27 outubro 2019


P / INFO: Crónicas, Arte mostra que mulheres já lideraram comunidades cristãs &, em anexo, proposta da Irmã Maria Julieta Mendes Dias (rscm) para o debate  do WOW, que se realizou em Lisboa, na semana passada.
Frei Bento: Sínodo pan-amazónico: o debate continua
Pe. Anselmo: Três grandes feridas do nosso tempo
Pe. Tolentino: A vida quotidiana
Pe. Vitor: Ser com os outros

SÍNODO PAN-AMAZÓNICO: O DEBATE CONTINUA
Frei Bento Domingues, O.P.

1. O Sínodo Pan-Amazónico começou no passado dia 6 e termina hoje. Já é possível o acesso ao resultado dos debates dos diferentes grupos que nele participaram. Também já foi comunicada a proposta do documento final. No momento em que escrevo, ainda não a conheço. A sua discussão foi o trabalho da passada semana.
Lendo os textos dos diversos grupos, fica-se com a sensação de que o sínodo não foi mais do mesmo. Houve livre, verdadeira e corajosa discussão, como tinha pedido o Papa. Por sua natureza, o Instrumentum laboris era um documento “mártir”, destinado a ser destruído nos debates sinodais. Poder-se-á dizer que as propostas mais novas já vinham sendo debatidas em vários grupos e movimentos, sobretudo depois do espaço aberto por João XXIII e pelo Concílio Vaticano II. O que agora parece óbvio e urgente, do ponto de vista teológico e pastoral, foi a cruz de alguns teólogos e, em especial, de Edward Schillebeeckx, O.P., desde os anos 80 até à sua morte. Considerava-se um teólogo feliz. Nunca o conseguiram condenar, mas o cardeal Ratzinger perseguiu-o até ao fim.
Os três temas mais salientes nos grupos de trabalho, para além da questão básica e incontornável da ecologia, são: a autorização de um rito católico amazónico para viver e celebrar a fé em Cristo; mais responsabilidades para as mulheres na comunidade eclesial; e a possibilidade de ordenar homens casados[1]. Quanto ao primeiro ponto, faz parte de um longo trabalho de inculturação da liturgia ensaiado, com mais ou menos êxito, em vários países, embora a pluralidade de ritos não seja uma novidade na história da Igreja. No entanto, a proposta é mais abrangente. Sublinha o aspecto espiritual, teológico, litúrgico e disciplinar para exprimir a riqueza singular da Igreja Católica na Amazónia. Quanto ao segundo, as propostas não são muito ousadas. Infelizmente, ficam pela possibilidade da ordenação de mulheres diaconisas, uma ocasião perdida para não se discutir, em sínodo, uma outra possibilidade: a da ordenação presbiteral de mulheres. Ainda nos dias 16 e 17 deste mês se reuniu, em Lisboa, um movimento mundial a exigir este reconhecimento[2]. No terceiro, discutiu-se a possibilidade de ordenar homens casados, o que não aconteceu para as mulheres, sejam solteiras ou casadas. Na Igreja dos primeiros tempos, a condição mais frequente já era a de homens casados. O que mais se teima em desconhecer é o que está mais claro nos textos no Novo Testamento: foram elas, as Mulheres, as encarregadas por Jesus ressuscitado de evangelizar os próprios apóstolos, desanimados com a morte horrorosa do Mestre.
2. Se, no momento em que escrevo, ainda nem sequer conheço a proposta final entregue ao Papa, muito menos o que o Papa fará do conjunto dos debates que agitaram este sínodo. Seja como for, aconteça o que acontecer, o tabu em torno dos ministérios ordenados perdeu o seu prestígio, o prestígio da ignorância. Como todos os cristãos estão convidados por S. Pedro a dar razão da sua esperança e, como por outro lado, o debate se tornou público dentro e fora da Igreja, a discussão em ordem a decisões de prática pastoral vai continuar, sem motivo de falsos escândalos para ninguém. Aprofundar a Fé, sob o ponto de vista afectivo e cultural, deve ser o estatuto de todos os fiéis. Não é só matéria para teses de mestrado e doutoramento. A prática teológica especializada é uma exigência de toda a Igreja e para o serviço de toda a Igreja, não para engrossar a casta dos fariseus, sem misericórdia para os problemas das populações, religiosas ou não.
O Papa Francisco tem o carisma de meter o conjunto da Igreja em trabalhos. Não tem a mania que sabe tudo, não se guia pelos atributos da infabilidade, porque acredita que pertence a toda a Igreja o dever de assegurar a fidelidade à presença do Espírito de Cristo, em todos os tempos e lugares. Não convoca reuniões para o ritual de repetir o que já foi feito no passado. Como diz Isaías: não penseis mais no passado, pois vou realizar algo de novo, que já está a aparecer: não o notais?[3]
3. Não basta dizer que a Amazónia, por questões climáticas, é fundamental para toda a humanidade. Sob o ponto de vista cristão, o que ali está a ser ensaiado deve repercutir-se nas Igrejas do mundo inteiro, se elas quiserem respirar estes novos tempos.
Para as pessoas e grupos económicos, políticos e religiosos, que viram com maus olhos a convocatória do sínodo e quiseram policiar e perturbar o desenrolar dos seus trabalhos, este dia do seu encerramento pode ser sentido como um grande alívio: sínodo realizado, sínodo amortalhado, um mau momento para esquecer. Aquele imenso território, com tantos recursos a explorar pelas multinacionais, não pode continuar nas mãos de povos atrasados e subdesenvolvidos.
O Papa abriu o sínodo a partir da sua própria experiência, confessando que, no seu próprio país, o slogan “civilização e barbárie” serviu para dividir e aniquilar a maioria dos povos originários, porque eram “bárbaros” e a “civilização” provinha de outro lugar. Acrescentou que o desprezo dos povos continua ainda hoje, na minha terra natal, com expressões ofensivas, ou então falamos de civilizações de segundo nível, as que vêm da barbárie.
Isto não fez perder, a Bergoglio, o humor certeiro e anticlerical: «Ontem fiquei desapontado por ouvir um comentário sarcástico sobre aquele homem devoto que levou as oferendas com penas na cabeça. Dizei-me: qual é a diferença entre colocar penas na cabeça e o “tricórnio” usado por alguns oficiais nos nossos dicastérios? Assim, corremos o risco de propor medidas simplesmente pragmáticas, quando, pelo contrário, nos é pedida uma contemplação dos povos, uma capacidade de admiração, que façam pensar de forma paradigmática. Se alguém vier com intenções pragmáticas, que recite o “eu pecador”, que se converta e abra o coração a uma perspectiva paradigmática que nasce da realidade dos povos»[4].
O sínodo realizou-se em Roma. A grande periferia veio para aquele lugar que se julgava o centro da cristandade. Não é uma extravagância, um gesto exótico, é a proclamação da nova realidade da Igreja e do mundo. Sejam quais forem as medidas de prática social ou pastoral, esta foi uma mensagem paradigmática: o centro da Igreja já não está em Roma, mas no coração dos Povos.

in Público, 27. 10. 2019
https://www.publico.pt/2019/10/27/mundo/opiniao/sinodo-panamazonico-debate-continua-1891234



[1] Sobre os temas, debates, entrevistas sobre o Sínodo aconselho o jornal online 7Margens.
[2] Women's Ordination Worldwide (WOW). A proposta de Maria Julieta Mendes Dias para essa reunião é um exemplo do que se deve pedir, exigir a este grupo.  
[3] Is 43, 18-19
[4] Aconselho a leitura do discurso do Papa, na íntegra, no site do Vaticano, em Discursos (7. 10. 2019).
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Três grandes feridas do nosso tempo             
                 
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
                                                         

1. Todas as épocas têm as suas características, as suas vantagens e os seus perigos e ameaças. O nosso tempo sofre de três grandes feridas que nos levam à inquietação e à incerteza, contribuindo para a solidão, não a solidão habitada, necessária para estar consigo e com os outros na profundidade, mas a solidão do abandono.
2. Essas feridas são, como explica José María Rodríguez Olaizola num belo livro, Bailar con la soledad, a que já aqui me referi e no qual me inspiro: a do amor, a da morte, a da fé.
2. 1. A ferida do amor.
Hoje, vivemos num mundo no qual o amor na sua permanência se tornou efémero e inseguro. Quem diz hoje, de modo seguro: amor “para sempre”? Quando se olha para as estatísticas, não é antes o “enquanto durar” que está em vigor? Aconselhava-me há dias alguém, por ocasião da celebração dos 50 anos de casamento de uns amigos meus, a que presidi: por este andar, comece a celebrar os 10 anos, os 20 anos de casados das pessoas, porque isto das bodas de prata e de ouro, aos 25 e 50 anos, é cada vez mais raro e a acabar... Como é sabido, Portugal está na frente quanto à percentagem de divórcios (há um divórcio por hora em Portugal) e em Espanha os casamentos duram em média 16 anos...
Razões? Certamente, o aumento da esperança de vida é uma delas: o que antes eram 20 ou 30 anos de casamento agora poderão ser 50. Assim, porque não desfrutar de dois ou três casamentos mais? Por outro lado, numa cultura do descartável, da fuga ao sacrifico e à renúncia e do culto da superficialidade, o que fica é também a incapacidade do compromisso definitivo. Como escrevia uma jovem: “Queremos comprometer-nos um pouco, mas não cem por cento.” E o sociólogo Zygmunt Bauman, referindo-se ao “amor líquido”: Se estamos continuamente a deitar fora automóveis, computadores, telemóveis ainda em perfeito estado, para os trocarmos por novas versões melhoradas, “haverá porventura uma razão para que as relações de casal sejam uma excepção à regra?” Está aí o paradoxo, ouvi eu pessoalmente Bauman a dizer: Por um lado, na presente instabilidade, deseja-se profundamente um amor estável para toda a vida, mas isso é incompatível com a disponibilidade para a abertura a novas oportunidades que apareçam...
A pergunta é se as pessoas são mais felizes. O Papa Francisco, em A Alegria do Amor, fala de várias feridas do amor: o amor egoísta; a falta de tempo para o encontro, para o diálogo, para a escuta; a paternidade/maternidade egoísta ou negada; as expectativas demasiado altas, irrealistas e, consequentemente, defraudadas... O que daí se segue, citando o Sínodo sobre a Família: “Uma das maiores pobrezas da acultura actual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações.” Vale a pena bater-se por uma família estável, pois é esteio para uma vida feliz e é o melhor lugar para ter filhos e educá-los. A desestruturação da família é um dos perigos maiores para o nosso mundo.
2. 2. A ferida da morte.
Muitas vezes tenho aqui sublinhado que uma característica essencial da nossa sociedade é a morte enquanto tabu. Disso não se fala. Não é de bom tom. Como aceitar falar da morte numa sociedade na qual o que se valoriza é o ter, o sucesso? Este é o paradoxo: por um lado, nada mais certo do que a morte; por outro, a sua ocultação. E aqui reside a pobreza da nossa sociedade: na obturação das perguntas essenciais e da verdade da vida, na tentação do auto-engano, perde-se a perspectiva da existência autêntica. Para ser o que é, vivendo na superficialidade, na corrupção, na vaidade oca e vazia, no esquecimento do essencial e do que verdadeiramente vale, esta sociedade tem de ignorar o pensamento da morte. De facto, confrontados com a morte, repentinamente tudo muda, as decisões são outras, porque aquilo que parecia decisivo aparece então a outra luz: banal e prescindível.
J. M. Rodríguez Olaizola refere uma experiência muito significativa. Pelo Natal de 2015, um conjunto de organizações quis  fazer um estudo sobre percepções, prioridades e valores dos jovens madrilenos. Para isso, juntaram um grupo e foram perguntando, um a um, que prendas pensavam dar nesse Natal a uma pessoa muito significativa (na maioria dos casos, tinham indicado os pais). As respostas eram alegres, vulgares, mais ou menos originais. Mas, depois, seguia-se uma nova pergunta: E se soubesses que estas são as últimas prendas que vais oferecer, pois essa pessoa vai morrer, este é o último Natal que vais passar com ela? Aí, de repente, os rostos contraíam-se, o silêncio era todo, as palavras arrastavam-se, e as respostas surgiam cheias de profundidade, cuidado, emoção, intensidade. E a perspectiva do fim dava outra orientação às prendas, havia outra profundidade. Nesse cenário, as prendas estavam “carregadas de sentido, significado e ternura”. A consciência da morte dá outra sabedoria ao viver.
2. 3. A ferida da fé.
Durante séculos, viveu-se no Ocidente numa sociedade crente. A fé era o que poderíamos dizer uma evidência social, de tal modo que o difícil era ser não crente, pois os não crentes eram estigmatizados e até perseguidos. Claro que havia o perigo de uma fé imposta, mas a cosmovisão comum era religiosa e, portanto, era mais fácil ser crente, aceitar a fé e praticá-la: as pessoas acreditavam, rezavam, celebravam naturalmente em conjunto.
Hoje, as coisas são diferentes, muito diferentes. A liberdade religiosa é — e ainda bem — um valor inquestionado. A fé e a religião estão submetidas à crítica, por vezes ácida, por parte da filosofia, da ciência e da opinião pública, também no contexto de um laicismo agressivo. As estatísticas mostram que a religião está em queda acentuada. Os valores são cada vez mais os da autonomia, do individualismo, do hedonismo, e talvez nunca como hoje se tenha afirmado tanto o valor desta vida terrena em contraposição com a vida eterna, desvalorizada. 
Como escrevia recentemente José Antonio Pagola, “depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria.” E o mais difícil é que, neste contexto, a própria fé pessoal dos crentes está submetida à ameaça de erosão. Porque é mais confrontada com dúvidas que podem ou querem apresentar-se com carácter científico: como acreditar na vida eterna, se a ciência não precisa do espírito para explicar o Homem?; onde está Deus, se o mundo se auto-explica?
Mais dramáticos serão os dilemas, as encruzilhadas e as perguntas que concretamente o mistério de um Deus silencioso coloca. Porque é que existe o mal? Perante o sofrimento cruel, a eterna pergunta: Porque é que Deus não intervém? Que amor é o seu, se é infinitamente bom e poderoso e nem sequer parece sensível ao sofrimento dos inocentes? A fé é hoje um combate mais duro, e, escreve J. M. Rodríguez Olaizola, “o crente tem que aprender a manter a sua fé um pouco contra a corrente. A eterna dúvida ou o abismo perante o silêncio de Deus é hoje um desafio enorme para os crentes, que vêem que outros parecem viver de modo estupendo sem necessidade de referir-se a nenhuma religião nem a nenhuma divindade.” Porque é que Deus não se manifesta de modo claro, parecendo, pelo contrário, por vezes, que nos abandona?
A situação não é cómoda, é muito mais exigente. Mas será preciso ver e aproveitar as suas vantagens, para despertar uma fé tantas vezes infantilizada e acomodada, inerte, numa Igreja que, aprisionada por um sistema clerical, corre o risco se tornar cada vez mais um museu de antiguidades. Caminharemos cada vez mais para uma Igreja de voluntários, na qual a fé convive com um combate  pessoal, numa entrega única e confiada ao mistério do Deus silencioso e salvador. Com razões e todas as consequências na vida, seguindo o exemplo de Jesus e rezando aquelas palavras do Evangelho: “Senhor, eu creio, aumenta a minha fé”. Neste processo, o crente autêntico concluirá e até talvez possa mostrar a outros que a fé é mais razoável do que não acreditar. E poderá ainda  aperceber-se de que Deus não é uma necessidade, mas “um luxo”, como me disse uma vez o grande teólogo Edward Schillebeeckx. Como uma rosa que se dá, sem porquê. Gratuitamente.
in DN, 27.10.2019
https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/tres-grandes-feridas-do-nosso-tempo--11446441.html 
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
A vida quotidiana
O QUOTIDIANO MUITAS VEZES SE PARECE A UM CAMPO FECHADO, A UMA ARENA BAÇA ONDE TRAVAMOS, A CUSTO, A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA
Valoriza-se pouco a vida quotidiana. Sentimo-nos aprisionados pelas rotinas, num rame-rame monocórdico capaz de nos fazer hibernar a nós e ao universo. Ou vemo-nos então num vórtice ofegante de tarefas para as quais só temos esforço, aceleração e cansaço, e não respostas. O quotidiano muitas vezes se parece a um campo fechado, a uma arena baça onde travamos, a custo, a luta pela sobrevivência (e apenas essa), no meio dos obstáculos e contrastes que o tempo (esse lutador mais exímio do que nós) nos vai lançando. “Quando penso no quotidiano, o infinito parece-me uma coisa mais distante” — confidenciou-me, um dia, uma amiga. E ela queixava-se de como o dia a dia pode ser disfuncional, ensurdecedor, áspero e dissonante; de como sendo nossa, a existência diária também nos despersonaliza e torna maquinais mesmo aqueles gestos onde quereríamos tanto estar inteiros. É comum ouvir testemunhos desta dilaceração, como se estivéssemos condenados a descobrir o quotidiano como um domicílio afinal estranho e equívoco, uma porta familiar que nos resiste, e que as nossas chaves abrirão sempre com maior dificuldade. Ou, pior ainda, quando dos nossos quotidianos passamos a anotar, com ressentimento, só o cinzentismo uniforme e nervoso, o pulsar descontente, a energia medíocre e incompleta, o que nos parece ser a sua insuportável banalidade, o seu embotamento penoso, uma gaguez não de palavras, mas de entusiasmo e de amor.
O quotidiano é o barco e a viagem. É o barro e a obra a construir. É o espelho turvo, mas é também o lugar onde a promessa da visão nítida se tateia
E, contudo, sem desmentir esta exigência que é também real, sem negar o seu peso que amiúde nos vence, precisamos de nos reconciliar com o quotidiano. Pois, na sua forma vulnerável e até contraditória, ele é o lugar das aprendizagens mais amplas, dos encontros mais decisivos, das experiências mais profundas e iluminantes. A vida, se a olharmos bem, não é igual todos os dias. Os dias, se os abraçarmos bem, não são uma antologia de momentos opacos e quebradiços. Os instantes não são lampejos ocasionais sem sentido, nos quais não devemos confiar. O quotidiano é o barco e a viagem. É o barro e a obra a construir. É o espelho turvo, de que São Paulo fala no célebre hino da Carta aos Coríntios, mas é também o lugar onde a promessa da visão nítida se tateia. Por isso, em vez de sonolência ele pede-nos que abramos verdadeiramente os olhos. Em vez de indiferença e recusa, ele espera de nós empenho, fidelidade e esperança.
Lembro-me muitas vezes da forma como começa um dos contos de que mais gosto de Sophia de Mello Breyner Andresen. O conto chama-se “O Silêncio” e penso que é de tudo isto que fala: do que a vida quotidiana nos pede e nos dá, do que ela leva de nós e daquilo que deixa como legado. E legado não só à superfície, mas no âmago do próprio viver. O texto não podia arrancar de forma mais exata, e tem a cadência concisa e repetitiva de uma descrição ritual. Ei-lo: “Era complicado. Primeiro deitou os restos de comida no lixo. Depois passou os pratos e os talheres por água corrente debaixo da torneira. Depois mergulhou-os numa bacia com sabão e com água quente e, com um esfregão, limpou tudo muito bem. Depois tornou a aquecer a água e deitou-a no lava-louças com duas medidas de Sonasol e de novo lavou pratos, colheres, garfos e facas. Em seguida passou a loiça e os talheres por água e pô-los a escorrer na banca de pedra. As suas mãos tinham ficado ásperas, estava cansada de estar de pé e doíam-lhe um pouco as costas. Mas sentia dentro de si uma grande limpeza como se em vez de estar a estar a lavar a loiça estivesse a lavar a sua alma.”
in Semanário Expresso, 11.10.2019 p.153
http://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2452/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/a-vida-quotidiana
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XXX COMUM Ano C
“Meu Deus, dou-Vos graças
por não ser como os outros homens.”
Lc 18, 11

Releio com imenso gosto os autos de Gil Vicente, convicto de quem nenhum outro dramaturgo português criou figuras-tipo como ele. Personagens que são maiores que as pessoas que representam e capazes de nos fazer “enfiar a carapuça” em muitas das suas palavras e atitudes. E dele me lembrei ao confrontar-me com esta parábola de Jesus que conhecemos como “do fariseu e do publicano”. Quase esquecemos que S. Lucas a contextualiza com uma apresentação: “para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”. E pensamos: “Não é para nós, claro!”
O templo é o lugar que atrai os dois, com o propósito comum de orar a Deus. Somos introduzidos por Jesus nas palavras que ambos dirigem a Deus. Moralmente, o fariseu é irrepreensível, e o publicano bastante reprovável. Mas será isso que está em causa? Poderemos reprovar o zelo da Lei que o publicano apresenta? Ou concordar com o que era frequente os publicanos, cobradores dos impostos públicos a favor da governação romana, faziam aos seus conterrâneos, enriquecendo ilicitamente? Não, a questão é mais profunda.
O fariseu incensa-se diante de Deus. Apresenta os seus méritos, enaltece as suas virtudes, apresenta faturas do que acha que Deus lhe deve pagar por ser tão cumpridor. Está na situação limite do “face-a-face” com Deus mas como se se olhasse ao espelho, sem nunca abrir o coração, nem sentir qualquer fragilidade. Começa mesmo por “dar graças” por não ser como os outros: com tantos méritos, investe-se em julgar e condenar os outros. Será que nunca sentimos uma pontinha de tudo isto dentro de nós? O publicano, à distância, de olhos baixos, bate no peito. Apresenta-se como pecador e pede compaixão. Sabe que tem um trabalho “pecaminoso” segundo a lei, que é um vendido aos opressores romanos, e é também, porventura, ladrão, pois era costume cobrar-se um pouco a mais. Não se justifica nem apresenta atenuantes; simplesmente rasga o coração. Sente-se frágil e reconhece a grandeza de Deus. Quantas vezes não foi também esta a nossa oração?
A tentação religiosa do fariseu marca muitas expressões religiosas. O condomínio privilegiado dos perfeitos, dos cumpridores, dos que “não são como os outros”, fechados numa autossuficiência que consola e inebria mas a quem falta coração, fragilidade e proximidade. Não é por acaso que o significado de “fariseu” seja “separado”. A realidade frágil do publicano é condição para o amor, para necessitar do outro e gostar dele, encontrar graça na comunhão, saborear o dom e a partilha. A nossa limitação unida à sede de infinito, relativiza todos os méritos e sobrevaloriza o encontro, tudo o que podemos ser com Deus e com os outros. Que percentagem de fariseu e de publicano seremos nós também? Que graças damos a Deus? Por não ser como os outros, ou por querer ser mais com eles e com Deus?
in Voz da Verdade, 27.102019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8476&cont_=ver2
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Arte mostra que mulheres já lideraram a comunidades cristãs


Várias obras de arte cristãs dos primeiros séculos mostram mulheres em lugar de grande destaque nas assembleias dos crentes. Uma das imagens é a que representa uma mulher, de nome Cerula, encontrada nas catacumbas de São Januário, em Nápoles, em 1971: a mulher aparece de mãos erguidas, tendo sobre a sua cabeça as letras Qui e Ró, que simbolizam Cristo, e dois evangelhos flamejantes ao lado.
As informações foram dadas por Luca Badini, professor e investigador da Universidade de Birmingham (Reino Unido), que é também director de Investigação no Wijngaards Institute for Catholic Research e autor de vários livros sobre a democracia e o ecumenismo na Igreja Católica.
Num encontro promovido pelo movimento Nós Somos Igreja, em Lisboa, a 19 de Outubro, Luca Badini acrescentou que a iconografia e a forma de representar Cerula era habitualmente reservada a líderes de grande estatuto, como os bispos. E a representação desta mulher é apenas uma entre várias que confirma que, no início, as mulheres tiveram também funções de destaque ou mesmo de liderança nas comunidades cristãs dos primeiros séculos.
Para Luca Badini, factos como estes mostram que não há argumentos suficientes para impedir a ordenação de mulheres no catolicismo, sejam elas de carácter baseadas na tradição ou na interpretação das escrituras ou dos textos do magistério. E hoje os avanços sócio-culturais ou as recentes investigações mostram a insustentabilidade de algumas dessas teses, defendeu Badini.
A iniciativa do Nós Somos Igreja – Portugal concluiu a reunião do comité da Women’s Ordination Worldwide (WOW) em Lisboa. A WOW, fundada em 1996 na Áustria, é uma rede de grupos católicos que defende a possibilidade do acesso das mulheres aos ministérios ordenados. O Nós Somos Igreja – Portugal integra também a WOW, a par de outras organizações como a Women’s Ordination Conference, dos Estados Unidos, e a Roman Catholic Women Priests, responsável pela ordenação de sete mulheres no Danúbio em 2002.
(Texto redigido com base em contributo de Pedro Freitas)
in 7Margens,
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Proposta de debate
Sem fazer parte das 3 mulheres sábias*, vou tentar delinear algumas considerações, apresentando uns pontos introdutórios à proposta propriamente dita.
1.  É fundamental que a Igreja (hierarquia e crentes) seja sensível a um dos sinais dos tempos apontado por João XXIII e que não podíamos ignorar, muito antes das vertiginosas mudanças que estamos a atravessar: a entrada das mulheres na vida pública (Pacem in Terris, 41 – 1963).

2.  É fundamental que a Igreja (hierarquia e crentes) gaste algum tempo a estudar o Novo Testamento (NT) acerca do comportamento de Jesus para com as mulheres, acerca da atitude das mulheres que encontraram Jesus ou foram encontradas por Ele para verem como elas compreenderam Jesus muito melhor que os homens.

3.  É fundamental que a Igreja (hierarquia e crentes) tenha sempre presente, na leitura do NT, um pormenor que Mateus nos deixou: sem contar mulheres e crianças (Mt 14, 21; 15, 38). Isto é, mesmo não as contando, não significa que não estejam lá, por exemplo, na Última Ceia, argumento sempre pronto para negar a Ordenação às mulheres: elas não estavam lá. Um argumento destes só mostra que desconhecem ou não querem conhecer – o que é mais grave – a natureza da Ceia Pascal.

4.  É fundamental que a Igreja (hierarquia e crentes) tenha bem presente que o futuro, segundo o espírito cristão, não será garantido com a mera repetição do passado, pois temos o Espírito Santo que faz novas todas as coisas. Como diz o Papa Francisco, «se tudo continua igual, se os nossos dias são pautados pelo “sempre se fez assim”, então o dom desaparece, sufocado pelas cinzas dos medos e pela preocupação de defender o status quo» (Homilia da abertura do Sínodo da Amazónia).

5.  É fundamental que a Igreja (hierarquia e crentes) não deixe que aconteça com as mulheres o que aconteceu com os operários nos finais do século XIX e inícios do século XX. É preciso agir antes que seja tarde.
No meu trabalho com jovens e adultos, tenho dado conta que padres e crentes, quando falo da urgência de ordenar mulheres, têm sempre prontos os argumentos: a casa é o lugar das mulheres como mãe e esposa, a política e o trabalho profissional são para os homens; Jesus acolheu bem as mulheres, mas apóstolos são apenas os homens; as mulheres nunca foram ordenadas; elas não estavam presentes na Última Ceia, não estiveram na “instituição” da Eucaristia. São estas as grandes objecções que tenho ouvido ao longo dos 50 anos de trabalho apostólico.
A minha Proposta é a seguinte: tentarmos fazer “teologia narrativa”, tentarmos criar parábolas, a partir das mulheres do NT e das que estão comprometidas nas comunidades cristãs, hoje, comunidades de grandes carências de toda a ordem; a partir da competência cada vez maior das mulheres em todas as áreas e dimensões da vida, afastando a sombra que ocultou as mulheres na vida da Igreja de Jesus Cristo. Publicar estas narrativas em Boletins paroquiais, Revistas diocesanas, Revistas de Teologia, de modo a criar uma opinião pública.
Tudo isto, observando o que nos pede a 1ª Carta de Pedro: estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança... com mansidão e respeito (3, 15-16), sem fundamentalismos nem fanatismo que só criam anticorpos.
Outubro 2019
Maria Julieta Mendes Dias
NOTA: * Alusão às outras conferencistas



20 outubro 2019


P / INFO: Crónicas
Frei Bento: O PODER DA ARTE
Pe. Anselmo: Procurar longe o que está perto
Pe. Tolentino: Passe-vite
 Pe. Vitor: O silêncio de Deus

O PODER DA ARTE
Frei Bento Domingues O.P.

Toda a grande obra de arte, a começar pela música, levanta sempre a questão da sua humana e divina transcendência, sem a nomear.

1. Escrevi este texto para introduzir uma conversa com este título, na Livraria Arquivo de Leiria. É, por isso, anterior à conversa e não o seu reflexo. É um atrevimento que só me compromete a mim.
A palavra poder evoca realidades muito contrastadas. Tanto pode designar uma pessoa cheia de saúde, capaz de enfrentar os múltiplos desafios da vida quotidiana, como exprimir a debilidade extrema: não poder falar, não poder andar, não poder ver, não poder ouvir, não poder respirar, não poder trabalhar e sentir essas dolorosas ausências. Um hospital mostra esse contraste entre as pessoas que cuidam e os doentes que a elas recorrem porque reconhecem nelas o poder de conseguir remédio para superar o mal que as atingiu.
Fala-se, noutro sentido, da conquista do poder, seja ele económico, político ou religioso, por vias democráticas, legítimas ou, então, do acesso a esses mundos através da violência física e psicológica ou da astúcia fraudulenta. Quando é competente e é conseguido por caminhos eticamente legítimos, acaba por se traduzir em formas de serviço público. Quando segue as vias da fraude e da violência, não se destina a servir e a libertar, mas a dominar. A dominação pode ser económica, política, militar ou religiosa ou agregar todas essas formas, como acontece com o poder totalitário.
2. Perguntam-me qual é o poder de uma obra de arte. Não se confunde com nenhuma das formas já referidas. Não se mede pelo seu alcance utilitário. Não serve para outra coisa melhor do que ela própria. Não é catalogada nas obras de misericórdia, de beneficência ou da maldade. Não copia a natureza, não a duplica nem a representa.
 Diz-se que o poder da arte resulta da capacidade enigmática de certas obras provocarem a ruptura com as evidências convencionais da realidade e de criarem um novo e inconfundível mundo de experiências de fruição estética, pela densidade das emoções que desperta.
Quando se insiste que essas obras não copiam a natureza, não a duplicam, não a representam, procura-se destruir as ilusões que as próprias reconfigurações das obras artísticas podem ocasionar e que impedem o acesso à criação que as torna únicas, inconfundíveis.
        A experiência da fruição estética é uma participação no mundo da imaginação criadora do artista, imaginação liberta e libertadora. Subversiva por ser o que é.
        Numa entrevista a Ai Weiwei, artista chinês, activista, dissidente, preso e exilado, foi-lhe perguntado: a arte pode ser uma ameaça para o poder totalitário? «Acho que sim. Eles passam o tempo todo a dizer às pessoas que são poderosos. No entanto, só são poderosos porque utilizam a violência, recorrendo à força do Exército. É um poder feito de armas. Não são poderosos de pensamento, não são poderosos de espírito. Não são sequer capazes de nos olhar na cara ou ir a uma escola de arte. Não têm qualquer capacidade argumentativa. Que poder podem ter? Quão poderosos podem ser? É por isso que a arte é importante. Fala pelo e através do pensamento das pessoas e não quer saber da violência para nada. A arte tem mais poder do que eles. A arte mostra o poder do pensamento humano, o poder da nossa imaginação»



[1].
3. A arte questiona o mundo das aparências e suscita obras que testemunham o poder da imaginação criadora, provocando emoções de pura beleza. Onde havia apenas uma pedra de mármore, Michelangelo extraiu a sua Pietà, que não estava na pedra, mas no poder da sua imaginação transfiguradora, presente em todas as formas de arte, seja no campo da música, da literatura, do teatro, da pintura, da escultura ou da arquitectura.
Todas essas formas tiveram, ao logo da história dos povos e das culturas, as expressões mais surpreendentes e todas suscitam a mesma pergunta: o que há de especial nessas expressões que as torna autênticas obras de arte e lhes dá um poder de sedução inconfundível?
Essa resposta deveria surgir daquilo que se chama estética, mas esta lida com o enigma. Não existe uma ciência objectiva para discernir o que é e o que não é uma obra de arte. Quando é que o arranjo dos sons produz uma música sublime? Quando é que o arranjo das palavras produz um poema, um romance, um conto aos quais se volta sempre? Quando é que o arranjo das cores produz uma pintura que desloca multidões para a contemplar? Quando é que o trabalho sobre a madeira ou a pedra produz uma escultura? Quando é que a construção de um espaço constitui uma obra de arquitectura?
Entre os muitos arranjos das palavras, dos sons, das cores, dos trabalhos em madeira, pedra ou metal uns são considerados obras de arte impressionantes e outros são considerados irrelevantes, banais, para não dizer pirosos ou foleiros. A divulgação da mediocridade encadernada, pintada ou musicada, servida por alguns meios de comunicação, tem o enorme poder de poluir o gosto, impossibilitando uma autêntica experiência estética.
De matérias banais podem ser feitas obras geniais e de matérias nobres podem sair produtos que só o mau gosto pode consumir.
Sem evocar, aqui, os grandes monumentos da Ásia, da Índia, das Américas, da Europa, podemos perguntar o que seria, por exemplo, da Itália sem o poder das suas imensas obras de arte? Que seria de Paris sem a catedral de Notre Dame? Mais perto de nós, que seria de Lisboa sem os Jerónimos, de Alcobaça sem o seu mosteiro, da Batalha sem o convento de Nossa Senhora das Vitórias, de Tomar sem o convento de Cristo?
Qual é o poder de todas essas obras, para além do lucro económico que o turismo consegue? Não sei responder. Verifico, apenas, que testemunham de uma beleza que, se os seus suportes materiais pudessem, seria eterna. Os seus autores morrem, elas não. Toda a grande obra de arte, a começar pela música, levanta sempre a questão da sua humana e divina transcendência, sem a nomear. Provocam emoções que nenhum mundo pode conter, porque são a reconfiguração de um mundo que excede todos os mundos. A sua materialidade sugere o imaterial, porque a sua linguagem é sempre metafórica, de múltiplas significações, inesgotáveis e resistentes a qualquer comentário.
Deixo, para uma próxima oportunidade, o comentário de uma obra apresentada, na passada quinta-feira[2], que testemunha, o poder que a arte moderna tem de evocar, na sua imanência, a transcendência humana e divina.

in Público, 20. 10. 2019
https://www.publico.pt/2019/10/20/culturaipsilon/opiniao/arte-1890546





[1] Por Alexandra Carita, Revista do Expresso, 12. Outubro, 2019, pp.34-40
[2] João Alves da Cunha e João Luís Marques (Coord.), Dominicanos. Arte e arquitectura portuguesa. Diálogos com a Modernidade, Edição de CEHR UCP e do ISTA, 2019.

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Procurar longe o que está perto
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Três estórias.
1.
    1.1 O grande filósofo Martin Buber, no seu livro Der Weg des Menschen (O Caminho do Homem), retomou a estória de Eisik filho de Yékel, de Cracóvia.
Apesar da sua miséria, nunca deixou de confiar em Deus. Num sonho, foi-lhe ordenado que fosse a Praga "para procurar um tesouro debaixo da ponte que leva ao palácio real". Quando o sonho se repetiu pela terceira vez, Eisik pôs-se a caminho de Praga, a pé. Mas não podia escavar no lugar indicado, porque a ponte era vigiada dia e noite pelas sentinelas. Voltava todas as manhãs, andando para trás e para a frente durante o dia todo. Por fim, o capitão da guarda, intrigado, aproximou-se amavelmente para se informar do que se passava, o que quereria Eisik: "Tinha perdido alguma coisa ou estava à espera de alguém?" Aí, Eisik, dada a cordialidade do capitão, contou-lhe o seu sonho, e o capitão estoirou às gargalhadas: "E é para satisfazer um sonho que vieste de tão longe, gastando as solas no caminho? Ah! Ah! Meu velho, se fôssemos em sonhos, também eu deveria pôr-me a caminho por causa de um sonho que tive e ir a Cracóvia a casa de um judeu, um tal Eisik filho de Yékel, para procurar um tesouro debaixo do forno! Já viste? Nessa cidade, na qual metade dos judeus se chama Eisik e a outra Yékel, estou mesmo a ver-me a entrar, umas atrás das outras, nas casas todas!"

O capitão continuava a rir. Eisik inclinou-se numa saudação, voltou à sua casa em Cracóvia e desenterrou o tesouro que há tanto tempo o aguardava!

1.2. Também se conta que uma vez um peixinho muito jovem foi ter com outro peixinho, também jovem, para perguntar-lhe: "Onde é o oceano?" Ele respondeu-lhe: "Também já fiz a mim mesmo a pergunta, mas não sei responder." Foi então perguntar a um peixe mais velho, que soberanamente se movia no oceano: "Onde é o oceano? Ninguém me sabe responder." E o mais velho: "Então tu nasceste no oceano, nadas no oceano, vives no oceano e perguntas onde é o oceano?!"

1.3. A terceira estória é uma velha lenda hindu, retomada pelo teólogo Jean Vernette.

Houve um tempo em que todos os homens eram deuses, mas, tendo abusado da sua divindade, o senhor dos deuses, Brama, decidiu retirar-lhes o poder divino. O problema foi encontrar um lugar onde escondê-lo, de tal modo que fosse impossível o Homem reencontrá-lo. Os deuses menores foram convocados e aconselharam a meter a divindade do Homem na terra. Mas Brama respondeu que o Homem havia de escavar e encontrá-la. Então, lancemos a divindade ao mais profundo dos oceanos, replicaram os deuses. Mas Brama disse: "Não, pois, mais cedo ou mais tarde, o Homem há de explorar os oceanos até às profundezas, encontrá-la-á e voltará com ela para a terra." Os deuses menores não encontravam solução, concluindo: "Não sabemos onde escondê-la, já que não parece existir nem na terra nem no mar lugar que o Homem não possa um dia alcançar." Então, Brama disse: "Eis o que faremos da divindade do Homem: vamos escondê-la no mais profundo dele mesmo, pois será o único lugar onde ele nem sequer pensará em procurar..."

E, desde então, como ensina o breve apólogo do Vedanta, o Homem deu a volta à Terra, explorou, subiu, mergulhou e escavou... à procura - longe, muito longe dele -, à procura de algo que se encontra nele, no mais íntimo dele...

2. Agora, já não é uma estória, mas história. Cito o discurso célebre de São Paulo no Areópago. Em Atenas: de pé, no meio do Areópago, Paulo disse então: "Atenienses, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: Ao Deus desconhecido. Pois bem! Aquele que venerais sem o conhecer é esse que eu vos anuncio. O Deus que criou o mundo e tudo quanto nele se encontra. Ele, que é o Senhor do Céu e da Terra, não habita em santuários construídos pela mão do Homem nem é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, Ele, que a todos dá a vida. Que os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-lo, mesmo tateando, embora não se encontre longe de cada um de nós. É n'Ele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: 'Pois nós somos também da sua estirpe'."
in DN, 20.10.2019
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/20-out-2019/procurar-longe-o-que-esta-perto--11424143.html
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
PASSE-VITE

A VELHICE APRESENTA INTERROGAÇÕES E DILEMAS ESPECÍFICOS, MAS É BEM MAIS DO QUE UMA IMAGEM ESTEREOTIPADA

A patente deste equipamento de cozinha tem registo datado de 1928, em nome do inventor belga Victor Simon, mas a verdade é que o famoso ralador de inox, mais ou menos se universalizou, e por duas razões: passa depressa os alimentos e deixa-os com uma consistência que facilita a deglutição. Dá que pensar a expressão “passe-vite”. De facto, não são apenas os legumes que giram em velocidade entre as hélices do ralador. Da nossa própria vida podemos dizer que um dos seus traços é esse: no seu trânsito frágil, fascinante e inelutável, ela passa depressa. Tenho um bando de amigos que, pesando tudo isso, se autodenominou ‘passe-vite’. Cruzaram-se nos tempos de universidade, cimentaram a amizade nessa outra escola de vida que é o voluntariado social, maturaram as próprias escolhas na partilha da palavra e do silêncio, da fé e da procura. Há anos que se encontram regularmente, que se encontram a bem dizer por nada, apenas no desejo de regar as raízes do seu futuro comum, pois a conspiração que os anima é a de, na velhice, poderem viver todos juntos (na mesma casa, no mesmo lar, na mesma jangada, no mesmo bosque). Um dia convidaram-me para um desses encontros, e sinto também que por nenhuma razão em especial: queriam simplesmente estar, estar com a pessoa, mais do que ouvir falar sobre um tema. Foi aí que me explicaram a rir o seu projeto, esclarecendo que, entre eles se chamavam assim, “porque a vida passe vite e porque quando arrancarem finalmente com a comunidade de idosos terão já de comer a paparoca mais passada”. Primeiro ri com eles até às lágrimas, com a sua louca e sapientíssima ligeireza, mas depois dei por mim só com lágrimas descendo-me pelo rosto, pois aquele bando de jovens adultos, que aparentemente não queria nada, me estava afinal a mostrar oceânicas profundezas da vida.

Cada um de nós envelhece à sua maneira, com a sua própria dicção e os seus limites, os seus contextos e os seus sonhos, mas temos muito que aprender uns com os outros

Recordei-me deles estes dias ao ler um livro de Marta C. Nussbaum e Saul Levmore, amigos de longa data e colegas na Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, intitulado “Envelhecer Com Sabedoria. Diálogos Sobre a Vida, o Amor e o Remorso”. E a lição que se retira dessas conversas entre a filósofa e o jurista é que há um défice de pensamento sobre a velhice que se torna urgente inverter. Cada um de nós envelhece à sua maneira, com a sua própria dicção e os seus limites, os seus contextos e os seus sonhos, mas temos muito que aprender uns com os outros. E a verdade é que falamos pouco sobre isso ou, pelo menos, não de forma suficiente e aberta. Trata-se, no fundo, de preparar juntos uma etapa da vida como, a seu tempo, foi acompanhada a infância, a iniciática adolescência ou cada um dos ciclos da vida adulta. E da mesma maneira que, nessas outras etapas, também o discurso das competências externas e dos recursos internos se deve colocar. A velhice apresenta interrogações e dilemas específicos, mas é bem mais do que uma imagem estereotipada. Associadas às dores há o saborear de alegrias talvez ainda não experimentadas. A par das preocupações, é possível provar, não raro, uma serena liberdade na forma de estar com os outros, uma compreensão mais ampla e maturada do real, uma criatividade mais afetuosa e menos temerosa. No meio de tanta transformação que a velhice comporta, ela permite enfrentar não só a perda, mas também o amor; não só a solidão, mas também formas novas de presença e companhia; não só a avolumar das necessidades, mas também o gratuito perfume do dom. A velhice pode ser uma oportunidade para viver de forma mais reconciliada, pacificadora, espiritual e atenta, na fidelidade a essa arte que nos está confiada: a de dizer e redizer infinitamente o amor.

in Semanário Expresso, 18.10.2019 p164

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2451/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/passe-vite

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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XXIX COMUM Ano C
“Deus não havia de fazer justiça aos seus eleitos,
que por Ele clamam dia e noite,
e iria fazê-los esperar muito tempo?”
Lc 18, 7

O silêncio de Deus
Para que serve a oração? É uma pergunta colocada numerosas vezes. Muitas pessoas, de todas as religiões, dizem rezar todos os dias de mil e uma maneiras diferentes. É talvez o elemento religioso por excelência que une os crentes: falar com Deus, escutar o que Ele diz. E qual a importância da oração? Gonçalo M. Tavares, no seu livro “Aprender a rezar na era da técnica”, apresenta a oração e, substancialmente o silêncio que ela proporciona, em contraste com a “omnipotência” humana de um homem que vive dominado pela conquista de poder.
Se a oração é diálogo, abertura e encontro, é preciso despojarmo-nos de a instrumentalizar. Um ancião passava em silêncio longas horas na Igreja. Um dia, um sacerdote perguntou-lhe o que Lhe dizia Deus. “Deus não diz nada. Só escuta!” “Então, o que é que você lhe diz?”. Sorrindo, o ancião respondeu: “Eu também não digo nada. Só escuto!” Diálogo de surdos, dirão alguns; silêncio de namorados, retorquirão outros! Será certamente um “silêncio habitado”, aquele onde tudo pode acontecer.
É o silêncio de Deus que mais “fere” quem lhe pede graças tão importantes como a justiça, a saúde de alguém que se ama, a paz sempre adiada, a vida um pouco melhor. Mas a parábola deste domingo, sublinha a paciência e a persistência de quem pede. Jesus confirma o poder da oração, mesmo naquilo que depende do coração dos homens. O juiz iníquo não mudará a sua atitude profunda, mas vencido pela insistência da mulher, irá realizar o que lhe pede. É a forma de “Deus escrever direito por linhas tortas” como o povo aprendeu a descobrir? A desculpa de que “não temos tempo”, a imediatez que impomos a tudo, a facilidade de “passar a bola a Deus” demitindo-nos do nosso esforço, não nos impedirão de ouvir o que Deus nos diz no seu silêncio? Quantas guerras e injustiças não seriam vencidas pela força de homens e mulheres a enfrentar aqueles que as alimentam?
Os braços abertos de Moisés para Deus, no meio da batalha, davam força ao seu povo. E mostram o primeiro fruto da oração: receber a força de viver, a força de amar, de perdoar e de dialogar, de abrir-se ao outro e de partilhar. É a atitude da viúva que nos dá o segundo fruto da oração: a coragem de insistir, e a paciência de esperar. Deus não é indiferente nem surdo ao que lhe dizemos. E nós, com que fé rezamos, com que fé vivemos e nos convertemos? Se a resposta de Deus a todas as nossas súplicas é a vida de Cristo, oferecida plenamente na Páscoa, como passamos da exigência de “tem de ser como eu desejo” à humildade de “nas tuas mãos entrego o meu espírito?”
Jesus não rezava para nos dar exemplo. É a condição natural de quem é filho e sabe que é amado pelo Pai. Estar e conversar com quem se ama não é uma das maiores felicidades? E tudo ganha luz nesse encontro. O silêncio fica grávido de vida. Os impossíveis transfiguram-se, as forças renovam-se, a comunhão abraça-nos. Não é fuga mas compromisso com a vida. Começando a amá-la como é e trabalhando para que seja plena. Como não encontrar tempo para este milagre?
in Voz da Verdade, 20.10.2019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8458&cont_=ver2