P / INFO:
Crónicas, Arte mostra que mulheres já lideraram comunidades cristãs &, em
anexo, proposta da Irmã Maria Julieta Mendes Dias (rscm) para o debate do WOW, que se realizou em Lisboa, na semana
passada.
Frei Bento: Sínodo pan-amazónico: o debate
continua
Pe. Anselmo: Três grandes feridas do nosso
tempo
Pe. Tolentino: A vida quotidiana
Pe. Vitor: Ser com os outros
SÍNODO
PAN-AMAZÓNICO: O DEBATE CONTINUA
Frei Bento Domingues, O.P.
1.
O Sínodo Pan-Amazónico começou
no passado dia 6 e termina hoje. Já é possível o acesso ao resultado dos
debates dos diferentes grupos que nele participaram. Também já foi comunicada a
proposta do documento final. No momento em que escrevo, ainda não a conheço. A
sua discussão foi o trabalho da passada semana.
Lendo os textos dos diversos grupos,
fica-se com a sensação de que o sínodo não foi mais do mesmo. Houve livre,
verdadeira e corajosa discussão, como tinha pedido o Papa. Por sua natureza, o Instrumentum laboris era um documento
“mártir”, destinado a ser destruído nos debates sinodais. Poder-se-á dizer que
as propostas mais novas já vinham sendo debatidas em vários grupos e
movimentos, sobretudo depois do espaço aberto por João XXIII e pelo Concílio
Vaticano II. O que agora parece óbvio e urgente, do ponto de vista teológico e
pastoral, foi a cruz de alguns teólogos e, em especial, de Edward
Schillebeeckx, O.P., desde os anos 80 até à sua morte. Considerava-se um
teólogo feliz. Nunca o conseguiram condenar, mas o cardeal Ratzinger
perseguiu-o até ao fim.
Os três temas
mais salientes nos grupos de trabalho, para além da questão básica e
incontornável da ecologia, são: a autorização de um rito católico amazónico para viver e celebrar a fé em Cristo; mais
responsabilidades para as mulheres na comunidade eclesial; e a possibilidade de
ordenar homens casados[1]. Quanto
ao primeiro ponto, faz parte de um longo trabalho de inculturação da liturgia
ensaiado, com mais ou menos êxito, em vários países, embora a pluralidade de
ritos não seja uma novidade na história da Igreja. No entanto, a proposta é
mais abrangente. Sublinha o aspecto espiritual, teológico, litúrgico e
disciplinar para exprimir a riqueza singular da Igreja Católica na Amazónia.
Quanto ao segundo, as propostas não são muito ousadas. Infelizmente, ficam pela
possibilidade da ordenação de mulheres diaconisas, uma ocasião perdida para não
se discutir, em sínodo, uma outra possibilidade: a da ordenação presbiteral de
mulheres. Ainda nos dias 16 e 17 deste mês se reuniu, em Lisboa, um movimento
mundial a exigir este reconhecimento[2]. No
terceiro, discutiu-se a possibilidade de ordenar homens casados, o que não
aconteceu para as mulheres, sejam solteiras ou casadas. Na Igreja dos primeiros
tempos, a condição mais frequente já era a de homens casados. O que mais se
teima em desconhecer é o que está mais claro nos textos no Novo Testamento:
foram elas, as Mulheres, as encarregadas por Jesus ressuscitado de evangelizar
os próprios apóstolos, desanimados com a morte horrorosa do Mestre.
2. Se, no momento em que escrevo,
ainda nem sequer conheço a proposta final entregue ao Papa, muito menos o que o
Papa fará do conjunto dos debates que agitaram este sínodo. Seja como for,
aconteça o que acontecer, o tabu em torno dos ministérios ordenados perdeu o
seu prestígio, o prestígio da ignorância. Como todos os cristãos estão
convidados por S. Pedro a dar razão da sua esperança e, como por outro lado, o
debate se tornou público dentro e fora da Igreja, a discussão em ordem a
decisões de prática pastoral vai continuar, sem motivo de falsos escândalos
para ninguém. Aprofundar a Fé, sob o ponto de vista afectivo e cultural, deve
ser o estatuto de todos os fiéis. Não é só matéria para teses de mestrado e
doutoramento. A prática teológica especializada é uma exigência de toda a
Igreja e para o serviço de toda a Igreja, não para engrossar a casta dos
fariseus, sem misericórdia para os problemas das populações, religiosas ou não.
O Papa
Francisco tem o carisma de meter o conjunto da Igreja em trabalhos. Não tem a
mania que sabe tudo, não se guia pelos atributos da infabilidade, porque
acredita que pertence a toda a Igreja o dever de assegurar a fidelidade à
presença do Espírito de Cristo, em todos os tempos e lugares. Não convoca
reuniões para o ritual de repetir o que já foi feito no passado. Como diz
Isaías: não penseis mais no passado, pois
vou realizar algo de novo, que já está a aparecer: não o notais?[3]
3. Não basta dizer que a Amazónia,
por questões climáticas, é fundamental para toda a humanidade. Sob o ponto de
vista cristão, o que ali está a ser ensaiado deve repercutir-se nas Igrejas do
mundo inteiro, se elas quiserem respirar estes novos tempos.
Para as
pessoas e grupos económicos, políticos e religiosos, que viram com maus olhos a
convocatória do sínodo e quiseram policiar e perturbar o desenrolar dos seus
trabalhos, este dia do seu encerramento pode ser sentido como um grande alívio:
sínodo realizado, sínodo amortalhado, um
mau momento para esquecer. Aquele imenso território, com tantos recursos a
explorar pelas multinacionais, não pode continuar nas mãos de povos atrasados e
subdesenvolvidos.
O Papa abriu
o sínodo a partir da sua própria experiência, confessando que, no seu próprio
país, o slogan “civilização e barbárie” serviu para
dividir e aniquilar a maioria dos povos originários, porque eram “bárbaros” e a
“civilização” provinha de outro lugar. Acrescentou que o desprezo dos povos
continua ainda hoje, na minha terra natal, com expressões ofensivas, ou então
falamos de civilizações de segundo nível, as que vêm da barbárie.
Isto não fez perder, a Bergoglio, o
humor certeiro e anticlerical: «Ontem fiquei desapontado por ouvir um
comentário sarcástico sobre aquele homem devoto que levou as oferendas com
penas na cabeça. Dizei-me: qual é a diferença entre colocar penas na cabeça e o
“tricórnio” usado por alguns oficiais nos nossos dicastérios? Assim, corremos o
risco de propor medidas simplesmente pragmáticas, quando, pelo contrário, nos é
pedida uma contemplação dos povos, uma capacidade de admiração, que façam
pensar de forma paradigmática. Se alguém vier com intenções pragmáticas, que
recite o “eu pecador”, que se converta e abra o coração a uma perspectiva
paradigmática que nasce da realidade dos povos»[4].
O sínodo realizou-se em Roma. A grande
periferia veio para aquele lugar que se julgava o centro da cristandade. Não é
uma extravagância, um gesto exótico, é a proclamação da nova realidade da
Igreja e do mundo. Sejam quais forem as medidas de prática social ou pastoral,
esta foi uma mensagem paradigmática: o centro da Igreja já não está em Roma,
mas no coração dos Povos.
in Público, 27. 10. 2019
https://www.publico.pt/2019/10/27/mundo/opiniao/sinodo-panamazonico-debate-continua-1891234
[1]
Sobre os temas, debates, entrevistas sobre o Sínodo aconselho o jornal online 7Margens.
[2]
Women's Ordination Worldwide (WOW). A proposta
de Maria Julieta Mendes Dias para essa reunião é um exemplo do que se deve
pedir, exigir a este grupo.
[3]
Is 43, 18-19
[4]
Aconselho a leitura do discurso do Papa, na íntegra, no site do Vaticano, em Discursos (7. 10. 2019).
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Três grandes feridas do nosso tempo
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
1. Todas as épocas têm as suas características, as suas
vantagens e os seus perigos e ameaças. O nosso tempo sofre de três grandes
feridas que nos levam à inquietação e à incerteza, contribuindo para a solidão,
não a solidão habitada, necessária para estar consigo e com os outros na
profundidade, mas a solidão do abandono.
2. Essas feridas são, como explica José María Rodríguez
Olaizola num belo livro, Bailar con la soledad, a que já aqui me referi e no
qual me inspiro: a do amor, a da morte, a da fé.
2. 1. A ferida do amor.
Hoje, vivemos num mundo no qual o amor na sua permanência se
tornou efémero e inseguro. Quem diz hoje, de modo seguro: amor “para sempre”?
Quando se olha para as estatísticas, não é antes o “enquanto durar” que está em
vigor? Aconselhava-me há dias alguém, por ocasião da celebração dos 50 anos de
casamento de uns amigos meus, a que presidi: por este andar, comece a celebrar
os 10 anos, os 20 anos de casados das pessoas, porque isto das bodas de prata e
de ouro, aos 25 e 50 anos, é cada vez mais raro e a acabar... Como é sabido,
Portugal está na frente quanto à percentagem de divórcios (há um divórcio por
hora em Portugal) e em Espanha os casamentos duram em média 16 anos...
Razões? Certamente, o aumento da esperança de vida é uma
delas: o que antes eram 20 ou 30 anos de casamento agora poderão ser 50. Assim,
porque não desfrutar de dois ou três casamentos mais? Por outro lado, numa
cultura do descartável, da fuga ao sacrifico e à renúncia e do culto da
superficialidade, o que fica é também a incapacidade do compromisso definitivo.
Como escrevia uma jovem: “Queremos comprometer-nos um pouco, mas não cem por
cento.” E o sociólogo Zygmunt Bauman, referindo-se ao “amor líquido”: Se
estamos continuamente a deitar fora automóveis, computadores, telemóveis ainda
em perfeito estado, para os trocarmos por novas versões melhoradas, “haverá
porventura uma razão para que as relações de casal sejam uma excepção à regra?”
Está aí o paradoxo, ouvi eu pessoalmente Bauman a dizer: Por um lado, na
presente instabilidade, deseja-se profundamente um amor estável para toda a
vida, mas isso é incompatível com a disponibilidade para a abertura a novas
oportunidades que apareçam...
A pergunta é se as pessoas são mais felizes. O Papa
Francisco, em A Alegria do Amor, fala de várias feridas do amor: o amor
egoísta; a falta de tempo para o encontro, para o diálogo, para a escuta; a
paternidade/maternidade egoísta ou negada; as expectativas demasiado altas,
irrealistas e, consequentemente, defraudadas... O que daí se segue, citando o
Sínodo sobre a Família: “Uma das maiores pobrezas da acultura actual é a
solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das
relações.” Vale a pena bater-se por uma família estável, pois é esteio para uma
vida feliz e é o melhor lugar para ter filhos e educá-los. A desestruturação da
família é um dos perigos maiores para o nosso mundo.
2. 2. A ferida da morte.
Muitas vezes tenho aqui sublinhado que uma característica
essencial da nossa sociedade é a morte enquanto tabu. Disso não se fala. Não é
de bom tom. Como aceitar falar da morte numa sociedade na qual o que se
valoriza é o ter, o sucesso? Este é o paradoxo: por um lado, nada mais certo do
que a morte; por outro, a sua ocultação. E aqui reside a pobreza da nossa
sociedade: na obturação das perguntas essenciais e da verdade da vida, na tentação
do auto-engano, perde-se a perspectiva da existência autêntica. Para ser o que
é, vivendo na superficialidade, na corrupção, na vaidade oca e vazia, no
esquecimento do essencial e do que verdadeiramente vale, esta sociedade tem de
ignorar o pensamento da morte. De facto, confrontados com a morte,
repentinamente tudo muda, as decisões são outras, porque aquilo que parecia
decisivo aparece então a outra luz: banal e prescindível.
J. M. Rodríguez Olaizola refere uma experiência muito
significativa. Pelo Natal de 2015, um conjunto de organizações quis fazer um estudo sobre percepções, prioridades
e valores dos jovens madrilenos. Para isso, juntaram um grupo e foram
perguntando, um a um, que prendas pensavam dar nesse Natal a uma pessoa muito
significativa (na maioria dos casos, tinham indicado os pais). As respostas
eram alegres, vulgares, mais ou menos originais. Mas, depois, seguia-se uma
nova pergunta: E se soubesses que estas são as últimas prendas que vais
oferecer, pois essa pessoa vai morrer, este é o último Natal que vais passar
com ela? Aí, de repente, os rostos contraíam-se, o silêncio era todo, as
palavras arrastavam-se, e as respostas surgiam cheias de profundidade, cuidado,
emoção, intensidade. E a perspectiva do fim dava outra orientação às prendas,
havia outra profundidade. Nesse cenário, as prendas estavam “carregadas de
sentido, significado e ternura”. A consciência da morte dá outra sabedoria ao
viver.
2. 3. A ferida da fé.
Durante séculos, viveu-se no Ocidente numa sociedade crente.
A fé era o que poderíamos dizer uma evidência social, de tal modo que o difícil
era ser não crente, pois os não crentes eram estigmatizados e até perseguidos.
Claro que havia o perigo de uma fé imposta, mas a cosmovisão comum era
religiosa e, portanto, era mais fácil ser crente, aceitar a fé e praticá-la: as
pessoas acreditavam, rezavam, celebravam naturalmente em conjunto.
Hoje, as coisas são diferentes, muito diferentes. A liberdade
religiosa é — e ainda bem — um valor inquestionado. A fé e a religião estão submetidas
à crítica, por vezes ácida, por parte da filosofia, da ciência e da opinião
pública, também no contexto de um laicismo agressivo. As estatísticas mostram
que a religião está em queda acentuada. Os valores são cada vez mais os da
autonomia, do individualismo, do hedonismo, e talvez nunca como hoje se tenha
afirmado tanto o valor desta vida terrena em contraposição com a vida eterna,
desvalorizada.
Como escrevia recentemente José Antonio Pagola, “depois de
séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a
viver em minoria.” E o mais difícil é que, neste contexto, a própria fé pessoal
dos crentes está submetida à ameaça de erosão. Porque é mais confrontada com
dúvidas que podem ou querem apresentar-se com carácter científico: como
acreditar na vida eterna, se a ciência não precisa do espírito para explicar o
Homem?; onde está Deus, se o mundo se auto-explica?
Mais dramáticos serão os dilemas, as encruzilhadas e as
perguntas que concretamente o mistério de um Deus silencioso coloca. Porque é
que existe o mal? Perante o sofrimento cruel, a eterna pergunta: Porque é que
Deus não intervém? Que amor é o seu, se é infinitamente bom e poderoso e nem
sequer parece sensível ao sofrimento dos inocentes? A fé é hoje um combate mais
duro, e, escreve J. M. Rodríguez Olaizola, “o crente tem que aprender a manter
a sua fé um pouco contra a corrente. A eterna dúvida ou o abismo perante o
silêncio de Deus é hoje um desafio enorme para os crentes, que vêem que outros
parecem viver de modo estupendo sem necessidade de referir-se a nenhuma
religião nem a nenhuma divindade.” Porque é que Deus não se manifesta de modo
claro, parecendo, pelo contrário, por vezes, que nos abandona?
A situação não é cómoda, é muito mais exigente. Mas será
preciso ver e aproveitar as suas vantagens, para despertar uma fé tantas vezes
infantilizada e acomodada, inerte, numa Igreja que, aprisionada por um sistema
clerical, corre o risco se tornar cada vez mais um museu de antiguidades.
Caminharemos cada vez mais para uma Igreja de voluntários, na qual a fé convive
com um combate pessoal, numa entrega
única e confiada ao mistério do Deus silencioso e salvador. Com razões e todas
as consequências na vida, seguindo o exemplo de Jesus e rezando aquelas
palavras do Evangelho: “Senhor, eu creio, aumenta a minha fé”. Neste processo,
o crente autêntico concluirá e até talvez possa mostrar a outros que a fé é
mais razoável do que não acreditar. E poderá ainda aperceber-se de que Deus não é uma
necessidade, mas “um luxo”, como me disse uma vez o grande teólogo Edward
Schillebeeckx. Como uma rosa que se dá, sem porquê. Gratuitamente.
in DN, 27.10.2019
https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/tres-grandes-feridas-do-nosso-tempo--11446441.html
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QUE
COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ
TOLENTINO MENDONÇA
A vida quotidiana
O QUOTIDIANO MUITAS VEZES SE PARECE
A UM CAMPO FECHADO, A UMA ARENA BAÇA ONDE TRAVAMOS, A CUSTO, A LUTA PELA
SOBREVIVÊNCIA
Valoriza-se
pouco a vida quotidiana. Sentimo-nos aprisionados pelas rotinas, num rame-rame
monocórdico capaz de nos fazer hibernar a nós e ao universo. Ou vemo-nos então
num vórtice ofegante de tarefas para as quais só temos esforço, aceleração e
cansaço, e não respostas. O quotidiano muitas vezes se parece a um campo
fechado, a uma arena baça onde travamos, a custo, a luta pela sobrevivência (e
apenas essa), no meio dos obstáculos e contrastes que o tempo (esse lutador
mais exímio do que nós) nos vai lançando. “Quando penso no quotidiano, o
infinito parece-me uma coisa mais distante” — confidenciou-me, um dia, uma
amiga. E ela queixava-se de como o dia a dia pode ser disfuncional,
ensurdecedor, áspero e dissonante; de como sendo nossa, a existência diária também
nos despersonaliza e torna maquinais mesmo aqueles gestos onde quereríamos
tanto estar inteiros. É comum ouvir testemunhos desta dilaceração, como se
estivéssemos condenados a descobrir o quotidiano como um domicílio afinal
estranho e equívoco, uma porta familiar que nos resiste, e que as nossas chaves
abrirão sempre com maior dificuldade. Ou, pior ainda, quando dos nossos
quotidianos passamos a anotar, com ressentimento, só o cinzentismo uniforme e
nervoso, o pulsar descontente, a energia medíocre e incompleta, o que nos
parece ser a sua insuportável banalidade, o seu embotamento penoso, uma gaguez
não de palavras, mas de entusiasmo e de amor.
O quotidiano é o barco e a viagem. É
o barro e a obra a construir. É o espelho turvo, mas é também o lugar onde a
promessa da visão nítida se tateia
E,
contudo, sem desmentir esta exigência que é também real, sem negar o seu peso
que amiúde nos vence, precisamos de nos reconciliar com o quotidiano. Pois, na
sua forma vulnerável e até contraditória, ele é o lugar das aprendizagens mais
amplas, dos encontros mais decisivos, das experiências mais profundas e
iluminantes. A vida, se a olharmos bem, não é igual todos os dias. Os dias, se
os abraçarmos bem, não são uma antologia de momentos opacos e quebradiços. Os instantes
não são lampejos ocasionais sem sentido, nos quais não devemos confiar. O
quotidiano é o barco e a viagem. É o barro e a obra a construir. É o espelho
turvo, de que São Paulo fala no célebre hino da Carta aos Coríntios, mas é
também o lugar onde a promessa da visão nítida se tateia. Por isso, em vez de
sonolência ele pede-nos que abramos verdadeiramente os olhos. Em vez de
indiferença e recusa, ele espera de nós empenho, fidelidade e esperança.
Lembro-me
muitas vezes da forma como começa um dos contos de que mais gosto de Sophia de
Mello Breyner Andresen. O conto chama-se “O Silêncio” e penso que é de tudo
isto que fala: do que a vida quotidiana nos pede e nos dá, do que ela leva de
nós e daquilo que deixa como legado. E legado não só à superfície, mas no âmago
do próprio viver. O texto não podia arrancar de forma mais exata, e tem a
cadência concisa e repetitiva de uma descrição ritual. Ei-lo: “Era complicado.
Primeiro deitou os restos de comida no lixo. Depois passou os pratos e os
talheres por água corrente debaixo da torneira. Depois mergulhou-os numa bacia
com sabão e com água quente e, com um esfregão, limpou tudo muito bem. Depois
tornou a aquecer a água e deitou-a no lava-louças com duas medidas de Sonasol e
de novo lavou pratos, colheres, garfos e facas. Em seguida passou a loiça e os
talheres por água e pô-los a escorrer na banca de pedra. As suas mãos tinham
ficado ásperas, estava cansada de estar de pé e doíam-lhe um pouco as costas.
Mas sentia dentro de si uma grande limpeza como se em vez de estar a estar a
lavar a loiça estivesse a lavar a sua alma.”
in Semanário Expresso, 11.10.2019 p.153
http://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2452/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/a-vida-quotidiana
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XXX COMUM Ano C
“Meu Deus, dou-Vos graças
por não ser como os outros homens.”
Lc 18, 11
Releio
com imenso gosto os autos de Gil Vicente, convicto de quem nenhum outro
dramaturgo português criou figuras-tipo como ele. Personagens que são maiores
que as pessoas que representam e capazes de nos fazer “enfiar a carapuça” em
muitas das suas palavras e atitudes. E dele me lembrei ao confrontar-me com
esta parábola de Jesus que conhecemos como “do fariseu e do publicano”. Quase
esquecemos que S. Lucas a contextualiza com uma apresentação: “para alguns que
se consideravam justos e desprezavam os outros”. E pensamos: “Não é para nós,
claro!”
O
templo é o lugar que atrai os dois, com o propósito comum de orar a Deus. Somos
introduzidos por Jesus nas palavras que ambos dirigem a Deus. Moralmente, o
fariseu é irrepreensível, e o publicano bastante reprovável. Mas será isso que
está em causa? Poderemos reprovar o zelo da Lei que o publicano apresenta? Ou
concordar com o que era frequente os publicanos, cobradores dos impostos
públicos a favor da governação romana, faziam aos seus conterrâneos,
enriquecendo ilicitamente? Não, a questão é mais profunda.
O
fariseu incensa-se diante de Deus. Apresenta os seus méritos, enaltece as suas
virtudes, apresenta faturas do que acha que Deus lhe deve pagar por ser tão
cumpridor. Está na situação limite do “face-a-face” com Deus mas como se se
olhasse ao espelho, sem nunca abrir o coração, nem sentir qualquer fragilidade.
Começa mesmo por “dar graças” por não ser como os outros: com tantos méritos,
investe-se em julgar e condenar os outros. Será que nunca sentimos uma pontinha
de tudo isto dentro de nós? O publicano, à distância, de olhos baixos, bate no
peito. Apresenta-se como pecador e pede compaixão. Sabe que tem um trabalho
“pecaminoso” segundo a lei, que é um vendido aos opressores romanos, e é
também, porventura, ladrão, pois era costume cobrar-se um pouco a mais. Não se
justifica nem apresenta atenuantes; simplesmente rasga o coração. Sente-se
frágil e reconhece a grandeza de Deus. Quantas vezes não foi também esta a
nossa oração?
A tentação
religiosa do fariseu marca muitas expressões religiosas. O condomínio
privilegiado dos perfeitos, dos cumpridores, dos que “não são como os outros”,
fechados numa autossuficiência que consola e inebria mas a quem falta coração,
fragilidade e proximidade. Não é por acaso que o significado de “fariseu” seja
“separado”. A realidade frágil do publicano é condição para o amor, para
necessitar do outro e gostar dele, encontrar graça na comunhão, saborear o dom
e a partilha. A nossa limitação unida à sede de infinito, relativiza todos os
méritos e sobrevaloriza o encontro, tudo o que podemos ser com Deus e com os
outros. Que percentagem de fariseu e de publicano seremos nós também? Que
graças damos a Deus? Por não ser como os outros, ou por querer ser mais com
eles e com Deus?
in Voz da Verdade, 27.102019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8476&cont_=ver2
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Arte mostra que
mulheres já lideraram a comunidades cristãs
Várias
obras de arte cristãs dos primeiros séculos mostram mulheres em lugar de grande
destaque nas assembleias dos crentes. Uma das imagens é a que representa uma
mulher, de nome Cerula, encontrada nas catacumbas de São Januário, em Nápoles,
em 1971: a mulher aparece de mãos erguidas, tendo sobre a sua cabeça as letras
Qui e Ró, que simbolizam Cristo, e dois evangelhos flamejantes ao lado.
As
informações foram dadas por Luca Badini, professor e investigador da
Universidade de Birmingham (Reino Unido), que é também director de Investigação
no Wijngaards Institute for Catholic Research e autor de vários livros sobre a
democracia e o ecumenismo na Igreja Católica.
Num
encontro promovido pelo movimento Nós Somos Igreja, em Lisboa, a 19 de Outubro,
Luca Badini acrescentou que a iconografia e a forma de representar Cerula era
habitualmente reservada a líderes de grande estatuto, como os bispos. E a
representação desta mulher é apenas uma entre várias que confirma que, no
início, as mulheres tiveram também funções de destaque ou mesmo de liderança
nas comunidades cristãs dos primeiros séculos.
Para
Luca Badini, factos como estes mostram que não há argumentos suficientes para
impedir a ordenação de mulheres no catolicismo, sejam elas de carácter baseadas
na tradição ou na interpretação das escrituras ou dos textos do magistério. E
hoje os avanços sócio-culturais ou as recentes investigações mostram a
insustentabilidade de algumas dessas teses, defendeu Badini.
A
iniciativa do Nós Somos Igreja – Portugal concluiu a reunião do comité da
Women’s Ordination Worldwide (WOW) em Lisboa. A WOW, fundada em 1996 na
Áustria, é uma rede de grupos católicos que defende a possibilidade do acesso
das mulheres aos ministérios ordenados. O Nós Somos Igreja – Portugal integra
também a WOW, a par de outras organizações como a Women’s Ordination
Conference, dos Estados Unidos, e a Roman Catholic Women Priests, responsável
pela ordenação de sete mulheres no Danúbio em 2002.
(Texto
redigido com base em contributo de Pedro Freitas)
in 7Margens,
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Proposta de debate
Sem
fazer parte das 3 mulheres sábias*, vou tentar delinear algumas considerações,
apresentando uns pontos introdutórios à proposta propriamente dita.
1. É fundamental que a Igreja (hierarquia e
crentes) seja sensível a um dos sinais dos tempos apontado por João XXIII e que
não podíamos ignorar, muito antes das vertiginosas mudanças que estamos a
atravessar: a entrada das mulheres na vida pública (Pacem in Terris, 41 –
1963).
2. É fundamental que a Igreja (hierarquia e
crentes) gaste algum tempo a estudar o Novo Testamento (NT) acerca do
comportamento de Jesus para com as mulheres, acerca da atitude das mulheres que
encontraram Jesus ou foram encontradas por Ele para verem como elas
compreenderam Jesus muito melhor que os homens.
3. É fundamental que a Igreja (hierarquia e
crentes) tenha sempre presente, na leitura do NT, um pormenor que Mateus nos
deixou: sem contar mulheres e crianças (Mt 14, 21; 15, 38). Isto é, mesmo não
as contando, não significa que não estejam lá, por exemplo, na Última Ceia,
argumento sempre pronto para negar a Ordenação às mulheres: elas não estavam
lá. Um argumento destes só mostra que desconhecem ou não querem conhecer – o
que é mais grave – a natureza da Ceia Pascal.
4. É fundamental que a Igreja (hierarquia e
crentes) tenha bem presente que o futuro, segundo o espírito cristão, não será
garantido com a mera repetição do passado, pois temos o Espírito Santo que faz
novas todas as coisas. Como diz o Papa Francisco, «se tudo continua igual, se
os nossos dias são pautados pelo “sempre se fez assim”, então o dom desaparece,
sufocado pelas cinzas dos medos e pela preocupação de defender o status quo»
(Homilia da abertura do Sínodo da Amazónia).
5. É fundamental que a Igreja (hierarquia e
crentes) não deixe que aconteça com as mulheres o que aconteceu com os
operários nos finais do século XIX e inícios do século XX. É preciso agir antes
que seja tarde.
No meu
trabalho com jovens e adultos, tenho dado conta que padres e crentes, quando
falo da urgência de ordenar mulheres, têm sempre prontos os argumentos: a casa
é o lugar das mulheres como mãe e esposa, a política e o trabalho profissional
são para os homens; Jesus acolheu bem as mulheres, mas apóstolos são apenas os
homens; as mulheres nunca foram ordenadas; elas não estavam presentes na Última
Ceia, não estiveram na “instituição” da Eucaristia. São estas as grandes
objecções que tenho ouvido ao longo dos 50 anos de trabalho apostólico.
A minha
Proposta é a seguinte: tentarmos fazer “teologia narrativa”, tentarmos criar
parábolas, a partir das mulheres do NT e das que estão comprometidas nas
comunidades cristãs, hoje, comunidades de grandes carências de toda a ordem; a
partir da competência cada vez maior das mulheres em todas as áreas e dimensões
da vida, afastando a sombra que ocultou as mulheres na vida da Igreja de Jesus
Cristo. Publicar estas narrativas em Boletins paroquiais, Revistas diocesanas,
Revistas de Teologia, de modo a criar uma opinião pública.
Tudo
isto, observando o que nos pede a 1ª Carta de Pedro: estai sempre prontos a dar
razão da vossa esperança... com mansidão e respeito (3, 15-16), sem
fundamentalismos nem fanatismo que só criam anticorpos.
Outubro
2019
Maria
Julieta Mendes Dias
NOTA: *
Alusão às outras conferencistas