04 abril 2012

TEMPO DE PÁSCOA, TEMPO DE MÚSICA

Eduardo Lourenço é uma surpresa permanente, mesmo para aqueles que são os seus devotados leitores e que julgam que já deram a volta à sua obra, que leram e releram. Surgiu, agora, Tempo da Música, Música do Tempo (Gradiva), obra organizada e prefaciada, de modo exemplar, por Barbara Aniello.
Eduardo Lourença já tinha revelado, em 1948: não nasci senão para ver e ouvir, para a imagem e som, arte e música. Como diz B. Aniello, chegou a hora de dar a conhecer o lado mais secreto do seu universo crítico e estético, até agora desconhecido, de ouvinte e comentador de eventos musicais. São 212 reflexões sobre a música, concebidas entre 1948 e 2006 e quase, na totalidade, inéditas.
Abrangem todo o arco temporal da sua carreira, acompanhando o percurso do filósofo e do homem, do viajante permanente. Inicialmente, Eduardo Lourenço não queria tornar público um material tão ocasional e fragmentado, considerando-se um simples amador. Certamente, se um dia voltar para Deus, a nenhuma outra coisa o deverei senão a estas estradas de uma melancolia lancinante que, desde o canto gregoriano até Messiaen devoraram em mim o sentimento da realidade do mundo visível.
Bach é um dos compositores eleitos do seu universo musical, uma ponte para o divino. Se Deus fez do Tempo a sua maior descoberta, a Música reinventa Deus. Tal como Ele, plasmando-os, ela organiza, separa e recompõe os sons e a sua duração.
Um grande poeta, filósofo da Arte e das relações entre música e religião, ou da presença da música na poesia, M.S. Lourenço, sustentava que há uma aspiração de toda a arte à condição de música. Na verdade todo o mundo é som e faz parte da constituição última da matéria, pois esta é vibração. Esta convicção tornou-se completamente consciente num período da cultura ocidental, que se inicia com os escritos órficos e pitagóricos onde esta tese (matéria como vibração) constitui o pensamento condutor de todo o sistema cosmológico, religioso e filosófico. O fim da Idade Média trouxe consigo o fim do Homem auditivo e a imposição de uma nova cultura visual, com a consequente criação de um novo tipo de percepção dominante, a do Homem visual. Para ele, o ser humano da Idade Moderna está alienado da essência do mundo e da sua própria, por ter perdido a consciência de ter sido vítima de um segundo pecado original, o qual consistiu na desvalorização do mundo do ouvido. (Cf. Os Degraus do Parnaso).
Todos sabiam que Eduardo Lourenço viveu sempre no mundo da literatura e, dentro desta, no mundo da poesia que não pode existir sem a vibração musical. Com a publicação de Tempo da Música, Música do Tempo, sabemos que morou sempre no interior da música. Se nasceu para ver e ouvir, agora sabemos que, sobretudo, para disfrutar da grande música. Reconheceu, como já referimos, em S. Bach o seu músico preferido, que no Céu está a dar concertos para Deus. Quando escreve sobre música, a sua prosa também é musical. Deixamos aqui um pequeno texto de Páscoa.
«O que eu sou como ser mortal (o que todos somos), está contido na melancolia absoluta do allegretto da Sétima Sinfonia. Mas o que eu desejaria seria ser, o que não tenho coragem de ser, só se revela nesta Suite em Si Menor, de Bach. Diante desta torrente luminosa devia depor a minha velha pele, esta pele de que só a música me despe num instante, deixando-me nu e redimido, mas que no instante seguinte afogo em trevas. Delas só um Deus me poderia libertar. Digo Deus sabendo bem que esse absoluto que me atrevo a invocar é ainda o supremo álibi. É de mim, das ardentes seduções do meu próprio ser, que não quero ou de que não sou capaz de abdicar. Queria ir por um caminho de rosas para aquele sítio onde sei que me foi fixado encontro. E ninguém lá chega nunca sem antes morrer para si mesmo.»

Frei Bento Domingues, O.P.
2 de Abril de 2012

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