Esta Quaresma tem sido atravessada por notícias de doenças físicas e mentais, de mortes sofridas e pranteadas. Várias vezes ao longo dos dias tenho relembrado e dito a frase de João Benard da Costa, já doente de cancro sem que ninguém, além dele, o soubesse, em resposta à jornalista que lhe perguntava os projetos, a curto prazo. Ver Deus. Em duas palavras, a certeza da vida para além da morte, da vida ressuscitada, da vida na certeza da contemplação de Deus. Viajo retroativamente para cenas da minha infância e adolescência, quando a Paixão me era sofrimento e o Sábado de Aleluia me era festa de abundância e mesa farta, naquela terra de Alcochete que hoje se tornou subúrbio na outra margem do rio, sem Procissão do Enterro, queima do Judas, compasso de padre a abençoar as casas de família. Impossível, na cultura cristã que foi a minha, apagar as cenas vividas em tempo de primavera, quando as glicínias caíam em cachos roxos a envolver o Senhor dos Passos e a terra explodia em fertilidade de sabores à mesa, ajuda ao cumprimento da abstinência das Sextas Feiras. Neste contexto de memória acordada, na idade madura em que a minha Páscoa é a certeza da Ressurreição, de Cristo Jesus vivo e presente em todas as horas das minhas limitações humanas, aconteceu-me assistir este domingo no Teatro do Bairro, à peça Más de Mil Jueves, de Massimo Carlotto, um monólogo pela atriz italiana Anna Paola Bardeloni a encarnar a história das Madres de Plaza de Mayo, em Buenos Aires. Em 1976, quando a Junta Militar comandada pelo General Jorge Videla, tomou o poder na Argentina, eu vivia em São Paulo, sofri o choque das diversidades, fui iniciada na realidade e na história da repressão política na América Latina. Percebi as convulsões sociais que aconteciam no Brasil, no Chile, na Argentina, em El Salvador, no México. Até então tão longe de mim, trancada em Portugal, esse outro mundo se abria. Percebi a Teologia da Libertação, as várias interpretações políticas da pobreza, a Igreja como referência para os milhões de seres sem nome ou de nome maiúsculo no exercício do poder, naquele lugar da terra onde Jesus se cruza connosco a cada passo. Por tudo e por nada. Com tudo ou sem nada. Entre 1976 e 1983, 30 mil desaparecidos, torturados e mortos, foram obra da Junta Militar na Argentina. As mães e as avós dos desaparecidos rodavam todas as quintas-feiras, desde Abril de 1976, na Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada, residência do Presidente Videla, evocando os seus, resistindo a cargas de polícia, sequestro, ameaça, tortura. A imprensa internacional anunciou, denunciou, comentou. As mães e avós iam aos quartéis, aos hospitais, às morgues, à procura. Às igrejas, suplicar apoio e intercessão. Maioritariamente, recebiam recusa, cautela, ignorância. Tiveram proteção de freiras e padres por isso presos, torturados, assassinados, atirados ao Rio de La Plata. Escreveram ao Papa João Paulo II, denunciando os bispos que pactuavam com os militares. O núncio apostólico Pio Laghi frequentava militares torturadores.
Misturando todas estas evocações, no passado e no presente, fica-me o silêncio, a omissão, a não intervenção da Igreja de Roma neste, como em outros temas e acontecimentos de que todos nós, que somos Igreja, tivemos e vamos tendo notícia. Ficam-me perguntas. Perplexidades.
Desconfortada pela minha incompreensão, releio agora o artigo do teólogo Jon Sobrino, sobrevivente da chacina de 1989 em El Salvador, sobre a Conferência Episcopal de Medellín, convocada por Paulo VI sobre as orientações do Concílio Vaticano II e a Igreja na América Latina. Transcrevo fragmentos: “Para a assembleia dos bispos a prioridade não era a Igreja em si mesma, mas o mundo de pobres e vítimas, isto é, a criação de Deus. Suas primeiras palavras proclamam a realidade do continente: “uma pobreza em massa fruto da injustiça”. Os bispos agiram, sobretudo, como seres humanos, e deixaram falar a realidade que clamava ao céu. São os clamores que Deus escutou no êxodo que o fizeram sair de si mesmo e entrar decididamente na história (…) A Igreja sentiu compaixão pelos oprimidos e decidiu trabalhar por sua libertação. Por muitos, com maior ou menor consciência explícita, foi acolhida como bênção. Por outros, foi percebida, com razão, como grave perigo (…) No centro de tudo estava o evangelho de Jesus. Lucas 4, 16: “Eu vim para anunciar a boa nova aos pobres, para libertar os presos”. Mateus 25, 36-41: “Tive fome e destes de comer”. João 15, 13: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos irmãos”. E Jesus de Nazaré, o crucificado ressuscitado, Atos dos Apóstolos 2, 23-24: “Aquele que vocês mataram Deus o devolveu à vida”
E de Jon Sobrino tomo a palavra como estrela guia desejada, em renovada Aleluia de Páscoa: “Este tempo exige de nós fortaleza para caminhar para Jerusalém. E nos oferece esperança de nos encontrar ali com o Jesus crucificado e ressuscitado.” Perguntas e perplexidades ou o atrevimento de soltar o pensamento.
Leonor Xavier
Misturando todas estas evocações, no passado e no presente, fica-me o silêncio, a omissão, a não intervenção da Igreja de Roma neste, como em outros temas e acontecimentos de que todos nós, que somos Igreja, tivemos e vamos tendo notícia. Ficam-me perguntas. Perplexidades.
Desconfortada pela minha incompreensão, releio agora o artigo do teólogo Jon Sobrino, sobrevivente da chacina de 1989 em El Salvador, sobre a Conferência Episcopal de Medellín, convocada por Paulo VI sobre as orientações do Concílio Vaticano II e a Igreja na América Latina. Transcrevo fragmentos: “Para a assembleia dos bispos a prioridade não era a Igreja em si mesma, mas o mundo de pobres e vítimas, isto é, a criação de Deus. Suas primeiras palavras proclamam a realidade do continente: “uma pobreza em massa fruto da injustiça”. Os bispos agiram, sobretudo, como seres humanos, e deixaram falar a realidade que clamava ao céu. São os clamores que Deus escutou no êxodo que o fizeram sair de si mesmo e entrar decididamente na história (…) A Igreja sentiu compaixão pelos oprimidos e decidiu trabalhar por sua libertação. Por muitos, com maior ou menor consciência explícita, foi acolhida como bênção. Por outros, foi percebida, com razão, como grave perigo (…) No centro de tudo estava o evangelho de Jesus. Lucas 4, 16: “Eu vim para anunciar a boa nova aos pobres, para libertar os presos”. Mateus 25, 36-41: “Tive fome e destes de comer”. João 15, 13: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos irmãos”. E Jesus de Nazaré, o crucificado ressuscitado, Atos dos Apóstolos 2, 23-24: “Aquele que vocês mataram Deus o devolveu à vida”
E de Jon Sobrino tomo a palavra como estrela guia desejada, em renovada Aleluia de Páscoa: “Este tempo exige de nós fortaleza para caminhar para Jerusalém. E nos oferece esperança de nos encontrar ali com o Jesus crucificado e ressuscitado.” Perguntas e perplexidades ou o atrevimento de soltar o pensamento.
Leonor Xavier
21 de Março de 2012