09 maio 2012

A questão do “muitos” e do “todos” na consagração do vinho

O melhor texto que encontrei para o blogue deste mês é este. É longo, mas é essencial.


Frei Bento Domingues









Introdução
Segundo informação vaticana de 30 de Abril p.p., Bento XVI teria enviado aos bispos católicos da Alemanha uma mensagem determinando que a expressão “pro multis”, isto é, “por muitos”, da consagração eucarística do vinho, e que em várias línguas (incluindo a portuguesa) é actualmente traduzida “por todos”, seja a preferida, porque mais fiel ao texto bíblico. É verdade, filologicamente. Mas não, semanticamente. E em hermenêutica bíblica, se interessa a filologia, mais, muito mais nos deve interessar a semântica. Mas, vamos por partes.

A consagração eucarística do vinho
É verdade que no texto original do Missal Romano se lê, na fórmula eucarística da consagração do vinho e a propósito do sangue do Senhor Jesus: qui pro vobis et pro multis effundetur in remissionem peccatorum, o que dá em português e consta dos missais canonicamente aprovados e em uso: derramado por vós e por todos os homens para remissão dos pecados. Assim também em outras línguas, em que o multis do Missal Romano, isto é, muitos, é traduzido por todos. Quem tem razão? Vamos a ver. Mas antes, sejam-me permitidas algumas observações prévias.

Observações Prévias
O primeiro documento bíblico que nos informa sobre o que hoje consideramos a Eucaristia (ou a Missa, se quisermos), é a referência que Paulo faz à refeição fraterna dos fiéis de Corinto (1Cor.11,17-34)
[1]. Nele Paulo afirma taxativamente: “Com efeito, eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse “Isto é o meu corpo, que é entregue por vós; fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue: todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim” (1Cor.11,23-26). E mais não disse Paulo nem escreveu.

Outros bem puxados vinte anos depois, o médico Lucas, caríssimo discípulo e companheiro[2]
e colaborador de Paulo[3] na narrativa da Ceia de Despedida do Senhor Jesus escreve: “Depois da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós” (Lc.22,20), no que está essencialmente de acordo com Paulo (1Cor.11,25), diferindo, quanto ao sangue, apenas naquele: que vai ser derramado por vós. E nada mais.

Os dois outros Sinópticos (Marcos, que escreveu antes dos demais, e Mateus) dão-nos as seguintes versões sobre o mesmo[4]: Depois, tomou o cálice, deu graças e entregou-lho. Todos beberam dele. E Ele disse-lhes: “Isto é o meu sangue da aliança, que vai ser derramado por todos…” (Mc.14,23-24). Segundo Mateus: Em seguida, tomou um cálice, deu graças e entregou-lho, dizendo: “Bebei dele todos. Porque este é o meu sangue, sangue da Aliança, que vai ser derramado por muitos, para perdão dos pecados (Mt.26,27-28). Embora no texto grego original, e quanto ao sangue derramado, a expressão num e noutro evangelista seja a mesma, e translitero: tò ekchynnónenon hypèr pollôn (Marcos); tò perì pollôn ekchynnónenon, é notável que a tradução em Marcos e Mateus do termo grego pollôn, que é o busílis da questão, não seja a mesma: todos, em Marcos, e muitos, em Mateus. Afinal em que ficamos? Em todos ou só em muitos? Segundo Bento XVI deverá ser muitos. Segundo me parece e justificarei, literariamente, o tradutor de Marcos tem razão: são todos.

A chave da questão
Não há dúvida nenhuma de que o termo grego pollôn[5]
se pode traduzir, à letra, por muitos. Assim leio na quase dúzia de versões portuguesas que possuo[6], à excepção de duas: a TEB – a tradução ecuménica, publicada no Brasil pelas Paulinas em 1995, com recomendação do Presidente da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros, e cujo texto é: derramado em prol da multidão, e A Boa Nova Para Toda A Gente, da Sociedade Bíblica, publicada em Lisboa em 1978 (Novo Testamento), com a aprovação de D. António, bispo do Porto, presidente da Comissão Episcopal da Doutrina da Fé, e cuja versão é: derramdo em favor da humanidade. Claro que isto não são versões mas interpretações. S. Jerónimo quando, no século IV, traduziu a Bíblia do hebraico e do grego para o latim, foi filologicamente (e acentuo: filologicamente) fiel ao original, vertendo: qui pro multis effundetur. E da Vulgata Latina terá passado para o Missal Romano. Mas, bem ou mal? Mal, porque não se trata apenas de uma questão filológica, mas também, e sobretudo, semântica. Ou, por outras palavras: o que é que aquele texto grego quer dizer: muitos ou todos?
Estou convencido de que quer dizer todos e pelas seguintes razões:

1. A tradição cristã em voga no tempo tanto da redacção dos Evangelhos segundo Marcos e Mateus, como no tempo de S. Jerónimo, era a de que o Senhor Jesus de Nazaré era o Messias. Na Sua Paixão e Morte realizara o predito pelo Segundo Isaías (século VI a.C.) sobre o Servo de Yahwéh: “Por isso ser-lhe-á dada uma multidão como herança, há-de receber muita gente como despojos, porque ele próprio entregou a sua vida à morte, e foi contado entre os pecadores, tomando sobre si os pecados de muitos (rabbim, no hebraico) e sofreu pelos pecados (Is.53,12). Quem não lê esta parte da “profecia” repercutida na fórmula consecratória do vinho em Mateus (21,22)[7]?
Ademais, é e bom que se diga em abono da ciência bíblica, as narrativas da Ceia de Despedida nos Sinópticos não correspondem por inteiro ao que, historicamente, então se terá verificado, não repugnando, por isso, que constituam criações da primitiva Comunidade Cristã face à prática cada vez mais generalizada de se reunirem os fiéis discípulos do Senhor Jesus em comunitárias e fraternas refeições a que, pouco a pouco, se foi dando carácter sagrado.

2. Em segundo lugar, o plural do adjectivo grego polús, pollê, polú (muito) é usado, tanto no grego clássico[8]
como no grego bíblico do Novo Testamento no sentido da totalidade, de todos. Assim, por exemplo, quando Paulo escreve aos Romanos: Se pela falta de um só homem (ei gàr tôi toỹ enòs (um) paraptốmati) todos morreram (hoi polloi apéthanon), com muito mais razão a graça de Deus, aquela graça oferecida por meio de um só homem (enós anthôpoy), Jesus Cristo, foi a todos (eis toys polloys) concedida em abundância (Rm.5,15). Aqui, não há dúvida, o sentido do adjectivo grego é o de totalidade (todos) e não apenas de pluralidade (muitos). E, mais abaixo, volta Paulo a usar polys, pollê, poly no mesmo sentido de totalidade: De facto, tal como pela desobediência de um só homem (toỹ enòs anthôpoy), todos (hoi polloi) se tornaram pecadores… (Rm.5,19).

3. Finalmente, o argumento da analogia da fé. Como é que que esta opção pelo muitos (sangue derramado por muitos), em vez de todos, se compagina com as afirmações bíblicas (e não é agora caso de tomar em mãos o tema, que isso nos levaria longe) da universalidade da salvação messiânica[9]?


Conclusão
Filologicamente, é possível a tradução: derramado por muitos. Semântica e exegeticamente, não. Por isso, está certo e bem traduzir-se: derramado por todos, na fórmula consecratória do vinho.

A. Cunha de Oliveira, 2012.05.05



[1] Esta Primeira Carta de Paulo aos Coríntios terá sido escrita uns vinte e poucos anos após a morte do Senhor Jesus.
[2] Como bem se fica sabendo pelo uso do plural por Lucas em Act.16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,1-28.
[3]Cl.4,14; Flm.24; 2Tm.4,11.
[4] Estou seguindo a versão portuguesa da Nova Bíblia dos Capuchinhos (1ª edição, 1989).
[5] Genitivo do plural do adjectivo polys, pollê, polú (do sâncrito: púruh, com sentido de plenitude), que significa: muito, numeroso, e similares.
[6] Os ingleses traduzem: for many, e os alemães für viele.
[7] Sobre tudo isto, nem palavra no IV Evangelho, que terá sido composto depois do ano 90, ou seja, bem mais de meio século após a morte do Senhor Jesus.
[8] Veja-se Lorenzo Rocci, no seu monumental Vocabulário Greco-Italiano, 1534.
[9] Por desfastio, leia-se, entre outras, qualquer das seguintes citações: Lc.3,6; Jo.3,17;4,42;12,47; Act.4,12;28,28; Rm.11,11; 1Tm.2,4;4,10; Tt.2,11; 1Jo.4,14.

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