Os discursos e documentos papais reproduzem a mesma diferenciação hierarquizante entre homens e mulheres existente na cultura ocidental, herdada da filosofia e reproduzida no pensamento do Magistério dos Papas, ainda que, ao longo segunda metade do século XX – por força da força do Concílio Vaticano II – essa reiteração da diferenciação se tenha mitigado, através do recurso à linguagem da “complementaridade”. Proponho-vos, pois, que façamos um pequeno percurso por alguns documentos, sobretudo do Papa João Paulo II (ainda que também haja referências esporádicas a textos de outros Papas), para vermos mais claramente os passos dados nesta mitigação. Se invoco textos sobretudo de João Paulo II é porque ele foi o primeiro a escrever um documento só sobre a problemática “da mulher” (e não das mulheres!) – a Mulieris dignititatem.
João Paulo II desenvolveu uma teologia que ele designava por “teologia do corpo”[i] e que, no seu dizer, pretendia constituir uma reflexão sobre a igualdade e a identidade masculina e feminina. Essa teologia afirmava que “a sua homogeneidade [do homem e da mulher] diz respeito, sobretudo, ao corpo, à estrutura somática”[ii]. São iguais, porque ambos criados por Deus. A diversidade sexual marca a identidade masculina e a identidade feminina. A mulher reconhece-se como mulher diante do homem e o homem reconhece-se como homem diante da mulher. Portanto, este ser do corpo e da alma um para o outro constitui o significado último da masculinidade e da feminilidade (isto é, da existência sexuada).
A afirmação da igualdade fundamental do ser humano diante de Deus é sempre acompanhada pela afirmação da diferença entre o homem e a mulher. A reflexão acerca da essência da mulher, ou acerca da sua natureza situa-se neste contexto. A natureza humana reflecte a imagem de Deus, portanto, não se deixa determinar pela sociedade, ou pelas circunstâncias históricas[iii]. Sendo assim, é eterna, porque Deus é eterno, e está inscrita no coração do ser humano, porque este é criação divina[iv], já dizia Leão XIII.
Contrariar a natureza humana é contrariar o plano de Deus acerca do ser humano. Esta vontade deve ser cumprida em todos os níveis da vida humana, quer seja na vida social, quer seja na vida familiar, ou pessoal.
As afirmações dos documentos papais acerca da natureza da mulher inserem-se neste contexto global. A sua preocupação é encontrar a sua especificidade, tal como ela é ditada pela natureza. O discurso acerca da natureza humana implicará sempre estas duas vertentes: a afirmação da igualdade do homem e da mulher, ambos possuidores da mesma natureza, e a diferença entre ambos, a qual determina a sua desigualdade. O elemento constitutivo da feminilidade é a maternidade. A mulher identifica-se pela “disposição natural” que o seu organismo tem de servir a geração e o nascimento do ser humano[v], segundo João Paulo II. Sendo assim, a complementaridade parece revelar-se, antes de mais, fisicamente. A vontade de Deus é que a mulher seja aquela na qual a ordem do amor do mundo criado das pessoas encontra um terreno para deitar a sua primeira raiz[vi], metáfora – diga-se de passagem – com uma longa história de misoginia. Conclui-se da quase total ausência de reflexão sobre o significado das características masculinas para o ser homem, a associação mais directa da definição de mulher às suas determinações físicas.
A natureza biológica da mulher parece ser extrapolada para a sua natureza espiritual. Os textos traçam o retrato espiritual feminino a partir da condição de mãe: a mulher possui o amor à vida, o sentimento de protecção do berço. Ela conhece o mistério da vida[vii], como diz o Concílio. Ela tem a missão de “colocar bálsamo nas feridas abertas da humanidade”, dizia Pio XII[viii]. E, uma vez que a lei da natureza é eterna, estas características da mulher constituem a sua “essência perene”[ix], segundo João Paulo II, ou a sua “verdade”[x]. Segundo Pio XII. Estas características da mulher são “imutáveis e não se desactualizam”[xi], uma vez que constituem o plano de Deus para as mulheres[xii]. Aliás, à objecção de que muito daquilo que é atribuído à natureza da mulher pode ser produto cultural e histórico, Paulo VI respondia que “a história e a natureza estão estreitamente ligadas uma à outra”[xiii].
Neste contexto, os textos do Magistério revelam sempre o temor de que os movimentos de emancipação da mulher, no caso de lutarem por uma igualdade entre o homem e a mulher que procura mudar “aquilo que a natureza exige do homem e aquilo que a natureza exige da mulher[xiv]“, desrespeitem esta ordem estabelecida pelo Criador. A posição dos documentos papais ou de dicastérios da Santa Sé relativamente aos movimentos feministas vem na sequência da dupla afirmação, aliás já mencionada, da igualdade e da diferença entre o homem e a mulher.
A questão da maternidade prende-se directamente com a problemática da natureza da mulher. Ela constitui a sua essência, a revelação do significado da feminilidade. E esta é determinada biologicamente. João Paulo II afirma que, dada a sua condição de mãe, a mulher possui “uma sensibilidade subtil, um sentido da realidade concreta e um amor atencioso para com aquilo que está em crescimento e que, por isso, precisa de cuidado especial”[xv].
Este tipo de descrições revela também uma tendência para idealizar a figura da mulher como uma mãe perfeita. Além disso, a mulher é definida apenas pelo seu papel relativamente a um outro: a criança. O facto de se fazer uma idealização desse seu papel parece esvaziar ainda mais a mulher duma identidade e duma existência concretas. O sujeito da reflexão acerca da identidade feminina é sempre um outro em função do qual se coloca a sua própria existência. Esta redução da mulher à sua função é agravada nos textos em causa pelo facto de não se encontrar uma reflexão igualmente desenvolvida acerca do papel do homem enquanto pai.
João Paulo II afirma mesmo que “o ser genitores - ainda que seja comum aos dois - realiza-se muito mais na mulher, especialmente no período pré-natal.” Portanto, o homem “encontra-se sempre 'fora' do processo da gestação e do nascimento da criança”. Ainda que a educação dos filhos seja da competência tanto do pai como da mãe, a contribuição materna “é decisiva”[xvi]. A maternidade é, portanto, a chave de interpretação do significado da existência das mulheres. Sendo assim, ela constitui também o seu papel social fundamental.
Esta identificação do papel social da mulher com a maternidade torna-se mais evidente se atendermos à forma como os textos encaram o seu trabalho profissional. Muitos acentuam a dificuldade que este pode causar para o cumprimento daquilo que é específico da mulher, isto é, a maternidade[xvii]. Do mesmo modo, uma das reticências colocadas aos movimentos de emancipação fundamenta-se, precisamente, no receio de que estes transtornem a vocação fundamental da mulher à maternidade[xviii].
Na perspectiva dos documentos em causa, o contributo essencial da mulher para a sociedade situa-se, portanto, na esfera privada, uma vez que consiste na maternidade. Os textos consultados atribuem predominantemente aos homens as funções públicas e às mulheres os papéis relacionados directamente com a manutenção do lar e da família. Elas são o garante da estabilidade do domínio privado. Nas palavras de Pio XII, o lar é “o campo e o ninho da actividade da esposa”[xix]. O papel ideal para a mulher é o de mãe, com a sua correspondente confinação ao domínio do privado. Os termos em que os textos colocam a questão reflectem, pois, a distribuição de papéis sociais no Ocidente, segundo a qual à mulher pertence o domínio privado (da casa, da família) e ao homem, o domínio público, social[xx]. Sendo assim, o ideal de mulher como mãe coincide com a ordem social vigente.
Os textos papais também comparam a Igreja com a família. Pio XI afirma que a tarefa da família coincide com a da Igreja: Deus comunica a ambas a fecundidade, a transmissão da vida, da educação e da autoridade, “princípio de toda a ordem”[xxi].
Quando se estabelece o paralelo entre a autoridade na família e a autoridade na Igreja, compara-se o papel da hierarquia com o do pai. Assim, João Paulo II afirma que “os padres e os diáconos estão para a família como um pai, um irmão, um pastor e um mestre”[xxii]. Portanto, tanto na Igreja, como na família, a autoridade encontra-se na linha paterna.
Esta mesma ideia parece confirmar-se se atendermos, de novo, aos termos em que os textos falam de S. José como patrono da Igreja. Numa passagem de um documento de Leão XIII podemos encontrar o seguinte raciocínio: Jesus devia obediência a José, enquanto pai humano, como é próprio de toda a relação entre pai e filho. José era o protector, o tutor e o defensor natural da família divina. Ora, a sagrada família, “que José orienta com pleno poder paterno”, é o embrião da Igreja: Maria é a mãe de todos os crentes e Jesus é o primogénito de todos os cristãos. S. José goza de autoridade paterna sobre a Igreja[xxiii].
Podemos, então, concluir que o paralelo estabelecido entre a estrutura familiar e a estrutura eclesial reflecte uma concepção da distribuição de papéis entre a mulher e o homem que exclui a primeira das funções relacionadas com a autoridade.
Ora esta é esta precisamente a lógica reproduzida na Declaração sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial (Inter insigniores)[xxiv], emanada da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé no dia 15 de Outubro de 1976 (curiosamente, dia da Festa de Santa Teresa d’Ávila) e repetida até à saciedade por todas as declarações posteriores sobre um assunto cada vez mais difícil de calar e de ignorar (não há argumentos “recentes” sobre o assunto, ao contrário do que poderia parecer a algumas figuras com responsabilidade… Os argumentos têm sido sempre os mesmos de há 35 anos a esta parte…).
Se nos debruçamos sobre este tema da ordenação das mulheres não é por considerarmos que ele constitui a única chaga no que diz concerne ao respeito pelos direitos humanos das mulheres dentro da Igreja. É sobretudo porque neste tema se torna presente de uma forma translúcida a lógica de uma antropologia mitigadamente desigualitária. Desta vez, a argumentação gira em torno da centralidade da masculinidade de Jesus para o exercício do ministério. Devo à Fernanda Henriques a compreensão (durante o trabalho conjunto para a elaboração deste texto) de que a questão não está só na insistência explicitada no documento na impossibilidade de mulheres representarem um homem – Jesus Cristo – no altar, pelo facto de serem mulheres e existir uma “dissemelhança” delas com Jesus – homem. A questão também estará – ainda que não seja explicitada – no facto de Jesus ter exercido um ministério público, de os ministérios ordenados serem públicos e de, como tal, estarem vedados às mulheres, uma vez que a estas se lhes atribui, ancestralmente, o domínio privado ou sucedâneos do domínio privado (veja-se a tendência para reproduzir a lógica da maternidade em referências ao papel das mulheres na educação e no cuidar, por exemplo). A lógica final do documento Inter insigniores coloca esta desigualdade, mais uma vez, no próprio plano de Deus.
Mas debrucemo-nos mais detalhadamente sobre o texto. Começaremos por constatar que a Declaração se inicia citando João XXIII, que na sua Encíclica Pacem in Terris considerou precisamente como um dos sinais mais característicos da nossa época “o facto de as mulheres estarem a entrar na vida pública, quiçá mais depressa nos povos que professam a fé cristã e mais lentamente, mas também em grande escala, nos países com outras civilizações e tradições”. Menciona-se também a existência de formas de discriminação que devem ser superadas, por serem contrárias ao plano de Deus. Refere-se, em seguida, a existência de muitas mulheres no apostolado e a relevância de muitas mulheres ao longo da história da Igreja. Poder-se-ia dizer que esta introdução contraria a tese da interdição do exercício do ministério ordenado devido ao carácter público de este último. Simplesmente, não deverá perder-se de vista que a atribuição do espaço público aos homens, ao longo dos tempos, também esteve sempre associada ao facto de ser este o espaço de exercício do poder configurador da ordem social. E deve ter-se igualmente presente que o documento irá utilizar a linguagem do “oficial” e do “oficioso”, aplicando a primeira aos homens e a segunda às mulheres, como veremos.
Onde faz, então, o documento radicar a proibição do acesso das mulheres ao ministério ordenado? Antes de mais, invocando a tradição, com uma frase lapidar: “A Igreja nunca admitiu que as mulheres pudessem receber validamente a ordenação sacerdotal ou episcopal”. Se tal aconteceu foi em seitas heréticas, como, por exemplos, as gnósticas. Essa exclusão deve-se ao desejo de a Igreja permanecer fiel ao seu fundador, segundo prossegue o documento. Portanto, a exclusão das mulheres do ministério ordenado constitui um sinal de fidelidade a Jesus Cristo e aos Apóstolos. O documento avança o segundo argumento, ligado a este primeiro: Jesus Cristo nunca chamou nenhuma mulher a fazer parte dos Doze”. É certo que, durante o seu ministério, se faz acompanhar de mulheres e é certo que são elas as primeiras testemunhas da ressurreição, mas não são as testemunhas oficiais: elas são é “encarregadas por Jesus de levar a primeira mensagem pascal aos Onze, para os preparar para serem os testemunhos oficiais da ressurreição”. Portanto, “oficialmente”, Jesus ressuscitado apareceu aos homens e oficiosamente, às mulheres. E não foi à sua Mãe (aliás, proclamada Mãe de Deus!) que Jesus “confiou as chaves do reino dos céus”, mas sim a Pedro.
Terceiro argumento: a prática dos apóstolos. É certo que Maria ocupa um ligar privilegiado no Cenáculo, mas não foi chamada a integrar o colégio dos Doze. Judas foi substituído por Matias. O documento refere ainda as comunidades paulinas, no mundo greco-romano, e conclui que, apesar de no mundo helénico haver cultos pagãos confiados a sacerdotisas e apesar de haver mulheres “colaboradoras” de Paulo, esta colaboração nunca chegou ao ponto de lhes ser entregue o “anúncio oficial e público [sublinho: público!] da mensagem”.
Poderá a Igreja mudar de atitude face a esta questão? Não – quarto argumento – porque a atitude de Jesus e dos apóstolos tem um valor permanente. As prescrições de Paulo relativas à obrigação da mulher cobrir a cabeça são culturais. Mas a proibição de falar na assembleia “é de outro tipo”: elas podem profetizar, mas não podem ter a “função oficial de ensinar na assembleia”. E isto devido ao “plano divino da criação”: o texto refere Gen 2,18-24 (isto é, o relato da criação da mulher como “auxiliar” do homem) sem explicar a relação que estabelece entre a interdição das mulheres ensinarem na assembleia e os versículos da criação.
É certo que, segundo se diz, a Igreja tem consciência de “possuir certo poder de intervenção” sobre os sacramentos (todos sabemos a evolução por que passaram os sacramentos, por exemplo, da penitência). Mas, e cito do documento: “em última análise é a Igreja que, através da voz do seu Magistério, assegura em campos tão variados o discernimento acerca do que pode mudar e do que deve permanecer imutável. Quando ela crê não poder aceitar certas mudanças, é porque se sente vinculada pela conduta de Cristo.” Por isso, surge, agora o argumento da autoridade: “Esta prática da Igreja reveste, pois, um carácter normativo: na prática de não conferir senão a homens a ordenação sacerdotal há uma tradição constante no tempo, universal no Oriente e no Ocidente, vigilante em reprimir imediatamente os abusos; esta norma, que se apoia no exemplo de Cristo, é seguida porque se considera conforme ao plano de Deus para a sua Igreja”. Isto é, o plano de Deus para a sua Igreja passa pela exclusão das mulheres do acesso ao ministério ordenado.
Mas a declaração dá mais um passo: não basta referir a autoridade da Igreja como “seguidora fiel” do exemplo de Cristo, é preciso inserir a própria masculinidade do ministério no mistério de Cristo, isto é, é preciso “teologizar” a exclusão do feminino, fazendo referência à “semelhança natural” que deve existir entre Cristo e o seu ministro, Cristo que “foi e continua a ser homem”. É certo que ele é o primogénito de uma humanidade constituída por homens e mulheres, mas “a encarnação do Verbo fez-se segundo o sexo masculino”. E este facto é “inseparável da economia da salvação”, aliás, “está em harmonia com o conjunto do plano de Deus, tal como Deus mesmo o revelou e cujo centro é o mistério da Aliança”. Portanto, está inscrito no plano de Deus que as mulheres não podem ser consideradas “semelhantes a Cristo”. Está inscrito no plano de Deus que não podem ter acesso ao ministério ordenado. Está inscrito no plano de Deus que Cristo é esposo e chefe da Igreja e que este papel só pode ser realizado por um homem. É certo que o sacerdote representa a Igreja, que é o Corpo de Cristo, mas representa a sua cabeça, que é Cristo, e Cristo, é homem.
Ora se o ministério sacerdotal se insere no mistério da Igreja e se esta é obra do Espírito Santo, não se pode mencionar os direitos humanos ao falar desta questão: em Gálatas 3,28, diz-se que, em Cristo, não há homem, nem mulher. “Mas o texto não se refere em absoluto aos ministérios: ele afirma somente [sublinhado meu] a vocação universal à filiação divina que é a mesma em todos”. Portanto, a filiação divina que é a mesma em todos não chega para fundamentar o ministério ordenado.
O documenta termina dizendo que as mulheres que desejam o ministério estão, certamente, ”inspiradas pela vontade de servir a Cristo e à sua Igreja”. Acrescenta-se – aliás, estranhamente – que isto “não é surpreendente num momento em que as mulheres tomam consciência das discriminações de que foram objecto” (digo “estranhamente”, porque a argumentação anterior nega a possibilidade de invocar, sequer, a palavra “discriminação” quando se fala do ministério ordenado exclusivamente masculino). Mas, este “não faz parte dos direitos da pessoa, depende do mistério de Cristo e da Igreja”. Meditar na igualdade de todos pelo baptismo significa aceitar que isto quer dizer que a Igreja é “um corpo diferenciado, no qual cada um tem a sua função”.
A última frase do documento constitui uma recomendação às mulheres: “A Igreja faz votos para que as mulheres cristãs tomem plena consciência da grandeza da sua missão: o seu papel é capital hoje em dia, tanto para a renovação e a humanização da sociedade como para descobrir, de novo, por parte dos crentes, o verdadeiro rosto da Igreja”. Portanto, o verdadeiro rosto da Igreja é o da fidelidade a uma representação masculinizada da salvação, que legitima a conclusão de Mary Daly: “if God is male, than male is God”.
Já li este documento várias vezes. Da primeira vez que o li, fiquei entre atónita e indignada. Agora, quanto mais o leio e quanto mais vejo a realidade à minha volta, mais me convenço do seguinte: afinal, nós, mulheres não somos menos importantes – provavelmente, somos “o mais importante de tudo”. Caso contrário, como compreender que, para nos excluir do altar e da pregação, para nos invisibilizar dos lugares públicos de anúncio “oficial” do Evangelho, se aceite divinizar a masculinidade de Jesus? Somos assim tão ameaçadoras?
[i] Cf. João Paulo II, Audiência Geral, 12.09.1979, in: OR 210 (14 Setembro 1979) 2.
[ii] Cf. João Paulo II, Audiência Geral, 7.11.1979, in: OR 256 (8 Novembro 1979) 1.
[iii] Cf. DH 4812.
[iv] Cf. Leão XIII., Enc. “Libertas praestantissimum” (1888), in: DH 3247; Sacrosanctum Concilium Oecumenicum Vaticanum II, Declaratio de libertate religiosa. Dignitatis humanae, n.3, in: AAS 58 (1966) 931-932; Declaração da Sagrada Concregação para a Doutrina da Fé acerca de algumas questões de ética sexual “Persona humana” (1975), in: DH 4580.
[v] Cf. João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.18, in: AAS 80 (1988) 1695.
[vi] Cf. João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.29, in: AAS 80 (1988) 1721-1722.
[vii] Cf. Concilium Oecumenicum Vaticanum II, Nuntii ab E.mis Patribus Cardinalibus lecti et a Summo Pontifice iis traditi qui variarum socialum ordinum personam gerebant. Aux femmes, in: AAS 58 (1966) 14.
[viii] Pio XII., Audiência às participantes no Congresso feminino Internacional da Acção Católica, 15.04.1939, in: OR 90 (15 Abril 1939) 1.
[ix] João Paulo II, Christifideles laici, n.50, in: AAS 81 (1989) 490.
[x] Cf. Pio XII., Audiência Geral, 24.02.1942, in: OR 47 (26 Fevereiro 1942) 1: “(...) uma verdade antiga e sempre nova, radicada na própria situação física da vida da mulher.
[xi] João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.30, in: AAS 80 (1988) 1726.
[xii] Cf. João Paulo II, Ad episcopos Civitatum Foederatarum Americae Septemtrionalis missus, in: AAS 81 (1989) 1165.
[xiii] Paulo VI, Carta ao Presidente da 59ª. Sessão da Semana Social da França, Sr. Alain Barrière, in: OR 153 (5 Julho 1972) 1.
[xiv] Sacra Congregatio Pro Doctrina Fidei; Declaratio De abortu procurato, n. 15, in: AAS 66 (1974) 740. Cf. ainda: Pio XI, Casti connubii, in: AAS 22 (1930) 549, 567-568; Pio XII., Ad Delegatas Unionis internationalis Sodalitatum mulierum catholicarum ob communem Conventum Romae coadunatas, in: AAS 39 (1947) 480-488; Mulieribus peregrinationis causa ad sanctuarium lauretanum B. Mariae Virginis e tota Italia coadunatis, ad fausta anniversaria Summi Pontificis Pii XII pie celebranda, in: AAS 48 (1956) 779-786; Paulo VI, Octogesima Adveniens, n.13, in: AAS 63 (1971) 410; João Paulo II, Laborem Exercens, n.19, in: AAS 73 (1981) 627-628; Christifideles laici, n.50, in: AAS 81 (1989) 490; Ad episcopos Civitatum Foederatarum Americae Septemtrionalis missus, in: AAS 81 (1989) 1165; Ad eos qui conventui consociationum “Pro vita” ab omnibus nationibus interfuerunt coram admissos, in: AAS 84 (1992) 1061-1065; Mulieris dignitatem, n.10, in: AAS 80 (1988) 1674-1677; Joseph Ratzinger, Apertura del Consistoro Straordinario, in: Osservatore Romano, 5/04/1991.
[xv] João Paulo II, Discurso ao Centro Feminino Italiano, 7.12.1979, in: OR 282 (8 Dezembro 1979) 3.
[xvi] Cf. João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.18, in: AAS 80 (1988) 1696, 1697.
[xvii] Cf. Leão XIII., Litterae Encyclicae Rerum novarum, in: Acta Sanctae Sedis 23 (1890/91) 661; DH 3735; Pio XII, Mulieribus peregrinationis causa ad Sanctuarium lauretanum B. Mariae Virginis e tota Italia coadunatis, ad fausta anniversaria Summi Pontificis Pii XII pie celebranda, in: AAS 48 (1956) 779-786; DH 3963; João Paulo II, Laborem Exercens, n.19, in: AAS 73 (1981) 625-629; Christifideles laici, n.50-51, in: AAS 81 (1989) 489-496.
[xviii] Cf. nota n.36.
[xix] Pio XII., Audiência Geral, 24.02.1942, in: OR 47 (26 Fevereiro 1942) 1.
[xx] Cf. Philippe Aries / Georges Duby (dir.), História da vida privada, 5 vol., Lisboa, 1989-1991, especialmente vol.1, 77-81 e vol.5, 10-11; Georges Duby / Michelle Perrot (dir.), Histoire des femmes en Occident, 5 vol., Paris, 1990-1992.
[xxi] Cf. Pio XI, Enc. “Divini illius magistri” (1929), in: DH 3690.
[xxii] João Paulo II, Familiaris Consortio, n.73, in: AAS 74 (1982) 171.
[xxiii] Cf. Leão XIII, Enc. “Quamquam pluries” (1889), in: DH 3262 e 3263.
[xxiv]SACRA CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI, Declaratio circa quaestionem admissionis mulierum ad sacerdotium ministeriale. Inter insigniores, in: AAS 69 (1979) 98-116.
Teresa Toldy
João Paulo II desenvolveu uma teologia que ele designava por “teologia do corpo”[i] e que, no seu dizer, pretendia constituir uma reflexão sobre a igualdade e a identidade masculina e feminina. Essa teologia afirmava que “a sua homogeneidade [do homem e da mulher] diz respeito, sobretudo, ao corpo, à estrutura somática”[ii]. São iguais, porque ambos criados por Deus. A diversidade sexual marca a identidade masculina e a identidade feminina. A mulher reconhece-se como mulher diante do homem e o homem reconhece-se como homem diante da mulher. Portanto, este ser do corpo e da alma um para o outro constitui o significado último da masculinidade e da feminilidade (isto é, da existência sexuada).
A afirmação da igualdade fundamental do ser humano diante de Deus é sempre acompanhada pela afirmação da diferença entre o homem e a mulher. A reflexão acerca da essência da mulher, ou acerca da sua natureza situa-se neste contexto. A natureza humana reflecte a imagem de Deus, portanto, não se deixa determinar pela sociedade, ou pelas circunstâncias históricas[iii]. Sendo assim, é eterna, porque Deus é eterno, e está inscrita no coração do ser humano, porque este é criação divina[iv], já dizia Leão XIII.
Contrariar a natureza humana é contrariar o plano de Deus acerca do ser humano. Esta vontade deve ser cumprida em todos os níveis da vida humana, quer seja na vida social, quer seja na vida familiar, ou pessoal.
As afirmações dos documentos papais acerca da natureza da mulher inserem-se neste contexto global. A sua preocupação é encontrar a sua especificidade, tal como ela é ditada pela natureza. O discurso acerca da natureza humana implicará sempre estas duas vertentes: a afirmação da igualdade do homem e da mulher, ambos possuidores da mesma natureza, e a diferença entre ambos, a qual determina a sua desigualdade. O elemento constitutivo da feminilidade é a maternidade. A mulher identifica-se pela “disposição natural” que o seu organismo tem de servir a geração e o nascimento do ser humano[v], segundo João Paulo II. Sendo assim, a complementaridade parece revelar-se, antes de mais, fisicamente. A vontade de Deus é que a mulher seja aquela na qual a ordem do amor do mundo criado das pessoas encontra um terreno para deitar a sua primeira raiz[vi], metáfora – diga-se de passagem – com uma longa história de misoginia. Conclui-se da quase total ausência de reflexão sobre o significado das características masculinas para o ser homem, a associação mais directa da definição de mulher às suas determinações físicas.
A natureza biológica da mulher parece ser extrapolada para a sua natureza espiritual. Os textos traçam o retrato espiritual feminino a partir da condição de mãe: a mulher possui o amor à vida, o sentimento de protecção do berço. Ela conhece o mistério da vida[vii], como diz o Concílio. Ela tem a missão de “colocar bálsamo nas feridas abertas da humanidade”, dizia Pio XII[viii]. E, uma vez que a lei da natureza é eterna, estas características da mulher constituem a sua “essência perene”[ix], segundo João Paulo II, ou a sua “verdade”[x]. Segundo Pio XII. Estas características da mulher são “imutáveis e não se desactualizam”[xi], uma vez que constituem o plano de Deus para as mulheres[xii]. Aliás, à objecção de que muito daquilo que é atribuído à natureza da mulher pode ser produto cultural e histórico, Paulo VI respondia que “a história e a natureza estão estreitamente ligadas uma à outra”[xiii].
Neste contexto, os textos do Magistério revelam sempre o temor de que os movimentos de emancipação da mulher, no caso de lutarem por uma igualdade entre o homem e a mulher que procura mudar “aquilo que a natureza exige do homem e aquilo que a natureza exige da mulher[xiv]“, desrespeitem esta ordem estabelecida pelo Criador. A posição dos documentos papais ou de dicastérios da Santa Sé relativamente aos movimentos feministas vem na sequência da dupla afirmação, aliás já mencionada, da igualdade e da diferença entre o homem e a mulher.
A questão da maternidade prende-se directamente com a problemática da natureza da mulher. Ela constitui a sua essência, a revelação do significado da feminilidade. E esta é determinada biologicamente. João Paulo II afirma que, dada a sua condição de mãe, a mulher possui “uma sensibilidade subtil, um sentido da realidade concreta e um amor atencioso para com aquilo que está em crescimento e que, por isso, precisa de cuidado especial”[xv].
Este tipo de descrições revela também uma tendência para idealizar a figura da mulher como uma mãe perfeita. Além disso, a mulher é definida apenas pelo seu papel relativamente a um outro: a criança. O facto de se fazer uma idealização desse seu papel parece esvaziar ainda mais a mulher duma identidade e duma existência concretas. O sujeito da reflexão acerca da identidade feminina é sempre um outro em função do qual se coloca a sua própria existência. Esta redução da mulher à sua função é agravada nos textos em causa pelo facto de não se encontrar uma reflexão igualmente desenvolvida acerca do papel do homem enquanto pai.
João Paulo II afirma mesmo que “o ser genitores - ainda que seja comum aos dois - realiza-se muito mais na mulher, especialmente no período pré-natal.” Portanto, o homem “encontra-se sempre 'fora' do processo da gestação e do nascimento da criança”. Ainda que a educação dos filhos seja da competência tanto do pai como da mãe, a contribuição materna “é decisiva”[xvi]. A maternidade é, portanto, a chave de interpretação do significado da existência das mulheres. Sendo assim, ela constitui também o seu papel social fundamental.
Esta identificação do papel social da mulher com a maternidade torna-se mais evidente se atendermos à forma como os textos encaram o seu trabalho profissional. Muitos acentuam a dificuldade que este pode causar para o cumprimento daquilo que é específico da mulher, isto é, a maternidade[xvii]. Do mesmo modo, uma das reticências colocadas aos movimentos de emancipação fundamenta-se, precisamente, no receio de que estes transtornem a vocação fundamental da mulher à maternidade[xviii].
Na perspectiva dos documentos em causa, o contributo essencial da mulher para a sociedade situa-se, portanto, na esfera privada, uma vez que consiste na maternidade. Os textos consultados atribuem predominantemente aos homens as funções públicas e às mulheres os papéis relacionados directamente com a manutenção do lar e da família. Elas são o garante da estabilidade do domínio privado. Nas palavras de Pio XII, o lar é “o campo e o ninho da actividade da esposa”[xix]. O papel ideal para a mulher é o de mãe, com a sua correspondente confinação ao domínio do privado. Os termos em que os textos colocam a questão reflectem, pois, a distribuição de papéis sociais no Ocidente, segundo a qual à mulher pertence o domínio privado (da casa, da família) e ao homem, o domínio público, social[xx]. Sendo assim, o ideal de mulher como mãe coincide com a ordem social vigente.
Os textos papais também comparam a Igreja com a família. Pio XI afirma que a tarefa da família coincide com a da Igreja: Deus comunica a ambas a fecundidade, a transmissão da vida, da educação e da autoridade, “princípio de toda a ordem”[xxi].
Quando se estabelece o paralelo entre a autoridade na família e a autoridade na Igreja, compara-se o papel da hierarquia com o do pai. Assim, João Paulo II afirma que “os padres e os diáconos estão para a família como um pai, um irmão, um pastor e um mestre”[xxii]. Portanto, tanto na Igreja, como na família, a autoridade encontra-se na linha paterna.
Esta mesma ideia parece confirmar-se se atendermos, de novo, aos termos em que os textos falam de S. José como patrono da Igreja. Numa passagem de um documento de Leão XIII podemos encontrar o seguinte raciocínio: Jesus devia obediência a José, enquanto pai humano, como é próprio de toda a relação entre pai e filho. José era o protector, o tutor e o defensor natural da família divina. Ora, a sagrada família, “que José orienta com pleno poder paterno”, é o embrião da Igreja: Maria é a mãe de todos os crentes e Jesus é o primogénito de todos os cristãos. S. José goza de autoridade paterna sobre a Igreja[xxiii].
Podemos, então, concluir que o paralelo estabelecido entre a estrutura familiar e a estrutura eclesial reflecte uma concepção da distribuição de papéis entre a mulher e o homem que exclui a primeira das funções relacionadas com a autoridade.
Ora esta é esta precisamente a lógica reproduzida na Declaração sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial (Inter insigniores)[xxiv], emanada da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé no dia 15 de Outubro de 1976 (curiosamente, dia da Festa de Santa Teresa d’Ávila) e repetida até à saciedade por todas as declarações posteriores sobre um assunto cada vez mais difícil de calar e de ignorar (não há argumentos “recentes” sobre o assunto, ao contrário do que poderia parecer a algumas figuras com responsabilidade… Os argumentos têm sido sempre os mesmos de há 35 anos a esta parte…).
Se nos debruçamos sobre este tema da ordenação das mulheres não é por considerarmos que ele constitui a única chaga no que diz concerne ao respeito pelos direitos humanos das mulheres dentro da Igreja. É sobretudo porque neste tema se torna presente de uma forma translúcida a lógica de uma antropologia mitigadamente desigualitária. Desta vez, a argumentação gira em torno da centralidade da masculinidade de Jesus para o exercício do ministério. Devo à Fernanda Henriques a compreensão (durante o trabalho conjunto para a elaboração deste texto) de que a questão não está só na insistência explicitada no documento na impossibilidade de mulheres representarem um homem – Jesus Cristo – no altar, pelo facto de serem mulheres e existir uma “dissemelhança” delas com Jesus – homem. A questão também estará – ainda que não seja explicitada – no facto de Jesus ter exercido um ministério público, de os ministérios ordenados serem públicos e de, como tal, estarem vedados às mulheres, uma vez que a estas se lhes atribui, ancestralmente, o domínio privado ou sucedâneos do domínio privado (veja-se a tendência para reproduzir a lógica da maternidade em referências ao papel das mulheres na educação e no cuidar, por exemplo). A lógica final do documento Inter insigniores coloca esta desigualdade, mais uma vez, no próprio plano de Deus.
Mas debrucemo-nos mais detalhadamente sobre o texto. Começaremos por constatar que a Declaração se inicia citando João XXIII, que na sua Encíclica Pacem in Terris considerou precisamente como um dos sinais mais característicos da nossa época “o facto de as mulheres estarem a entrar na vida pública, quiçá mais depressa nos povos que professam a fé cristã e mais lentamente, mas também em grande escala, nos países com outras civilizações e tradições”. Menciona-se também a existência de formas de discriminação que devem ser superadas, por serem contrárias ao plano de Deus. Refere-se, em seguida, a existência de muitas mulheres no apostolado e a relevância de muitas mulheres ao longo da história da Igreja. Poder-se-ia dizer que esta introdução contraria a tese da interdição do exercício do ministério ordenado devido ao carácter público de este último. Simplesmente, não deverá perder-se de vista que a atribuição do espaço público aos homens, ao longo dos tempos, também esteve sempre associada ao facto de ser este o espaço de exercício do poder configurador da ordem social. E deve ter-se igualmente presente que o documento irá utilizar a linguagem do “oficial” e do “oficioso”, aplicando a primeira aos homens e a segunda às mulheres, como veremos.
Onde faz, então, o documento radicar a proibição do acesso das mulheres ao ministério ordenado? Antes de mais, invocando a tradição, com uma frase lapidar: “A Igreja nunca admitiu que as mulheres pudessem receber validamente a ordenação sacerdotal ou episcopal”. Se tal aconteceu foi em seitas heréticas, como, por exemplos, as gnósticas. Essa exclusão deve-se ao desejo de a Igreja permanecer fiel ao seu fundador, segundo prossegue o documento. Portanto, a exclusão das mulheres do ministério ordenado constitui um sinal de fidelidade a Jesus Cristo e aos Apóstolos. O documento avança o segundo argumento, ligado a este primeiro: Jesus Cristo nunca chamou nenhuma mulher a fazer parte dos Doze”. É certo que, durante o seu ministério, se faz acompanhar de mulheres e é certo que são elas as primeiras testemunhas da ressurreição, mas não são as testemunhas oficiais: elas são é “encarregadas por Jesus de levar a primeira mensagem pascal aos Onze, para os preparar para serem os testemunhos oficiais da ressurreição”. Portanto, “oficialmente”, Jesus ressuscitado apareceu aos homens e oficiosamente, às mulheres. E não foi à sua Mãe (aliás, proclamada Mãe de Deus!) que Jesus “confiou as chaves do reino dos céus”, mas sim a Pedro.
Terceiro argumento: a prática dos apóstolos. É certo que Maria ocupa um ligar privilegiado no Cenáculo, mas não foi chamada a integrar o colégio dos Doze. Judas foi substituído por Matias. O documento refere ainda as comunidades paulinas, no mundo greco-romano, e conclui que, apesar de no mundo helénico haver cultos pagãos confiados a sacerdotisas e apesar de haver mulheres “colaboradoras” de Paulo, esta colaboração nunca chegou ao ponto de lhes ser entregue o “anúncio oficial e público [sublinho: público!] da mensagem”.
Poderá a Igreja mudar de atitude face a esta questão? Não – quarto argumento – porque a atitude de Jesus e dos apóstolos tem um valor permanente. As prescrições de Paulo relativas à obrigação da mulher cobrir a cabeça são culturais. Mas a proibição de falar na assembleia “é de outro tipo”: elas podem profetizar, mas não podem ter a “função oficial de ensinar na assembleia”. E isto devido ao “plano divino da criação”: o texto refere Gen 2,18-24 (isto é, o relato da criação da mulher como “auxiliar” do homem) sem explicar a relação que estabelece entre a interdição das mulheres ensinarem na assembleia e os versículos da criação.
É certo que, segundo se diz, a Igreja tem consciência de “possuir certo poder de intervenção” sobre os sacramentos (todos sabemos a evolução por que passaram os sacramentos, por exemplo, da penitência). Mas, e cito do documento: “em última análise é a Igreja que, através da voz do seu Magistério, assegura em campos tão variados o discernimento acerca do que pode mudar e do que deve permanecer imutável. Quando ela crê não poder aceitar certas mudanças, é porque se sente vinculada pela conduta de Cristo.” Por isso, surge, agora o argumento da autoridade: “Esta prática da Igreja reveste, pois, um carácter normativo: na prática de não conferir senão a homens a ordenação sacerdotal há uma tradição constante no tempo, universal no Oriente e no Ocidente, vigilante em reprimir imediatamente os abusos; esta norma, que se apoia no exemplo de Cristo, é seguida porque se considera conforme ao plano de Deus para a sua Igreja”. Isto é, o plano de Deus para a sua Igreja passa pela exclusão das mulheres do acesso ao ministério ordenado.
Mas a declaração dá mais um passo: não basta referir a autoridade da Igreja como “seguidora fiel” do exemplo de Cristo, é preciso inserir a própria masculinidade do ministério no mistério de Cristo, isto é, é preciso “teologizar” a exclusão do feminino, fazendo referência à “semelhança natural” que deve existir entre Cristo e o seu ministro, Cristo que “foi e continua a ser homem”. É certo que ele é o primogénito de uma humanidade constituída por homens e mulheres, mas “a encarnação do Verbo fez-se segundo o sexo masculino”. E este facto é “inseparável da economia da salvação”, aliás, “está em harmonia com o conjunto do plano de Deus, tal como Deus mesmo o revelou e cujo centro é o mistério da Aliança”. Portanto, está inscrito no plano de Deus que as mulheres não podem ser consideradas “semelhantes a Cristo”. Está inscrito no plano de Deus que não podem ter acesso ao ministério ordenado. Está inscrito no plano de Deus que Cristo é esposo e chefe da Igreja e que este papel só pode ser realizado por um homem. É certo que o sacerdote representa a Igreja, que é o Corpo de Cristo, mas representa a sua cabeça, que é Cristo, e Cristo, é homem.
Ora se o ministério sacerdotal se insere no mistério da Igreja e se esta é obra do Espírito Santo, não se pode mencionar os direitos humanos ao falar desta questão: em Gálatas 3,28, diz-se que, em Cristo, não há homem, nem mulher. “Mas o texto não se refere em absoluto aos ministérios: ele afirma somente [sublinhado meu] a vocação universal à filiação divina que é a mesma em todos”. Portanto, a filiação divina que é a mesma em todos não chega para fundamentar o ministério ordenado.
O documenta termina dizendo que as mulheres que desejam o ministério estão, certamente, ”inspiradas pela vontade de servir a Cristo e à sua Igreja”. Acrescenta-se – aliás, estranhamente – que isto “não é surpreendente num momento em que as mulheres tomam consciência das discriminações de que foram objecto” (digo “estranhamente”, porque a argumentação anterior nega a possibilidade de invocar, sequer, a palavra “discriminação” quando se fala do ministério ordenado exclusivamente masculino). Mas, este “não faz parte dos direitos da pessoa, depende do mistério de Cristo e da Igreja”. Meditar na igualdade de todos pelo baptismo significa aceitar que isto quer dizer que a Igreja é “um corpo diferenciado, no qual cada um tem a sua função”.
A última frase do documento constitui uma recomendação às mulheres: “A Igreja faz votos para que as mulheres cristãs tomem plena consciência da grandeza da sua missão: o seu papel é capital hoje em dia, tanto para a renovação e a humanização da sociedade como para descobrir, de novo, por parte dos crentes, o verdadeiro rosto da Igreja”. Portanto, o verdadeiro rosto da Igreja é o da fidelidade a uma representação masculinizada da salvação, que legitima a conclusão de Mary Daly: “if God is male, than male is God”.
Já li este documento várias vezes. Da primeira vez que o li, fiquei entre atónita e indignada. Agora, quanto mais o leio e quanto mais vejo a realidade à minha volta, mais me convenço do seguinte: afinal, nós, mulheres não somos menos importantes – provavelmente, somos “o mais importante de tudo”. Caso contrário, como compreender que, para nos excluir do altar e da pregação, para nos invisibilizar dos lugares públicos de anúncio “oficial” do Evangelho, se aceite divinizar a masculinidade de Jesus? Somos assim tão ameaçadoras?
[i] Cf. João Paulo II, Audiência Geral, 12.09.1979, in: OR 210 (14 Setembro 1979) 2.
[ii] Cf. João Paulo II, Audiência Geral, 7.11.1979, in: OR 256 (8 Novembro 1979) 1.
[iii] Cf. DH 4812.
[iv] Cf. Leão XIII., Enc. “Libertas praestantissimum” (1888), in: DH 3247; Sacrosanctum Concilium Oecumenicum Vaticanum II, Declaratio de libertate religiosa. Dignitatis humanae, n.3, in: AAS 58 (1966) 931-932; Declaração da Sagrada Concregação para a Doutrina da Fé acerca de algumas questões de ética sexual “Persona humana” (1975), in: DH 4580.
[v] Cf. João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.18, in: AAS 80 (1988) 1695.
[vi] Cf. João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.29, in: AAS 80 (1988) 1721-1722.
[vii] Cf. Concilium Oecumenicum Vaticanum II, Nuntii ab E.mis Patribus Cardinalibus lecti et a Summo Pontifice iis traditi qui variarum socialum ordinum personam gerebant. Aux femmes, in: AAS 58 (1966) 14.
[viii] Pio XII., Audiência às participantes no Congresso feminino Internacional da Acção Católica, 15.04.1939, in: OR 90 (15 Abril 1939) 1.
[ix] João Paulo II, Christifideles laici, n.50, in: AAS 81 (1989) 490.
[x] Cf. Pio XII., Audiência Geral, 24.02.1942, in: OR 47 (26 Fevereiro 1942) 1: “(...) uma verdade antiga e sempre nova, radicada na própria situação física da vida da mulher.
[xi] João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.30, in: AAS 80 (1988) 1726.
[xii] Cf. João Paulo II, Ad episcopos Civitatum Foederatarum Americae Septemtrionalis missus, in: AAS 81 (1989) 1165.
[xiii] Paulo VI, Carta ao Presidente da 59ª. Sessão da Semana Social da França, Sr. Alain Barrière, in: OR 153 (5 Julho 1972) 1.
[xiv] Sacra Congregatio Pro Doctrina Fidei; Declaratio De abortu procurato, n. 15, in: AAS 66 (1974) 740. Cf. ainda: Pio XI, Casti connubii, in: AAS 22 (1930) 549, 567-568; Pio XII., Ad Delegatas Unionis internationalis Sodalitatum mulierum catholicarum ob communem Conventum Romae coadunatas, in: AAS 39 (1947) 480-488; Mulieribus peregrinationis causa ad sanctuarium lauretanum B. Mariae Virginis e tota Italia coadunatis, ad fausta anniversaria Summi Pontificis Pii XII pie celebranda, in: AAS 48 (1956) 779-786; Paulo VI, Octogesima Adveniens, n.13, in: AAS 63 (1971) 410; João Paulo II, Laborem Exercens, n.19, in: AAS 73 (1981) 627-628; Christifideles laici, n.50, in: AAS 81 (1989) 490; Ad episcopos Civitatum Foederatarum Americae Septemtrionalis missus, in: AAS 81 (1989) 1165; Ad eos qui conventui consociationum “Pro vita” ab omnibus nationibus interfuerunt coram admissos, in: AAS 84 (1992) 1061-1065; Mulieris dignitatem, n.10, in: AAS 80 (1988) 1674-1677; Joseph Ratzinger, Apertura del Consistoro Straordinario, in: Osservatore Romano, 5/04/1991.
[xv] João Paulo II, Discurso ao Centro Feminino Italiano, 7.12.1979, in: OR 282 (8 Dezembro 1979) 3.
[xvi] Cf. João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.18, in: AAS 80 (1988) 1696, 1697.
[xvii] Cf. Leão XIII., Litterae Encyclicae Rerum novarum, in: Acta Sanctae Sedis 23 (1890/91) 661; DH 3735; Pio XII, Mulieribus peregrinationis causa ad Sanctuarium lauretanum B. Mariae Virginis e tota Italia coadunatis, ad fausta anniversaria Summi Pontificis Pii XII pie celebranda, in: AAS 48 (1956) 779-786; DH 3963; João Paulo II, Laborem Exercens, n.19, in: AAS 73 (1981) 625-629; Christifideles laici, n.50-51, in: AAS 81 (1989) 489-496.
[xviii] Cf. nota n.36.
[xix] Pio XII., Audiência Geral, 24.02.1942, in: OR 47 (26 Fevereiro 1942) 1.
[xx] Cf. Philippe Aries / Georges Duby (dir.), História da vida privada, 5 vol., Lisboa, 1989-1991, especialmente vol.1, 77-81 e vol.5, 10-11; Georges Duby / Michelle Perrot (dir.), Histoire des femmes en Occident, 5 vol., Paris, 1990-1992.
[xxi] Cf. Pio XI, Enc. “Divini illius magistri” (1929), in: DH 3690.
[xxii] João Paulo II, Familiaris Consortio, n.73, in: AAS 74 (1982) 171.
[xxiii] Cf. Leão XIII, Enc. “Quamquam pluries” (1889), in: DH 3262 e 3263.
[xxiv]SACRA CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI, Declaratio circa quaestionem admissionis mulierum ad sacerdotium ministeriale. Inter insigniores, in: AAS 69 (1979) 98-116.
Teresa Toldy
2012.04.14
Texto da intervenção da teóloga Teresa Toldy na Conferência Jesus, Mulheres e Igreja, organizada pelo NSI-PT
Texto da intervenção da teóloga Teresa Toldy na Conferência Jesus, Mulheres e Igreja, organizada pelo NSI-PT
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