1. Já fui solicitado,
várias vezes, para acompanhar peregrinações à Terra Santa. Nunca me foi
possível e nunca fiquei com muita pena. Não me desagradaria ter os olhos
povoados com esses lugares. Até teria algumas vantagens para ler os Evangelhos
e conhecer a geografia das viagens missionárias de S. Paulo. Não tenho nada
contra o chamado ”turismo religioso” e os seus negócios. Negócio é negócio e
pode dar trabalho honesto a muita gente.
Confesso que a minha branda alergia resulta da própria
leitura dos atrevidos textos do Novo Testamento acerca do culto, dos seus
tempos e lugares sacralizados.
No passado Domingo, S. João não deixou escapar
absolutamente nada[1].
Desvalorizou, de forma radical, a importância dos templos: o de Jerusalém, dos
judeus, e o de Garizim, dos samaritanos. A água do poço do patriarca Jacob não
tem mais virtudes do que qualquer outra água. A razão teológica que Jesus
apresenta não deixa margem para qualquer deriva: “Está a chegar a hora – e é
agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade.
São estes adoradores que o Pai procura. Deus é espírito. Os que o adoram têm de
o adorar em espírito e verdade”.
A samaritana ficou muito espantada com esta
desenvoltura de um judeu que se sentia bem a conversar com ela, a herética e,
aparentemente, sem se importar muito com a sua abundância de maridos. Percebeu
que estava ali alguém que via o mundo às avessas. Para ela era um profeta de
tempos novos.
Ficou completamente seduzida. Deixou o seu cântaro e
foi à cidade dizer às pessoas: vinde ver um homem que me disse tudo quanto eu
fiz! Não será ele o Cristo? Saíram da cidade e foram confirmar.
Aqui, o narrador introduz um parêntesis. Os discípulos,
que tinham ido comprar alimentos, não perceberam nada do que se estava a passar
e não viram com bons olhos o Mestre a conversar, a sós, com uma mulher e, para
mais, samaritana. A situação era duvidosa para o bom nome de ambos.
O Mestre, muito cansado, não mostrou interesse nenhum
pelo almoço, o que levantou suspeitas aos discípulos. De facto, Cristo já
estava noutro horizonte. Naquele encontro que os discípulos não perceberam, viu
a revelação de um Deus que não é só para um povo escolhido: levantai os olhos e vede os campos como já
estão maduros para a ceifa e os discípulos iriam ter a alegria de colher o
que outros semearam.
Para os costumes da época, era estranho que os
samaritanos se deixassem conduzir por uma mulher. Ficaram tão entusiasmados com
o encontro que ela lhes proporcionou que pediram ao hóspede para ficar com
eles. No final desabafaram com a samaritana: “ já não é pelas tuas palavras que
acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o
salvador do mundo”.
É a primeira vez que esta declaração aparece no
Evangelho de João. Nós somos herdeiros de uma fórmula que, por mau uso de
séculos, parece gasta. No entanto, foi na Samaria que Jesus saltou o muro que
separa os salvos dos perdidos, os bons dos maus, os de Deus e os do maligno. De
uma fronteira de inimizade, entre judeus e samaritanos, fez um só mundo, salvo
do ódio e do desprezo.
2.
Para
este Domingo foi escolhida a narrativa da cura de um cego de nascença[2].
É uma controvérsia muito longa, muito estúpida e muito cega. Tentaremos,
depois, mostrar a sua actualidade. Antes, importa ver o ridículo. Jesus, ao
passar, viu um homem cego de nascença. Os seus discípulos reproduziram a
ignorância generalizada: Rabi, quem
pecou, ele ou os seus pais para que nascesse cego? Jesus não tinha resposta
para uma questão idiota. Tudo era visto como prémio ou castigo. Quem estava
bem, era amado de Deus, quem estava mal é porque tinha feito algum pecado, o
próprio ou alguém da sua família. Não havia lugar para qualquer interrogação
para além desta moral.
Jesus não entrou nessa teologia barata, pois, se existe
um mal, só damos glória a Deus tentando libertar a pessoa dessa situação. Foi o
que Jesus fez de forma pouco ortodoxa, quanto ao método e quanto ao dia. O
método não foi discutido. O azar foi o ter posto a ver um cego de nascença ao Sábado! Não era a primeira vez que Jesus
se metia em sarilhos por violar esse dia sacratíssimo, reservado à glória de
Deus, mesmo contra a felicidade humana. Que o homem continuasse cego, o
problema era dele, azar, agora violar o Sábado era cometer um crime contra a
melhor das religiões, que até colocava Deus a descansar ao Sábado!
Deixemos aos judeus lidar, à vontade, com esses
preceitos religiosos. Seria lastimável pretender imiscuir-se nas suas
convicções. No Evangelho de S. João esses preceitos, como acontece nesta
narrativa, não servem a libertação humana. Jesus disse, de muitas maneiras e,
por vezes, à letra e ao espírito, que o Sábado é para o ser humano e não o ser
humano para o Sábado. Era a derrota do fundamentalismo religioso, não só do seu
tempo, mas de todos os tempos e para todos os tempos, seja qual for a religião,
sejam quais forem as suas mediações. Cego será quem não quiser ver isto.
3.
Porque teimar em ler na missa uma discussão tão azeda sobre a cegueira que pode
invadir o culto? É porque esta questão é também uma questão da Igreja.
Actualíssima. Andam por aí algumas pessoas e movimentos a dizer que este Papa,
por querer alterar preceitos desumanos, coloridos de falsa religião, é
herético. O Direito Canónico não pode pretender que os fiéis existam para o
observar. É o Direito Canónico para os fiéis ou são os fiéis para o Direito
Canónico?
Isto não acontece só na Igreja e nas religiões. Ao
longo dos séculos, foram realizadas grandiosas revoluções científicas, técnicas
e políticas. As políticas e todas as outras esqueceram que lhes incumbe a
vocação e o dever de usar os seus poderes, não para dominar, mas para servir a
humanização da vida de todos. Quando estão ao serviço de desígnios de
dominação, perdem-nos, não nos salvam.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 26.03.2017