio económico, religioso e político. O diabo era muito religioso. Pedia para ser adorado. Se fosse adorado, acontecia, automaticamente, o milagre económico, religioso e político.
Para muitas pessoas, a narrativa das tentações é um faz de conta. Jesus era divino, não lhe custava nada sacudir as más solicitações. Foi só para nos dar exemplo.
Se fosse só para nos dar exemplo, não nos dava exemplo nenhum, pois nós somos humanos, falíveis e muitas vezes falidos. Se Cristo fosse apenas uma aparência humana, as suas tentações também não passariam de mau teatro. O Evangelho de S. Lucas, para mostrar que toda a sua vida foi tentada a trair a missão que livremente assumira, acrescenta: o diabo deixou-o até nova ocasião.
Se esta Quaresma nos ajudar a descobrir a condição humana de Jesus e os seus limites faremos uma das maiores conversões da história cristã.
Ao afastarmos tanto Jesus Cristo da condição humana, obrigando-o a não ser nosso irmão, teremos de encontrar santas e santos que sejam mais humanos do que ele, que estejam mais do nosso lado.
3. Descobrir que somos humanos vale bem uma Quaresma. Somos seres tentados. Tentados a trair a nossa condição. Temos dias em que somos capazes de tudo e outros em que julgamos tudo perdido. O mais corrente é a nossa mediocridade. Se não desistirmos dos apelos do Evangelho à nossa conversão, a vida será uma alegre trabalheira.
Na cristandade foram inventadas fórmulas para termos algumas férias: confessar-se ao menos uma vez por ano e comungar pela Páscoa da Ressurreição. Como quem diz: já que nem toda a gente pode ser santa, demos a todos a oportunidade de um mini-cristianismo.
Hoje, na Igreja, seja qual for a tendência das pessoas e dos grupos vamos descobrindo que fazer a vontade de Deus é a melhor coisa que nos pode acontecer. Porque se for o Deus de Jesus Cristo, só pode querer e trabalhar pela nossa alegria, sem nunca nos dispensar. Quando a palavra Deus suscitar a imagem ou a ideia de uma ameaça à nossa liberdade e à nossa criatividade, esse deus é o diabo, aquele que nos desvia de nós mesmos. A partir de Jesus, descobrimos que a única coisa que Deus nos quer é a nossa recriação, ir nascendo de novo, todos os dias, com ritmos diferentes para a nossa Páscoa eterna.
Como escreveu Agustina Bessa Luís, novo, só o que é eterno.
Frei Bento Domingues, O.P.
Público, 12.03.2017


05 março 2017

FÁTIMA DÁ PARA TUDO (3)

1. Fátima pode dar para tudo, mas não dá para todos! Mesmo a preços loucos, já é impossível arranjar onde dormir de 12 para 13, do próximo mês de Maio. Um antigo colega da Escola Apostólica telefonou-me indignado com esse tipo de observações: um verdadeiro peregrino não vai a Fátima para dormir. Vai para se sacrificar e rezar. Penitência e oração é o programa que os pastorinhos transmitiram, como pedidos de Nossa Senhora. Lembrou-me ainda como também ele e eu, pelos finais dos anos 40 do século passado, aguentamos várias vezes, ao relento, com um cobertor, a noite fria de 12 para 13. Quem é capaz de fazer centenas de quilómetros a pé também pode substituir alguns por uma noite ao relento. Agora, comercializada e aburguesada, tem de seguir a prática da lei da oferta e da procura. O turismo religioso é um negócio muito antigo no qual o substantivo e o adjectivo se ajudam numa tensão fecunda. É sabido que Jesus Cristo não gostava nada desse comércio. Os quatro evangelistas narram, por esse motivo, a sua indignação no átrio do Templo de Jerusalém: “Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no templo os vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas nos seus postos. Então, fazendo um chicote de cordas, expulsou-os a todos do templo com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas pelo chão e derrubou-lhes as mesas;  aos que vendiam pombas, disse-lhes: Tirai isso daqui. Não façais da Casa de meu Pai uma feira[i].
O meu confrade, Frei Henrique Urbano, professor de sociologia e antropologia numa universidade do Canadá e cofundador do Centro Bartolomeu de Las Casas, de Cusco, e um dos maiores investigadores da cultura Inca, morreu em Lima, em 2014. Fui seu colega no Studium Sedes Sapientiae, em Fátima, nos anos 50 do século passado. Tudo o que acontecia nas visitas ao Santuário e arredores alimentava o seu inesgotável humor, como vitória do riso sobre a estupidez. Numa das últimas passagens por Fátima repetia-me: o fenómeno da Cova da Iria é radicalmente antimarxista. Alí, a superestrutura criou todas as infraestruturas. Foi a crença, a ideologia religiosa, que criou uma cidade próspera, não só pela abundância de presenças religiosas permanentes, mas também com uma rede hoteleira importante no centro do país. Acolhe o religioso e o profano para congressos, reuniões, celebrações de todo o género. Para lá se dirigem, todos os anos, milhões de crentes e curiosos, vindos de todo o mundo.
2. Dos acontecimentos de 1917 sabemos o que é atribuído aos pastorinhos de Aljustrel. Só a Lúcia escreveu as suas memórias, tardias, em relação aos acontecimentos. Nada de especial. É sempre assim. O que espanta é a mediocridade das hermenêuticas desse fenómeno. Cansam. Quando pretendem teologizar ainda aumentam mais o aborrecimento. António Marujo e Rui Paulo da Cruz deram-se ao trabalho de elaborar uma obra diferente. Poderia chamar-lhe os heterónimos de Fátima[ii]. Porquê? Recolhem testemunhos dos documentos das aparições, estudos sobre o contexto dos conflitos entre a República e católicos, a pluralidade de leituras na Igreja Católica, diversas leituras da antropologia e da sociologia religiosa, voltam ao fenómeno das aparições e à beatificação dos pastorinhos, interrogam-se sobre a actualidade de Fátima, 100 anos depois.
Tudo isto poderiam ser, apenas, capítulos de um livro bem planeado.
Seria mais ou menos do mesmo. Mas não. Todos os temas são a várias vozes, bem identificadas, sem contaminações, mas também não são, apenas, vozes justapostas, de costas umas para as outras. A Senhora de Maio espera cumprir o que a escritora Lídia Jorge nela descobriu: “Oxalá este livro […] possa abrir o capítulo de uma discussão que convém ser serena na forma, mas não poderá evitar a contradição, o debate e o confronto aberto das ideias em face da crença. Debate que sempre ultrapassa os níveis da razão e da ciência – mas não os ignora -, esse patamar de confronto delicado tão difícil de alcançar em Portugal[iii]”.
Não posso saber como os entrevistados e os leitores vão reagir à reunião de tantas vozes tão diferentes. Pelo meu lado, só posso agradecer aos autores a fidelidade com que reproduziram o meu longo depoimento, Fátima a várias dimensões, de Janeiro de 2000. É, ainda hoje, o texto em que me reconheço plenamente.
3. Como já aqui escrevi, não pretendo saber o que o Papa Francisco virá dizer a Fátima. Importa, porém, estar atento às últimas disposições deste peregrino. Referindo-se às religiosas e religiosos – tão inflacionados em Fátima - pediu-lhes para não cederem à tentação da sobrevivência da vida consagrada e das suas instituições. A cedência a essa tentação torna-os estéreis, reaccionários, fechados lenta e silenciosamente, nas suas casas e nos seus esquemas. A tentação da sobrevivência faz-lhes esquecer a graça e transforma-os em profissionais do sagrado, mas não em pais, mães e irmãos da esperança a que fomos chamados, a profetizar[iv].
Bergoglio, por ocasião do número 4000 da revista Civiltà Cattolica, recebeu os padres jesuítas que nela trabalham e fez-lhes recomendações bem estimulantes. Quis sublinhar três palavras para irem em frente: desassossego, incompletude, imaginação. Não podendo explicitar a mensagem de cada uma delas, destaco, como ele próprio diz: a primeira palavra é Desassossego. Faço-vos uma pergunta: o vosso coração conservou o desassossego da busca? Só o desassossego dá paz ao coração de um jesuíta. Sem desassossego somos estéreis. Se quiserdes habitar pontes e fronteiras deveis ter uma mente e um coração desassossegados. Por vezes confunde-se a segurança da doutrina com a suspeita pela busca. Não seja assim para vós. Os valores e as tradições cristãs não são peças raras para fechar nos cofres de um museu. A certeza da fé seja, ao contrário, o motor da vossa busca[v].
Isto não é só para os jesuítas.

Frei Bento Domingues, O.P.
Público 05.03.2017





[i] João 2, 14-16
[ii] A Senhora de Maio. Todas as perguntas sobre Fátima. Temas e Debates, Lisboa, 2017.
[iii] Cf. Prefácio
[iv] Cf L’Osservatore Romano, 09.02.17
[v] Cf L’Osservatore Romano, 16.02.17