25 março 2012

Perguntas e Perplexidades, Fortaleza e Esperança

Esta Quaresma tem sido atravessada por notícias de doenças físicas e mentais, de mortes sofridas e pranteadas. Várias vezes ao longo dos dias tenho relembrado e dito a frase de João Benard da Costa, já doente de cancro sem que ninguém, além dele, o soubesse, em resposta à jornalista que lhe perguntava os projetos, a curto prazo. Ver Deus. Em duas palavras, a certeza da vida para além da morte, da vida ressuscitada, da vida na certeza da contemplação de Deus. Viajo retroativamente para cenas da minha infância e adolescência, quando a Paixão me era sofrimento e o Sábado de Aleluia me era festa de abundância e mesa farta, naquela terra de Alcochete que hoje se tornou subúrbio na outra margem do rio, sem Procissão do Enterro, queima do Judas, compasso de padre a abençoar as casas de família. Impossível, na cultura cristã que foi a minha, apagar as cenas vividas em tempo de primavera, quando as glicínias caíam em cachos roxos a envolver o Senhor dos Passos e a terra explodia em fertilidade de sabores à mesa, ajuda ao cumprimento da abstinência das Sextas Feiras. Neste contexto de memória acordada, na idade madura em que a minha Páscoa é a certeza da Ressurreição, de Cristo Jesus vivo e presente em todas as horas das minhas limitações humanas, aconteceu-me assistir este domingo no Teatro do Bairro, à peça Más de Mil Jueves, de Massimo Carlotto, um monólogo pela atriz italiana Anna Paola Bardeloni a encarnar a história das Madres de Plaza de Mayo, em Buenos Aires. Em 1976, quando a Junta Militar comandada pelo General Jorge Videla, tomou o poder na Argentina, eu vivia em São Paulo, sofri o choque das diversidades, fui iniciada na realidade e na história da repressão política na América Latina. Percebi as convulsões sociais que aconteciam no Brasil, no Chile, na Argentina, em El Salvador, no México. Até então tão longe de mim, trancada em Portugal, esse outro mundo se abria. Percebi a Teologia da Libertação, as várias interpretações políticas da pobreza, a Igreja como referência para os milhões de seres sem nome ou de nome maiúsculo no exercício do poder, naquele lugar da terra onde Jesus se cruza connosco a cada passo. Por tudo e por nada. Com tudo ou sem nada. Entre 1976 e 1983, 30 mil desaparecidos, torturados e mortos, foram obra da Junta Militar na Argentina. As mães e as avós dos desaparecidos rodavam todas as quintas-feiras, desde Abril de 1976, na Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada, residência do Presidente Videla, evocando os seus, resistindo a cargas de polícia, sequestro, ameaça, tortura. A imprensa internacional anunciou, denunciou, comentou. As mães e avós iam aos quartéis, aos hospitais, às morgues, à procura. Às igrejas, suplicar apoio e intercessão. Maioritariamente, recebiam recusa, cautela, ignorância. Tiveram proteção de freiras e padres por isso presos, torturados, assassinados, atirados ao Rio de La Plata. Escreveram ao Papa João Paulo II, denunciando os bispos que pactuavam com os militares. O núncio apostólico Pio Laghi frequentava militares torturadores.
Misturando todas estas evocações, no passado e no presente, fica-me o silêncio, a omissão, a não intervenção da Igreja de Roma neste, como em outros temas e acontecimentos de que todos nós, que somos Igreja, tivemos e vamos tendo notícia. Ficam-me perguntas. Perplexidades.
Desconfortada pela minha incompreensão, releio agora o artigo do teólogo Jon Sobrino, sobrevivente da chacina de 1989 em El Salvador, sobre a Conferência Episcopal de Medellín, convocada por Paulo VI sobre as orientações do Concílio Vaticano II e a Igreja na América Latina. Transcrevo fragmentos: “Para a assembleia dos bispos a prioridade não era a Igreja em si mesma, mas o mundo de pobres e vítimas, isto é, a criação de Deus. Suas primeiras palavras proclamam a realidade do continente: “uma pobreza em massa fruto da injustiça”. Os bispos agiram, sobretudo, como seres humanos, e deixaram falar a realidade que clamava ao céu. São os clamores que Deus escutou no êxodo que o fizeram sair de si mesmo e entrar decididamente na história (…) A Igreja sentiu compaixão pelos oprimidos e decidiu trabalhar por sua libertação. Por muitos, com maior ou menor consciência explícita, foi acolhida como bênção. Por outros, foi percebida, com razão, como grave perigo (…) No centro de tudo estava o evangelho de Jesus. Lucas 4, 16: “Eu vim para anunciar a boa nova aos pobres, para libertar os presos”. Mateus 25, 36-41: “Tive fome e destes de comer”. João 15, 13: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos irmãos”. E Jesus de Nazaré, o crucificado ressuscitado, Atos dos Apóstolos 2, 23-24: “Aquele que vocês mataram Deus o devolveu à vida”
E de Jon Sobrino tomo a palavra como estrela guia desejada, em renovada Aleluia de Páscoa: “Este tempo exige de nós fortaleza para caminhar para Jerusalém. E nos oferece esperança de nos encontrar ali com o Jesus crucificado e ressuscitado.” Perguntas e perplexidades ou o atrevimento de soltar o pensamento.

Leonor Xavier


21 de Março de 2012

20 março 2012

Sísifo nas teias da malvadez

Não queria acreditar que já se mandam celebrar missas para agradecer a graça de se ter conseguido um emprego. Fiquei mudo e quedo. Então neste país ter emprego já é considerado uma graça! Nesta espécie de república, pelo menos para alguma gente é tão grande a graça de ter emprego que se dispõe a gastar dinheiro para agradecer ao santo a quem se encomendou, ou talvez directamente a Deus. E não quer que a graça seja de graça. De repente, não sei por que razão veio-me à mente o mito de Sísifo. Adequada ou não, essa imagem impôs-se ao que sentia.
Sísifo é um herói da mitologia grega, alguns séculos antes de Cristo. A sua vida passou de livre e ousada para uma vida absurda e condenada. Sísifo conseguiu durante muito tempo rir-se dos deuses e enganar a morte em nome do amor à vida independente e livre. Mais ou menos isto, resumidamente. Mas esse atrevimento saiu-lhe caro. Naqueles tempos, se os homens procuravam alcançar o que de melhor havia nos deuses, os deuses tinham frequentemente o que de pior havia nos homens. Eram invejosos, ciumentos e vingativos. Por isso, ao maior atrevimento maior castigo, ao maior brilho maior obscuridade. Foi assim que Sísifo recebeu dos deuses, para toda a eternidade, o castigo pelo seu engenho e arte em viver e ser feliz: empurrar uma enorme pedra até ao cimo de uma montanha para depois ela rolar novamente encosta abaixo e o herói mitológico voltar a descer até ao sopé para a levar de novo montanha acima, e assim indefinidamente numa eterna e absurda repetição.


Os povos lutam décadas para conquistarem uma vida melhor, mais feliz e tranquila. Mas de repente uma oligarquia planetária arranja maneira de aspirar essa felicidade e empurrar as pessoas de novo até ao rés-do-chão da vida para, uma vez aí, serem forçadas a recomeçar a subida. Num cinismo insuspeitado, são aqueles que programam a sua queda quem anima e financia a subida. A felicidade prometida e promovida traz veneno no ventre: o almejado bem-estar de multidões possibilita a apropriação de milhões por parte dessa minoria no pedestal do poder. É verdade que tanto Sísifo como nós deixámo-nos levar por uma certa euforia, descuidando as necessárias cautelas. Mas é igualmente verdadeira a existência de homens que, num desejo incontido de serem deuses, procuram expulsar Deus do paraíso tornando o mundo num inferno. O que querem já não é só dinheiro. O objecto dos seus insaciáveis desejos é serem senhores da árvore da vida, terem o sentimento de tudo poder, tudo controlar, tudo determinar. Para eles o planeta é pouco mais que um campo de jogos onde se rebolam na sua volúpia. Ainda assim, tenhamos pena deles. De alguma maneira são dignos de dó porque nunca se vêem saciados. E também terão a sua dose de condenação: hão-de assistir à vontade férrea de multidões que ousam ter esperança e começam novamente a subir a montanha. E aqueles que sucumbirem à fome, à destruição e às guerras, ficarão na história como espelho onde a malvadez verá reflectida eternamente a sua horrível figura.


Frei Matias, O.P.

20.03.2012

17 março 2012

COMEMORAÇÕES

O inteligente humor de Quino, autor da banda desenhada “MAFALDA, a contestatária” remete-nos para um olhar crítico sobre as relações humanas em todas as suas dimensões.
Há quem tenha indicado no perfil de entrada da rede social Facebook como livros favoritos; a Bíblia e a BD da Mafalda. Realmente é uma boa síntese crítica de como se vai manifestando o ser humano, em situação, ao longo da História.
Por coincidência, a BD da Mafalda fez agora 50 anos. A Bíblia tem evidentemente muitos anos mais, mas a sua leitura crente e habitual por leigos foi uma das decisões pastorais inovadoras e mais ecuménicas tomadas pela Igreja Católica reunida há 50 anos no Concílio Vaticano II.
Meio século passado, as diferentes sensibilidades existentes na Igreja Católica, comemoram aspetos distintos, cada uma a procurar puxar para a sua perspetiva o legado conciliar, de modo a justificar a respetiva visão do mundo e da fé.
A multiplicidade de iniciativas, colóquios, encontros e afins, sobre as temáticas do Concílio são a expressão da diversidade mas igualmente do interesse e da atualidade do que então foi ponderado e decidido pelos padres conciliares. Um olhar muito atual sobre o mundo, a humanidade e o papel da fé integrada na vida das pessoas de diferentes latitudes, culturas ou sensibilidades. Pena é que o diálogo permaneça no seio de cada uma das sensibilidades e não seja mais transversal!
A leitura crente da realidade e o desafio de ler a Bíblia como uma aventura de confronto e descoberta de um modo de ser mais humano e solidário permanece atual, chame-se teologia da libertação ou outra designação qualquer. Para lá dos títulos, a prática permanece.
Tal como sugere a tira da BD, a humanidade continua a não funcionar. As estratégias políticas, económicas e sociais têm sido respostas frágeis e pouco consistentes face à enormidade dos problemas da humanidade vista à escala global.
A Igreja, como um todo, tem também tido muita dificuldade em adequar o seu funcionamento aos desafios lançados pela janela que João XXIII abriu e a corrente de ar que se seguiu. Um vento de mudança, o sopro do Espírito que não parou mais.
Neste tempo de Quaresma, os cristãos são chamados a olhar para dentro de si-mesmos e da comunidade de crentes em que se reconhecem e a procurarem corrigir “o mau funcionamento” das coisas e das pessoas, ou seja transformarem o seu coração de pedra (por isso pesado) em coração de carne, mais solidário e verdadeiramente humano.
A Mafaldinha, na sua contestação permanente de criança atenta, mesmo com 50 anos de vida publicada, com bom humor, desinstala as certezas, os hábitos, os preconceitos de quem carrega o peso da vida como se fosse um pedregulho de Sísifo e não como uma antecipação da vida plena configurada na Páscoa. Sendo personagem de ficção, nem por isso deixa de ser pertinente e uma boa ajuda para o processo de humanização em curso.






AFF
16/03/2012
http://nsi-pt.blogspot.com/

Fonte – Quino, Tiras BD – Mafalda: Internet, Facebook




NOTA: Não foi possível incluir as 2 tiras de BD que fazem parte do texto.

12 março 2012

“FAMILIA a FAMILIA”

Nestes tempos confusos que atravessamos é estimulante encontrar pessoas que em vez de passarem o tempo a criticar e/ou a queixaram-se, resolveram actuar, na medida das suas capacidades, dando respostas concretas, em consonância com a palavra de Jesus, à pergunta ‘Mas afinal quem é o meu irmão? Ou a minha irmã?’
Um grupo de amigas, Leonor Ameal, Luísa Franco e Luísa Távora, criaram o Grupo “FAMILIA a FAMILIA” e passo a transcrever a apresentação que este grupo faz de si próprio: «para tentar minorar alguns problemas com que se defrontam famílias que estão a passar mal, com dificuldades tremendas que vão desde a fome ao corte de luz, água, gás, material escolar, pagamento de renda de casa, farmácia, e um grande etc. e que se metem em casa com vergonha de dar a cara!
Pretendemos atender prioritariamente famílias onde houve despedimento de um ou dos dois membros do casal e que lutam por sobreviver. A indicação das famílias vem, com grande discrição, através de pessoas idóneas que, pela sua profissão/vocação, têm acesso a estes casos escondidos (já que, normalmente, evitam a todo o custo que se saiba da sua carência, da sua “mudança de vida”...).Essas pessoas - advogados, médicos, psicólogos e sacerdotes – são da nossa inteira confiança.
A partir das informações recebidas o GRUPO FaF - que reúne mensalmente ou em casos de urgência imediatamente - estuda cada situação e a oportunidade de a podermos ou não auxiliar. Por uma questão de respeito e para evitar humilhações, as pessoas do GRUPO não têm acesso directo às famílias, ou sequer conhecimento dos seus nomes, sendo que a “ponte” se faz por um intermediário sério e discreto, escolhido com muito cuidado, a quem entregamos os géneros mensal ou quinzenalmente. Neste momento temos já como 1º intermediário a Comunidade Vida e Paz. Cada intermediário, além de levar a ajuda à família com quem faz a “ponte” tem o papel de a acompanhar e ajudar a “lutar por um emprego” ou por uma solução mais digna, evitando a todo o custo que “se encoste” ao apoio recebido. Como nos propomos actuar?
Resolvemos recorrer a um método “diferente” de recolha directa de mercearia que não será pesado a ninguém e servirá de base a este projecto. Trata-se da “CAMPANHA DO PACOTE”, já a funcionar, com imensa adesão, em prédios onde conhecemos pessoas. Pede-se a cada condómino que colabore MENSALMENTE com um pacote de bens essenciais, (arroz, feijão, grão, esparguete, etc.) no valor aproximado de 3 euros.
Esses PACOTES serão recolhidos em cada BLOCO no condomínio por um responsável do GRUPO entre o dia 1 e o dia 3 de cada mês.
Para completar estes cabazes e/ou outras despesas procuraremos entre amigos e conhecidos dos vários membros do GRUPO alguns “capitalistas” que façam uma transferência mensal fixa (mínimo 10 euros) – durante um ano (renovável) - para o NIB 0023 0000 4520 2364 33394 (Activo Millenium, Luísa Franco e Leonor Aires de Campos (Ameal). A garantia de contar com essa importância certa permite ir discernindo a admissão - ou não - de mais assistidos pelo “Família a Família”. Todos os “capitalistas” que desejem serão informados periodicamente dos movimentos do GRUPO e podem consultar os justificativos das despesas que estão em nosso poder. Com recurso ao dinheiro depositado no NIB, o GRUPO FaF comprará os frescos, carnes, manteiga, fruta, material de limpeza, etc. e atenderá a excepções tipo farmácia, contas de luz, de água, material escolar, etc. »
As organizadores começaram por actuar nos prédios onde vivem, com o simples método de baterem à porta de cada vizinha/o e perguntar se se estavam interessadas/os em colaborar. A partir daqui é necessário, obviamente, que uma pessoa do prédio se disponha a recolher em sua casa os bens antes de os entregar ou distribuir. Quem quiser saber mais escreva para
leonor.ameal@gmail.com


Ana Vicente


11.3.2012

01 março 2012

E SE DEUS FOSSE MULHER ?

Frédéric Lenoir, director da Revista Le Monde des Réligions, é autor de uma obra muito vasta, de vários géneros literários, mas sempre em torno do fenómeno religioso. A sua obra mais recente e mais abrangente tem o título mais rápido: Dieu[1]. É um percurso de entrevistas com Marie Drucker, jornalista da RTL e France 2.
O tema da penúltima das entrevistas, Violência, Misoginia, Sexualidade Reprimida, introduz a pergunta: será Deus fanático?
Começa por dizer que as religiões, apesar das suas mensagens de amor, misericórdia e fraternidade, têm todas sangue nas mãos. É sobretudo verdade no caso dos monoteísmos, religiões fundadas sobre uma revelação e cada uma persuadida de ser a detentora da única verdade que Deus concedida por Deus. Cada uma tem um sentimento de superioridade sobre as outras, cada uma julga que é a única que brota da verdadeira revelação divina. Tornam-se intolerantes e têm, muitas vezes, legitimado a violência “em nome de Deus”. Além disso, a intolerância ligada à revelação é um desejo de dominação. É a atracção do poder que torna as religiões violentas.
Repassa, depois, o olhar sobre a situação e as evoluções das mulheres nas religiões, sobretudo nas monoteístas: Judaísmo, Islão e Cristianismo. Não diz muitas novidades em relação ao que já tinha escrito noutras obras, mas responde à pergunta de Marie Drucker: E se Deus fosse Mulher? , com uma história preciosa:
- O efémero Papa João Paulo I tinha dito, no começo do seu pontificado, que Deus podia muito bem ser representado como uma mulher, pois Ele não tem sexo! Tínha-se igualmente expresso a favor da contracepção. Morreu de maneira não elucidada, algumas semanas mais tarde.
Conhece a seguinte história judaica? No Paraíso, Deus criou em primeiro lugar a mulher e não o Adão. Eva aborrece-se. Pede então a Deus companheiros. Deus criou os animais. Eva continua insatisfeita e pede a Deus um companheiro que lhe seja semelhante com quem ela pudesse ser mais cúmplice. Deus criou Adão, mas pôs uma só condição a Eva: que ela nunca revelasse ao homem que tinha sido criada antes dele para não irritar a sua susceptibilidade. E Deus concluiu: “que isso fique um segredo entre nós…, entre mulheres!»

[1] Frédéric Lenoir, Dieu, Robert Laffond , 2011

Frei Bento Domingues, O.P.
01.03.2012