1. Será que Deus é sádico, Jesus suicida e a Senhora de Fátima,
para aliviar o Céu ofendido, sacrifica crianças inocentes?
Não tenho qualquer resposta para
estas perguntas que regressam sempre como as gripes. Não as considero desprezíveis
embora nem todos as formulam de forma tão brutal. Passada a euforia da visita
do Papa à Cova da Iria essa questão tornar-se-á ainda mais aguda. Para
erradicar a violência em nome de Deus, é fundamental desmascarar todos os
lugares onde ela se disfarça. Ainda na Missa da quarta-feira da passada Semana
Santa embati numa oração que renego: «Senhor nosso Deus, que, para nos libertar
do poder do inimigo, quisestes que o Vosso Filho sofresse o suplício da cruz, concedei
aos vossos servos a graça da ressurreição».
Será verdade que Deus, para nos
libertar do poder do mal, precisava de fazer morrer o seu Filho no horror da
cruz? Gostará Deus do sofrimento de quem mais ama? Poderá ser invocado como
Deus um ser tão sádico?
S. Paulo, na famosa Carta
aos Romanos, tão celebrada por M. Lutero, para enfatizar a loucura do amor
que Deus nos tem e, do qual, nada nem ninguém nos pode separar, atreve-se a
escrever esta barbaridade: «Deus não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou
por nós todos»[i].
Será que Deus gosta mais de nós do que do seu próprio Filho? Não será este um
amor perverso?
No Evangelho de S. João, o Pai não exige nada a Jesus e
aqueles que o matam pensam que o dominam, mas estão enganados: «ninguém me tira
a vida, mas eu dou-a de mim mesmo»[ii]. Posição reforçada na
Oração Eucarística II: «Na hora em que Ele se entregava, para voluntariamente
sofrer a morte…».
Aqui, tudo se complica ainda mais: ou Jesus fingia que
sofria e não sofria nada ou gostava de
sofrer e, então, era um doente masoquista.
Pior ainda, um suicida para nos salvar.
Ao fim e ao cabo: Jesus foi condenado por Deus ou por uma
coligação de Herodes e Pôncio Pilatos?[iii]
No cenário da Mensagem de Fátima, Deus, o Coração de Jesus e
o Coração de Maria estão cravados de espinhos, feridos pelos pecados do mundo. Mas
que ideia foi essa, tão pouco celestial, a de fazer com que crianças inocentes
assumam a reparação dos estragos feitos pelos pecados dos adultos?[iv].
2. É verdade que na história do mundo, quase sempre paga o justo
pelo pecador. Se essa desgraça não pode ter aprovação divina, muito menos pode ser
Deus a exigir a morte do seu próprio Filho para perdoar as ofensas recebidas.
A teoria jurídico-teológica das
exigências da reparação justa da ofensa feita a Deus, elaborada por Santo
Anselmo adicionada à concepção do pecado original de Santo Agostinho, deixa
Deus muito mal e desgraça Jesus Cristo. Foram tantos os estragos na imagem de
Deus e na vida dos seres humanos, que o melhor é dispensar definitivamente essa
teoria.
Muitos textos[v], ao pretenderem que Jesus
estava a realizar o desígnio de Deus, prefigurado no Antigo Testamento – não
era um traidor - permitem leituras vesgas: se era Deus que O entregou, os
adversários que o executaram estavam a cumprir a vontade de Deus! No entanto,
em lado nenhum, Jesus se apresenta com a seguinte proposta: há muito sofrimento
no mundo; eu venho para o alargar e intensificar. Não me parece que o Nazareno
se tenha aconselhado com José Saramago para conceber, delinear e realizar a sua
missão.
No Evangelho de S. Lucas, Jesus
apresenta o seu programa, na sinagoga de Nazaré, servindo-se de uma passagem do
profeta Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para
anunciar a boa nova aos mendigos; enviou-me a proclamar aos presos a libertação
e aos cegos a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a
proclamar um ano aceitável da parte do Senhor»[vi].
A recepção imediata do público da
sinagoga foi simpática, mas acabou mal. Porquê? O programa era bom. A ideia de
um ano Jubilar estava prevista no Levítico (25). Convidava ao perdão de dívidas
e à libertação dos escravos. A desgraça está nos pormenores. A primeira foi a
de fechar o livro antes do tempo: suprimiu a passagem do dia da vingança de Deus. Isto era grave. Parecia que já mandava no
texto sagrado. Como não queria nada com a ideia de um Deus de vingança, não leu
essa passagem e pronto. A segunda foi pior do que a primeira: o que Isaías dizia
do Messias estava a realizar-se nele, Jesus de Nazaré. Era pretensão a mais. «Encheram-se
todos de fúria na sinagoga ao ouvirem as suas palavras», da fúria passaram aos
actos, «expulsando-o da cidade, levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a
cidade estava construída, para o atirarem dali abaixo. Mas Jesus, passando pelo
meio deles, seguiu o seu caminho».
Os quatro Evangelhos cumprem o que
diz o nome: Jesus é um amado de Deus que entrega a sua vida para que seja
perfeita a alegria de todos. Nas últimas crónicas já apontei qual foi o caminho
de Jesus. O seu programa recusava a dominação económica política e religiosa
que crucifica a vida das pessoas, seja onde for. O amor ao sofrimento é doença;
o esforço para procurar vencer o próprio sofrimento e o dos outros, nas suas
causas e consequências, é amor da vida, é descrucificar[vii].
3. Nestas crónicas recusei-me sempre a responder à pergunta: que
vem o Papa fazer a Fátima? Julguei que era melhor esperar para ver. Sabendo de
quem se trata, alimento o secreto desejo de uma boa surpresa.
Entretanto descobri que o Papa
Francisco publicou uma carta apostólica, em forma de Motu próprio, que transfere as competências sobre os Santuários
para o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização[viii]. É precisamente o que
mais falta em Fátima: tornar-se um centro propulsor de saída para o mundo e não
apenas de um altar de incenso.
São ridículas as
notícias colhidas ou veiculadas pelo Santuário sobre os cuidados com a figura
do Papa, a sua indumentária para celebrar, o cálice de ouro, a pala para o resguardar
do sol e outras futilidades do género. Parecem manifestar o propósito de
neutralizar, na Cova da Iria, o que Bergoglio trouxe de novo: uma Igreja de
saída para todas as periferias, com gosto da alegria do Evangelho, de uma
evangelização nova, libertadora, descrucificante.
Frei Bento Domingues, O.P.
07.05.2017
[i] Rm 8, 31-39
[ii]
Jo 10, 18
[iii]
Act 4, 27-30; Cf. Simon Légasse/Peter Tomson, Qui a tué Jésus?,Cerf 2004; Nathan Leites, Le meurtre de Jésus moyen de salut?, Cerf 1982
[iv]
Cf. Lúcia de Jesus, Memórias, Edição
crítica de Cristina Sobral, Fátima 2016.
[v]
Cf. Act. 2, 22-36 //
[vi] Lc 4, 16-30
[vii] Lc 7
[viii]
L’ Osservatore Romano, 06.04.2017
Uma reflexão muito importante e extremamente oportuna.
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