1. É cedo para
fazer um balanço da última peregrinação à Cova da Iria. As televisões têm o
país colonizado pela cultura omnipresente e omnipotente do futebol. Durante
dois dias, sem a esquecer, voltaram-se todas para o Papa, para os Pastorinhos,
para Fátima e parecia que nunca mais se calavam, mas ainda tiveram tempo para
celebrar o triunfo de Salvador Sobral no Festival da Eurovisão. Graças sejam
dadas a todas e todos que elevaram o ego nacional.
Nesta crónica, interessa-me reflectir
sobre o futuro de Fátima. Dizem que já dispomos de bases seguras para fazer a
história dos acontecimentos de 1917 e o seu desenvolvimento até aos nossos dias.
Seja. É indispensável perguntar: em que ponto está a crítica teológica das
representações religiosas dessa época, na sua continuidade e nas suas
alterações? É verdade que a menoridade da reflexão teológica, no Portugal do
séc. XX, não permitia altos voos. O bispo Manuel Almeida Trindade já sublinhou
a sua triste ausência no Vaticano II: ausência na preparação, na participação e
na aplicação.
Em Fátima, embora à margem do
Santuário e não só, já existiu um Centro importante de Filosofia e Teologia (Studium Sedes Sapientiae), Cursos de Verão
de Teologia (ISTA) e uma importante
livraria, Verdade e Vida, a maior
referência a nível do País, para se entrar no espírito e na letra do Vaticano
II. No quadro da reforma litúrgica, nasceram aí audaciosas inovações pela iniciativa
de Frei José Augusto Mourão, O.P..
Todo esse ambiente, com um
professorado internacional, permitiu, além do mais, o acolhimento e o diálogo
com personalidades da cultura. Jean Guitton, Gabriel Marcel, Stravinsky,
Vitorino Nemésio, Miller Guerra, etc.. são, apenas, algumas lembranças do meu
tempo de estudante.
2. Como já
lembrei nas últimas crónicas, o Papa Francisco antes de vir a Fátima tinha
publicado uma Carta Apostólica, em forma de Motu
próprio, pela qual inscreveu os Santuários no Pontifício Conselho para a
Nova Evangelização. Insisto neste facto para que a sua importância, os seus objectivos
e exigências, que lhe são apontados, comecem a ser vividos e praticados, em
Fátima. É de notar que a perspectiva do Papa é uma aplicação concreta do Evangelho da Alegria, o programa do seu
pontificado.
Nos dias 12 e 13, J. Bergoglio deu o
exemplo do que pode e deve ser a realização do programa que apontou para a
evangelização dos Santuários. Com uma arte genial enxertou, em narrativas
gastas, a novidade do Evangelho. Como tinha passado um ano inteiro a falar da
misericórdia de Deus, não tinha espaço mental e afectivo, para continuar a
repetir as ameaças da Cova da Iria. Escreveu e disse outra coisa. Na crónica do
Domingo passado, respiguei o que me pareceu mais acutilante e novo em todas as
suas intervenções.
É, sem dúvida, importante escutar e
debater esses textos na íntegra, mas não basta! Há uma expressão conhecida: um
dedo que aponta o céu e as pessoas olham para o dedo. O que importa é a
pergunta: quais foram as representações teológicas, melhor dito, as inovações
metafóricas da sua linguagem cristã e as direcções de acção evangelizadora na
sua vertente de anúncio do Evangelho e de transformação da sociedade? Igreja de
saída para onde? Só para os cristãos ou para “todos os meus irmãos no baptismo
e em humanidade, de modo especial para os doentes e pessoas com deficiência, os
presos e os desempregados, os pobres e os desempregados?”
Dir-se-á que Fátima está feita e que
não há mais nada a fazer. Sob certo ponto de vista, seria um desastre que os
clérigos e os clericalizados, ignorantes por profissão, tentassem impor os seus
conceitos moralistas e canónicos a uma população que vai a Fátima porque sabe
onde lhe dói e onde procura esperança. Seria pior a emenda do que o soneto.
Deixem Fátima ser um lugar de liberdade pessoal.
Dito isto, nada está feito. Como
desenvolver as perspectivas apontadas pelo Papa acerca de Deus, de Cristo, do
Espírito Santo, da Igreja e de Maria? Não digo que seja necessário fundar uma
nova faculdade de teologia em Fátima, mas é indispensável que o Santuário
promova seminários, colóquios, debates, publicações que desenvolvam uma nova
teologia em plena liberdade.
A preparação de peregrinações precisa
de uma teologia narrativa dos mistérios do Rosário que não seja apenas a
repetição de Pai-Nossos e Avé-Marias, introduções ao sono, quando deviam ser
aberturas aos sonhos e aos trabalhos de um mundo novo.
A mariologia não pode continuar como catálogo
dos privilégios de uma Senhora, ainda que seja mais brilhante do que o Sol. Alguns
passos, sobretudo do ponto de vista bíblico, já foram dados. Fr. Edward
Schillebeeckx, O.P., poucos anos antes de morrer, traçou as linhas de evolução
da mariologia desde 1954 e as perspectivas que ele tentou abrir para o futuro.
É necessário rever toda a tradição dos títulos que foram atribuídos a Maria,
Mãe de Deus. O Espírito Santo não pode ser posto de lado.
3. Fátima, no
seu conjunto, não é a realização de uma grande ideia de beleza. Alguns
remendos, por mais interessantes que sejam, não conseguem superar deficiências
de raiz.
Como diz o documento sobre os
santuários, importa a sua valorização cultural e artística, segundo a via pulcritudinis, como modalidade
peculiar da evangelização da Igreja. Para limpar o comércio da fealdade
religiosa, não seria possível criar uma escola de artes plásticas, de música,
de teatro para encontrar novas linguagens da beleza da fé?
Desde o princípio se diz que Fátima
está confrontada com os problemas da guerra e da paz. É indispensável rezar
para erradicar as raízes, as causas e as consequências dos conflitos. Dado o
alcance mundial da mensagem de Fátima, não seria urgente criar, nos seus
espaços, uma “Universidade da Paz”, não só ecuménica e inter-religiosa, mas
aberta a todos os humanos de boa vontade?
Dir-se-á que estou a pedir demasiado
a um lugar que é de acolhimento para rezar, cumprir uma promessa, acender uma
vela e cantar um adeus nostálgico a Fátima. O Papa pediu muito mais. Exigiu uma
mobilização geral contra a indiferença que nos gela o coração e agrava a miopia
do olhar.
Só vale a pena falar no futuro de
Fátima se aquele Santuário contribuir para criar muitas e variadas iniciativas
espirituais e culturais, que convençam os peregrinos a dizer: qual é a minha
periferia?
Frei Bento Domingues, O.P.
21.05.2017
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