1. Enviaram-me,
com expressa tristeza, uma entrevista com a enigmática pergunta do título desta
crónica. Que se passa afinal?
Por outro lado, esse cardeal, em nome da união da Igreja, em
torno do Sumo Pontífice, trabalha na sua desagregação. Está decididamente
contra a orientação social de Bergoglio: enquanto a Igreja “não conseguir
dissociar-se dos problemas humanos”, ela acabará por “falhar na sua missão”. Transforma
o programa da Evangelii Gaudium numa
caricatura: “A Igreja está gravemente equivocada quanto à natureza da crise
real, se ela acha que sua missão essencial é oferecer soluções para todos os
problemas políticos relacionados com a justiça, a paz, a pobreza, a recepção de
migrantes, etc… enquanto negligencia a Evangelização”. Ora, o Papa Francisco,
pelo contrário, inclui na referência vital a Cristo a luta contra a pobreza
imposta. Foi o próprio Jesus, ao apresentar o seu Evangelho, o seu programa de
libertação dos oprimidos e marginalizados, que o identificou com o
acontecimento da graça de Deus, um ano jubilar.
Não foi de modo clandestino, nem de repente, nem contra a
sua vontade que Bento XVI deixou de ser o Papa da Igreja Católica Romana. Não
foi sob pressão que, a 10 de Fevereiro de 2013, se pronunciou expressamente: declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, sucessor de São Pedro.
Justificou
publicamente a sua decisão: as suas forças, devido à idade avançada, já não lhe
permitiam exercer, adequadamente, o pontificado. Foi destacada a
dignidade desse gesto sem precedentes desde Gregório XII, em 1415 – no contexto
do Grande Cisma do Ocidente – e o primeiro a renunciar, sem pressão externa, desde
o papa Celestino V, em 1294.
Seguiram-se os procedimentos previstos no Vaticano e foi
eleito o Papa Francisco, a 13 de Março de 2013. Não temos dois Papas, como a
ignorância e obscuros interesses procuram fazer crer. Sob o ponto de vista
institucional, o Papa Bento XVI morreu.
Acabou.
Permitiu, no entanto, fazer supor que, ao ficar por perto, iria
ser o conselheiro obrigatório do novo inquilino. Decidiu, de facto, continuar a residir dentro da
Cidade do Vaticano, num antigo convento adaptado para o receber.
Não foi boa ideia, segundo Andrea Grillo, professor de Teologia no Pontifício Ateneu Sant’Anselmo (Roma).
O Bispo emérito deve afastar-se do Vaticano e calar-se para sempre. Só nestas
condições é possível configurar uma real sucessão e não dar a enganosa ideia de
uma coabitação de dois Papas.
Tanto para Ratzinger como para Bergoglio, esta é uma experiência
totalmente inédita. O uso da veste branca e os contactos manipuláveis com o
exterior deveriam ter sido pormenorizadamente regulamentados, sustenta o citado
teólogo romano.
2. Esta situação permite, com
efeito, todos os boatos e conjecturas. Há mesmo quem diga que o cardeal
Ratzinger tem ligações a “submarinos” espias que o usam para controlar e
dificultar as decisões que os ultra conservadores consideram desvarios do Papa
Francisco. Este, com a descentralização do governo da Igreja e a sua
evangelização inculturada estaria a fazer da Igreja Católica uma federação de
seitas à imagem do protestantismo. Devido à sua determinação na Reforma da
Cúria e na denúncia do clericalismo e carreirismo, acusam-no de autoritário. Os
neoliberais da economia e da política acusam-no de falar do que não sabe.
Alguns cardeais já manifestaram publicamente a sua oposição, não apenas
ao seu estilo pastoral, mas também às suas posições doutrinais. Serão os
únicos?
Não creio que o cardeal
Ratzinger defenda esse caminho, mas acontecem coisas esquisitas. Ele acaba de
prefaciar o livro do cardeal Sarah, La
Force du silence (O Poder do Silêncio), ainda não traduzido para italiano,
mas o prefácio já saiu publicado, antecipadamente, no “Corriere della Sera” e na “Nuova bussola quotidiana”.
Donde virá o incómodo desse elogioso prefácio que entristeceu os entusiastas
das orientações do Papa Francisco e que também não querem ficar de mal com a
imagem do Papa anterior?
O Cardeal Sarah é o Prefeito da Congregação para o Culto Divino, nomeado
pelo próprio Papa Francisco. Agora, usa processos pouco recomendáveis para
contrariar quem o escolheu. Os seus esforços estão focalizados na “Reforma da
Reforma” litúrgica proposta pelo Vaticano II.
É esse personagem a remar contra o Papa Francisco que o cardeal
Ratzinger veio recomendar como “mestre espiritual, que fala das
profundezas do silêncio com o Senhor, expressão da sua união íntima com Ele, e
que por isso tem algo a dizer para cada um de nós”. Diz-se grato ao Papa
Francisco por “ter nomeado um tal mestre espiritual à frente da
Congregação para a celebração da liturgia na Igreja”. Daí a declaração final
que soa como um aviso: “Com o Cardeal Sarah, mestre do silêncio e
da oração interior, a liturgia está em boas mãos”.
A publicidade desta gratidão parece uma indevida defesa,
pois, o Papa Francisco já manifestou, várias vezes, que não está nada contente
com a nomeação que fez. Não é segredo que, ao longo do último ano, o Cardeal
Sarah foi, de facto, gradualmente cercado por elementos abertamente hostis à chamada
“reforma da reforma conciliar”, desejada por Bento XVI, que o purpurado
guineense tenta efectivar no actual pontificado que a não quer. Ao continuar a
defender que “a crise da Igreja é uma crise da liturgia”, deve dizer-se que a
cura que ele pretende é o seu veneno. Já não consegue fazer nada da Congregação
a que preside.
O Papa desautorizou a ideia da Missa de costas para o povo e
favoreceu a nova tradução dos textos litúrgicos, resultado de estudos de uma
comissão criada sem o conhecimento e contra o Cardeal Sarah, segundo consta. Os
movimentos para estudar o ritual de uma missa “ecuménica” parece que também ignoram
a própria Congregação, presidida pelo dito cardeal.
3. Ratzinger
foi uma grande figura da Cúria romana, durante muito tempo. A sua obsessão em
neutralizar e condenar os teólogos que o não repetiam, parece que não lhe
deixou energia para enfrentar as exigências da reforma dessa instituição
degradada.
Compreende-se
que, por muito que goste de estudar, de escrever e de rezar, depois de tantos
anos de intervenção nos destinos da Igreja, perante o que lhe contam, não aguente
o silêncio que se impôs. Como disse Monsenhor Georg Geinswein, Ratzinger acompanha
atentamente tudo o que acontece na Igreja.
Bento XVI, sob o ponto de vista institucional, morreu,
mas julga que não. Está obrigado a ter um comportamento que não leve as pessoas
a pensar que está arrependido de ter renunciado a ser o Bispo de Roma, sucessor
de S. Pedro.
Frei Bento Domingues, O.P.
in
Público 28 Maio 2017
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