30 junho 2012

Contestar as Mentalidades

 
 
Sou devoradora de jornais, ágil na internet, curiosa sobre o que acontece no mundo. Passo os meus dias em corrida de velocidade, como se estivesse num jogo de apanhada, a ver se alcanço e agarro as surpreendentes notícias que a toda a hora invadem o meu espírito, a minha casa, o meu espaço, para soltar as emoções, tão desencontradas, que me tomam, de cada vez. Mas as notícias ultrapassam-me e nem sempre sou capaz de segurar o fôlego, de ficar calada e quieta, de criar o silêncio interior que me acalme, me sossegue, me traga paciência e tolerância, ou pura indiferença em todos os absurdos que desfilam perante os meus olhos, em vertiginoso delírio os absurdos aceleram.    
Há os casos sinistros porque são dramáticos, como o do sacristão pedófilo, filmado por um dos miúdos abusados a masturbar-se à frente de outros miúdos. Com todas as consequências ou não consequências penais, quero saber o que trará a sequência dos acontecimentos. Que posição concreta será a da Igreja, a do padre da freguesia, que outras denúncias irá desencadear, que reações na opinião pública, quando o devoto/pedófilo sacristão já vai sendo assunto suculento e comentado na Praça da Alegria, o programa popular da manhã na RTP1?  
E há os casos risíveis, ou as farsas, um género teatral que, como toda a gente sabe, está acima da comédia, pela situação hilariante que provoca, porque é excessivo, porque é acelerado no possível nonsense. Eu não preciso de cenário para considerar como farsa duas das mais recentes notícias divulgadas sobre a Igreja em Portugal. Notícias sobre dois acontecimentos que talvez pretendam ser formas alternativas de Nova Evangelização, para as almas simples, dóceis e submissas.  O primeiro caso, é o da inauguração, em 6 de Junho do “Milagre de Fátima” em Hologramas (para perceber o fenómeno, aconselho a gloogar  Ciência Viva, e a ler a explicação…) Em Fátima, o investimento de 1 milhão de euros (um milhão!!!) incorporando 75 por cento de fundos comunitários (!!!) pretende atrair 300 mil pessoas por ano para apreciar “conteúdos de multimédia de ultima geração, recorrendo a hologramas, sons e odores” e assim reviver as Aparições aos pastorinhos. O segundo caso, transcendente, vai concretizar-se também em Fátima, 18 de Julho às 20 horas. Chama-se Cristoteca (!!!), é promovido pelo movimento brasileiro Aliança da Misericórdia, é um espaço de dança, oração e evangelização em que Cristodrinks (assim mesmo, meu Deus!!!), bebidas sem álcool são servidas. A evangelização faz-se corpo a corpo durante a dança, quando as missionárias do Aliança chegarão perto dos rapazes e das raparigas (claro que a Cristoteca não pretende chamar gente de meia idade), demonstrando-lhes que ali, o rei da dança, é Jesus. E que namorar se pode, sim, mas com pureza, castidade e virtude. Sem pecado (nem sexo, entenda-se). Para quem conhece o Brasil e o fenómeno das igrejas evangélicas, parece-me este Aliança da Misericórdia( criado em São Paulo e em Portugal desde 2008) muito influenciado pelos rituais dessas igrejas. O que me traz alguma perplexidade.    
Falando em um outro mundo real. Há um tempo, chegou-me via internet a curta filmagem de uma cantoria dos Salmos na missa de domingo na TVI. Dispenso-me de descrever porque todos poderão imaginar aquela estética e cultura pré conciliar que, também extraordinariamente, continua e existir, e que não tem nada a ver com o “pietismo”, que José Mattoso considera “uma devoção sentimental que é por vezes a expressão de um culto popular e precisa de reflexão racional para se tornar aceitável.” Com a tristeza destas notícias, cada vez mais penso que contestar as mentalidades é meu dever cristão.

Leonor Xavier
26 de Junho de 2012 

27 junho 2012

A maternidade onde o sol nasce

Como ainda era cedo para chegar aonde ia, subi a pé aquela parte da cidade onde sempre se passa depressa. No meio do bulício matinal e tendo o ar fresco da manhã como after shave, chamou-me a atenção um intenso brilho amarelo. Iluminada pelo sol nascente, a Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa, mostrava o seu discreto esplendor entre elevados edifícios sem pátria. Depois de reconfortado com o sabor e o aroma de um café, olhei durante alguns minutos para aquela fachada tentando imaginar a azáfama por dentro da visível serenidade exterior. Quantas histórias por detrás daquelas janelas onde o sol reflectia intensamente! Certamente muitas histórias clínicas e humanas, com a diversidade correspondente. Profundas, intensas, umas com humor, outras dramáticas, histórias de vidas vistas e ouvidas com a atenção possível dentro da concentração necessária. Provavelmente um dos lugares onde se revela de modo especial a singularidade e a diversidade do ser humano e da sociedade. Um espaço onde poderá acontecer o que é tido como normal (como o nascer do sol), ou o que é visto como raro, excepcional, diferente, o melhor e o pior de uma sociedade, as suas fragilidades e esperanças, as suas forças e fraquezas. Num espaço assim poderão conviver vários estratos sociais, desde “o muito bem” ao “zé-ninguém”, várias culturas, raças, etnias, faixas etárias, muitas e diferentes maneiras de viver e sentir aquilo que ali se trata e cuida. Pelo que fui lendo há uns tempos, num período de luta aberta em defesa da MAC, pude compreender que quem lá trabalha ou trabalhou não fica indiferente e fica diferente. Sente-se vir dali uma energia positiva que congrega e em momentos difíceis vem ao de cima. Parece haver naquela casa qualquer coisa de família, com pertenças e laços consolidados. Uma família que nos últimos tempos se sente ameaçada. Inicialmente, pensando que não eram mais do que boatos, não reagiu continuando com naturalidade as suas vivências e exigências. O tempo encarregou-se de mostrar a consistência do que se falava. Acordados, em Semana Santa, ficaram vigilantes e reagiram com a força e a consciência do valor do seu trabalho e a energia dos laços de uma verdadeira família. Trabalho que, à mercê de razões económicas e outras mais obscuras, iria ser apagado, desmembrado, fragmentado. E aquela família, plural e multidisciplinar, sabe que o que bem faz é o resultado de uma forma de estar e actuar apurada pelo tempo, pela formação e pelas múltiplas e muitas experiências que o terreno fértil proporciona. Nem a angústia e a tristeza do fim que se anunciava (de alguma forma paralelas às de Jesus no Jardim das Oliveiras, que nesses dias se liam) os impediu de reagir. E vigiaram porque sentiam que talvez nem tudo estivesse consumado. Entre uma opinião pública de alguns indiferentes, outros críticos, muitos se uniram à sua causa. Os argumentos dos afectos e os da razão. Alguns chamaram-lhe jóia da coroa, outros, útero urbano, destacando as qualidades técnicas e científicas reconhecidas além-fronteiras. Outros ainda, não sabendo dizer melhor, simplesmente evocavam que um lugar de bem nascer não deveria morrer. Aquela casa é para muitos a gruta do seu presépio. E, logo após o anúncio da Ressurreição, uniram as mãos e os laços, num abraço simbólico em redor do que queriam e deviam proteger. Um cordão humano onde emanava a energia da esperança e a voz do que não podiam calar. Depois vieram as flores, e com elas se construiu o logotipo da instituição. Muitas vidas quereriam ainda florescer neste jardim da diversidade. Algum tempo depois, no dia 1 de Junho, dia da Criança, mais uma demonstração digna de nota: o lançamento de 2.000 balões representando os nascimentos já havidos este ano. No início da tarde, as janelas da fachada começaram a ficar adornadas com grupos de balões cor-de-rosa e azuis. Apesar das incertezas sobre o destino daquela casa, é notável a determinação em que tudo continue a funcionar com normalidade como se a saída do conflito fosse um lançamento de balões. Não por festiva inconsciência, mas pela satisfação de um bom desempenho profissional como se não houvesse fim. A meio da tarde as janelas e o gradeamento da entrada principal estavam enfeitados como se pretendia. No interior, utentes e profissionais estavam preparados para cortarem os fios quando o sinal fosse dado. Do lado de fora algumas dezenas de amigos, trabalhadores da MAC e também crianças, seguravam os seus balões. Por volta das oito, após contagem decrescente, lá partiram eles como notícias de uma festa e de uma causa. Foi bonito vê-los subir na brisa morna do entardecer, a voar como sorrisos de esperança, apoiados por uma orquestra de buzinas dos muitos carros que ali passavam. No dia seguinte aquela fachada continuou a ser iluminada pelo sol nascente.
frei matias, op

23 junho 2012

Ainda os escândalos sexuais

Esta semana, nos Estados Unidos, aconteceu algo notável. Pela primeira um alto funcionário da Igreja Católica foi condenado por encobrimento de crimes sexuais. Também o New York Times considera esta decisão histórica e potencialmente exemplar.
Entretanto, cá em Portugal, também houve uma muito pequena notícia sobre um caso de abuso sexual dentro da Igreja Católica. Foi o caso de umas crianças que denunciaram serem vítimas de abusos, mas que tiveram de filmar os acontecimentos para serem levados a sério pelas suas famílias.
Sem comentários.
PJF

18 junho 2012

Caminhos de Paz

“Um novo Tratado sobre o Comércio de Armas será negociado na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, entre 2 a 27 de Julho de 2012. Milhares de mulheres, crianças e civis, vítimas inocentes de armas de pequeno calibre, são feridas e mortas em vários conflitos em muitos países do mundo; comunidades são destruídas, sendo o meio ambiente e os recursos naturais afetados negativamente. A nossa fé ensina-nos que a vida de cada ser humano é sagrada. Também nos ensina a erguer a nossa voz perante o sofrimento.”
A citação do comunicado da OING – Pax Christi Internacional é todo um programa a que não podemos ficar indiferentes. (cf.
http://www.paxchristi.net/international/foci/ATT/main.php)
Em Portugal, a notícia das iniciativas de dois relevantes grupos católicos (cf.
http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=91392) especifica iniciativas concretas em curso; “Na carta endereçada a Paulo Portas, o presidente da Pax Christi - Portugal, D. Januário Torgal Ferreira, e o presidente do Observatório Permanente, Fernando Manuel Roque de Oliveira, recordam que “o comércio internacional de armas convencionais e das suas munições atinge todos os anos direta ou indiretamente milhões de pessoas, em todo o mundo”. Por isso mesmo, solicitam junto do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros “o envolvimento de Portugal na obtenção de um tratado tão forte e abrangente quanto possível”.
Temos uma tendência para considerar que este tipo de iniciativas é mais de natureza política e não tanto religiosa. Talvez porque seja mais fácil acomodarmo-nos no cantinho confortável e conhecido do nicho religioso das capelinhas e sacristias cujos pronunciamentos políticos se resumem a uma invocação semanal na oração dos fiéis pedindo sabedoria e justiça para “eles”, as autoridades políticas, que “sujam as mãos” no terreno político.
A coberto da autonomia das realidades terrestres, da política nomeadamente, temos muitas vezes uma desculpa para invocar que o que é de César seja para César e o que é de Deus para Deus.
E no entanto a realidade não se apresenta com esta linearidade dicotómica. Se queremos um mundo mais justo, mais fraterno, mais próximo do Reino em que o lobo e o cordeiro poderão pastar juntos, então temos mesmo de por mãos à obra. Ora isso implica dar atenção aos empecilhos que impedem o caminho para a humanidade se encontrar finalmente em Paz. A guerra e as armas são exemplos claros e revoltantes!
A violência que nos habita, “defeito de fabrico” que transportamos no ADN humano, (o tal pecado original que nos disseram na infância) pode e deve ser controlada, modificada e transformada em energia positiva, construtora da uma alternativa de vida possível e verdadeiramente humana para todos/as.
Tal como a imagem do fogo que queima num incêndio tudo à volta deixando um rasto de sofrimento e dor, neste caso com o tráfico de armas e as guerras que proliferam, podemos também usar esse mesmo fogo, como energia vital para construir a Paz e a imagem seria então a das línguas de fogo do Pentecostes com os vários dons que se espalham como o sopro do Espírito. Com a sabedoria de quem sabe que, com a ajuda de Deus e do Próximo, se pode transformar em construtor da Paz através da prática de pequenos e grandes gestos de não-violência ativa.
São gestos políticos porque são gestos humanos e a humanidade vive necessariamente em comunidade organizada. São gestos partilhados com quem não se define pela mesma matriz religiosa mas que se encontra nos mesmos objetivos. (cf.
http://www.amnistia-internacional.pt/)
As soluções concretas de programas político-ideológicos para os problemas da humanidade são da nossa responsabilidade como cidadãos, aí a diversidade de opções é legítima e saudável sejam motivadas ou não por valores religiosos pois trata-se da gestão da coisa pública.
Mas quando se trata da sobrevivência da humanidade, muito simplesmente, ecoa em nós a passagem bíblica em que o Senhor pergunta “O que fizeste do teu irmão?” E não podemos ficar indiferentes, pois de duas, uma; ou ajudámos a matá-lo ou a salvá-lo.
Lutar contra a proliferação de armas é ajudar a salvar-nos enquanto humanidade. Agora é o momento de exercermos a nossa pequena mas preciosa pressão; ou usando uma imagem bíblica, de sermos parte do fermento que leveda a massa e a faz crescer para um dia ser alimento de paz.
É uma atitude política e é uma expressão de fé de quem trilha o caminho da esperança de um mundo melhor!
AFF


17-06-2012

10 junho 2012

O DIREITO À ASSISTÊNCIA RELIGIOSA

Pela primeira vez, pois tinha sido sempre extremamente saudável, enfrentei a minha mortalidade. Informei os muitos médicos que encontrava a olhar para mim, com consternação, em volta da cama do hospital, que não queria excesso de tratamentos nem de medicamentos. Declarei que preferia morrer mais cedo, com alguma qualidade, do que ser submetida a esses excessos que me parecem tantas vezes motivados para salvaguarda da consciência dos médicos ou dos familiares do enfermo, mas não para bem-estar da principal interessada, a doente. Sou, pois, a favor do testamento vital, que devolve às pessoas as decisões que só a elas dizem respeito. É o empoderamento do doente que está em causa. Em meio hospitalar é muito fácil os doentes, precisamente pela sua condição, perderem o controle sobre si próprios, que à luz da razão, da emoção e para mim, também da fé, tem que ser nosso. O poder dos profissionais de saúde, o poder da instituição, é arrasador. Face a tantas e tantos profissionais de saúde, apelo a que nunca abusem do seu poder sobre o doente. Senti, contudo, que no hospital onde fui tratada, procura-se esse difícil equilíbrio de poderes. Todo o pessoal faz um esforço para ouvir os doentes e seus familiares, com cordialidade e paciência, o que em situações de fragilidade tem uma importância extraordinária, para o físico e psíquico.
 

Iniciei então os tratamentos tradicionais de quimioterapia e radioterapia, que aguentei bem. Calhou-me na sorte um excelente oncologista, o Dr. Nuno Gil, que mantém uma atitude respeitosa, afectiva e criativa face aos seus doentes. Reconhece ser esta uma doença muito misteriosa, onde não pode haver certezas e que a mente do doente e dos seus cuidadores tem que estar aberta a múltiplas hipóteses. Tive ou continuo a ter, ainda, a ventura de ser tratada por outros excelentes profissionais. Deparei-me com uma nova geração de enfermeiras (e muitos enfermeiros) e outros técnicos, de sofisticadas e difícieis especializações, muitos na casa dos vinte, de um excelente nível profissional, mas sobretudo humano. Verdadeiramente imbuídos do espírito do ‘cuidado’.

E agora entro mais especificamente no tema que o Pe Vítor me pediu para abordar:
 

O direito à assistência religiosa – para mim obviamente indiscutivel – e que eu descreveria até como um direito humano. Como todos os direitos humanos também este caminhou muito devagarinho. Podemo-nos alegrar porque, ao contrário do que acontece em tantas zonas do mundo, no nosso país temos agora em plena implementação a Lei da Liberdade Religiosa, (Lei nº 16/2001 de 22 de Junho), assim como o Decreto-Lei nº 253/2009 de 23 de Setembro, que regulamenta a assistência espiritual e religiosa nos hospitais e outros estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde – onde são respeitados os doentes pertencentes às diferentes crenças religiosas ou a ausência dessa crença.
 

Posso relatar a minha experiência específica mas sei, de conversas havidas com muitas pessoas que já passaram pela hospitalização, que essa assistência pode ser muito gratificante e confortante, desde que quem a preste tenha características pessoais e formação específica para a poder exercer com qualidade - e penso, no que diz respeito às pessoas católicas, ser positivo que tendencialmente esta função deixe de ser remunerada pelo hospital e passe a ser exercida por mulheres e homens, ordenados ou não, de forma voluntária.
 

Quando ainda estava internada chamei o meu amigo Frei Bento Domingues O.P. para me dar, já não os ‘últimos sacramentos’ ou a ‘extrema unção’ como dantes de dizia, dramaticamente, mas antes a benção dos doentes, o que fez com a sua habitual bonomia. Só me falta, portanto, receber um dos sete sacramentos, o da ordenação. Aproveito para repetir, pois já o escrevi e disse muitas vezes, a par com uma imensidão de outros crentes, de várias formações e responsabilidades, considero que não há fundamentos teológicos para excluir as mulheres dos ministérios ordenados e que antes pelo contrário, a mensagem de Jesus é de inclusão e nunca de exclusão.
 

A partir do momento em que se soube da doença fui alvo de uma espantosa onda de atenções, cuidados, orações, visitas, mensagens e telefonemas por parte de familiares e pessoas amigas que me confortaram extraordinariamente. E continuam a fazê-lo. psíquico e físico. Estou-lhes muitíssimo grata. Dou apenas alguns exemplos de índole religioso: A minha prima, Rosário Borges de Castro, trazía-me regularmente a comunhão a casa. A minha amiga Adriana Sarmento, que tem qualidades emocionais que ultrapassam o comum das pessoas, estava sempre disponível para me fazer ‘heiki’, a misteriosa transmissão de energia vital que nos faz sentir bem a nível físico, mental e espiritual. Outra velha amiga, a Lygia Preto, organizou uma cadeia de orações. Quanto a Elizabeth Bulger, freira carmelita há mais de 40 anos, no norte de Inglaterra, agora atingida por uma doença degenerativa, encontramo-nos em comunicação espiritual diária.
 

Esta é para mim a verdadeira ‘comunhão dos santos’ – muito longe dos critérios de se encontrar um ‘milagre’ a todo o custo (nem que envolva um acidente com a fritura de peixe) para ‘provar’ que esta ou aquela pessoa importante na instituição-igreja é ‘beata’ ou até ‘santa’. Santas e beatas são todas aquelas pessoas que no seu dia a dia procuram seguir o apelo de Jesus Cristo - amai-vos uns aos outros como eu vos amei - mesmo que não acreditem nesse mesmo Jesus e que sejam convictamente agnósticas ou ateias. Como repetia amiúde a minha mãe, há milhões de ‘santos escondidos’ que nunca conhecerão os altares nem obvervarão, lá dos céus, cerimónias pomposas sobre si próprios.
 

O meu marido e filhos encararam a minha doença com muito sofrimento mas também muita coragem, e sinto sempre a sua protecção, cuidado e amor. Dado o facto de minha filha e família estarem, providencialmente, a passarem o ano escolar de 2008-9 em Londres, para lá parti para ouvir outra opinião, pois sabia que tinha que ser operada. Uma prima minha, inglesa, religiosa, vinha visitar-me muitas vezes, trazendo-me a comunhão. Um dia, lembrou-se de mandar chamar o prior de St James, a Igreja Católica da zona. Julgando eu que ele me trazia a comunhão, manifestou que também pretendia dar-me a benção dos doentes, pelo que recebi aquele sacramento pela segunda vez, num curto espaço de tempo. Pelo seu olhar surpreso e ligeiramente embaraçado, percebi que pertencia à ala mais tradicionalista e conservadora da igreja quando lhe referi que considerava urgente acabar com a disciplina do celibato obrigatório para o clero secular.
 

Em Londres, recorri aos cuidados do célebre hospital Royal Marsden, que tinha deixado cair a palavra ‘cancer’ do seu nome. Agora que a palavra ‘cancro’ já não significa, necessariamente, o anúncio de morte a breve prazo, mas antes a oportunidade de viver uma fase muito interessante da vida, não se quer incomodar. Vivendo mais uma vez, uma ‘primeira’ experiência, fui operada por uma equipe de excelência e constatei que o anestesista era considerado tão importante como o cirurgião, seguindo a doente no pós-operatório tanto como o colega. Os cinco dias que fiquei no hospital foram extremamente desagradáveis, dado que do meu corpo saía um número elevado de tubos e entravam outras tantas agulhas, entre as quais uma espetada no pescoço. Não podia comer nem virar-me. Administrava a mim própria uma qualquer morfina para combater a dor, puxando por um cordão, que só actuava de cinco em cinco minutos. Um exemplo do sentido prático britânico.

Regressada a Portugal, tive e continuo a ter, altos e baixos. A partir de Maio de 2010, resolvi experimentar a medicina de tradição chinesa, sem abandonar a ocidental. Na pessoa do Dr. Ricardo Furtado encontrei um profissional de alto nível humano e técnico, com uma atitude holística face ao paciente. Muito para além da utilização da acupunctura, a que ela vulgarmente é reduzida, a medicina chinesa trabalha sobretudo com as plantas medicinais, a massagem, a dieta e determinados tipos de exercício. Cada um destes tratamentos, a serem utilizados, são-o de forma especificamente dirigida aquela pessoa com aquela sintomologia, procurando-se sobretudo a causa.
[1] A doente é encarada em toda a sua complexidade, sobretudo a nível emocional e também espiritual. Os efeitos positivos dos tratamentos são muitas vezes surpreendentes.
 

Outro tipo de terapia que tenho experimentado é a chamada Medicina Informacional. Trata-se de um método não invasivo que usa energia eléctrica para fornecer informação acerca do estado do nosso corpo e espírito, procurando restaurar um equilíbrio natural e um bom desempenho.
 

É banal repetir que não sabemos o dia nem a hora, ecoando o Evangelho. Desde que fui diagnosticada, seis pessoas amigas morreram de forma inesperada ou repentina. Outra banalidade é o relativismo de uma situação de doença. Há tantos milhões em situação de grande sofrimento (mulheres no Afeganistão, escravas sexuais em todo o mundo, crianças abusadas em Portugal, entre centenas de outros exemplos) que se torna quase obsceno dar demasiada importância à nossa condição.

Tenho falado com doentes oncológicos, crentes ou não, que consideram quase um privilégio ter sido atingido por esta doença (uma em cada cinco pessoas o são e prevê-se que dentro de pouco tempo a taxa será de uma para três – em Portugal estima-se que adoecem anualmente 40,000 pessoas) porque passamos a ter outra relação com o tempo e o espaço. Passa-se a apreciar de outra forma belezas várias e adquirir novas sabedorias. Um médico amigo, também ele afectado pela doença, de que se tratou, dizia-me com sentido prático: “como não há nada que possamos mudar, mais vale aceitar.” Como dizia o meu radioso primo Pedro Magalhães Ramalho, que conviveu com o seu cancro durante doze anos, “não podemos levar a vida demasiadamente a sério.” Aprofunda-se a fé, a meditação, a disponibilidade. Não é preciso ser crente para se praticar a meditação. É uma caminhada que está a ser objecto de muito interesse, também em Portugal. Afastamo-nos do turbilhão dos nossos pensamentos habituais para “ficar na quietude de corpo e espírito”.
[2]
 

Doente, escolho as leituras com mais cuidado e leio sem parar, um prazer insuperável. Desde o início que resolvi falar abertamente da doença, com naturalidade, em vez de a ocultar ou ignorar. Será também uma estratégia minha para a enfrentar sem medo. Acontece, por vezes, ser questionada acerca da razão porque uso uma bengala. Respondo calmamente que tenho uma doença grave, nomeadamente um cancro. A cara da interlocutora enche-se de espanto, de consternação ou de pânico. Quase sempre se inicia um relato das muitas pessoas que conhece, que tiveram cancro, e que agora há uma infinidade de tempo que estão bem. Eu também tendo a ter essa reacção se me vêem falar de cancro.
 

Vamo-nos habituando, aos poucos, à nossa mortalidade, e como eu nunca desejei morrer de repente, encaro este processo com interrogação. Percebemos a evidência de que não morremos quando queremos mas quando o corpo quer. Está cansado. Quer cessar as suas múltiplas funções que pareciam eternas.
 

Nesta, como em qualquer período da nossa vida, o futuro é um país estrangeiro, jogando com as palavras de um escritor inglês. Estar atenta aos sinais dos tempos em geral e aos que se atravessam no meu caminho, especificamente, é aconselhável. Estar em comunhão com Deus e com o próximo é o bem-estar permanente que procuro.
 

Cheguei agora a uma fase da vida, repleta de boas e más memórias, com uma plêiade de expectativas no horizonte, desfrutando a auto-segurança trazida pela idade. Na certeza que chegou a altura de fazer apenas aquilo de que sou capaz.

[1] Angela Hicks, A Medicina Chinesa,Lisboa, Presença, 1998.
[2] Há centenas de sítios sobre meditação. Um é www.meditacaocrista.com

Ana Vicente

10.06.2012

05 junho 2012

FATIMOLOGRAMA

1. Quem julgava que o último segredo de Fátima já tinha sido revelado enganou-se. Fátima tem sempre mais segredos. Ainda não se sabe onde terá sido encontrada a Ladaínha dos Pastorinhos Beatos de Fátima, Francisco e Jacinta Marto. O autor também ainda não foi revelado. Os especialistas em textos de Fátima descobriram a origem dos fragmentos agora reunidos. D. António Marto já concedeu o Imprimatur ao alinhamento dos fragmentos e a sua disposição em forma de ladainha, para efeitos de recitação e resposta colectiva. Por enquanto, o estilo pode parecer algo rebarbativo, excessivamente barroco, difícil de pronunciar e de atingir a sabedoria das suas alusões que não pecam por excessivamente poéticas. Aprender de cor este monumento literário não será para já, mas a devoção irá vencer todos os obstáculos.
2. Se a ladainha ainda tem um sabor arcaico, o novo “Milagre de Fátima” encontrou na técnica dos hologramas, imagens tridimensionais de luminosidade nervosa, com cheiros ambientais, sem esquecer o da pólvora, abundante na época das aparições, com muita chuva e ventos, recriando a atmosfera agreste da Cova da Iria, com momentos de calor e sol, sem os quais não haveria milagre. Tudo isto é caro – um milhão de euros -, mas o impacto nacional e internacional da aplicação das novas tecnologias ao sobrenatural, não podia ser barato.
Este empreendimento não é feito pelo Santuário. Mas o turismo é um investimento de futuro e Fátima estará sempre em obras até ao fim dos tempos. A modéstia de Nossa Senhora a pedir, apenas, uma capelinha não é digna do céu e do que merece o centro geográfico do país, para se tornar o centro do turismo religioso. Em ambiente de aparições é preciso ter visão empresarial.
Que Nossa Senhora de Fátima abençoe tanto engenho e tenha piedade de tão pouca arte.


Frei Bento Domingues, O.P.



Ladainha



Senhor, tende piedade de nós.


Senhor, tende piedade de nós.


Cristo, tende piedade de nós.


Cristo, tende piedade de nós.


Senhor, tende piedade de nós. Senhor, tende piedade de nós.
Nossa Senhora do Rosário de Fátima, rogai por nós.


Nossa Senhora das Dores, rogai por nós.


Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós.


Virgem dos Pastorinhos, rogai por nós.
Beato Francisco Marto, rogai por nós.


Beata Jacinta Marto, rogai por nós.
Crianças chamadas por Jesus Cristo, rogai por nós.


Crianças chamadas a contemplar a Deus no Céu, rogai por nós.


Pequeninos a quem o Pai revela os mistérios do Reino, rogai por nós.


Pequeninos privilegiados do Pai, rogai por nós.


Louvor perfeito das maravilhas de Deus, rogai por nós.


Imagens do abandono filial, como crianças ao colo da mãe, rogai por nós.


Vítimas de reparação em benefício do Corpo de Cristo, rogai por nós.
Confidentes do Anjo da Paz, rogai por nós.


Custódios, como o Anjo da Pátria, rogai por nós.


Adoradores com o Anjo da Eucaristia, rogai por nós.


Videntes da Mulher revestida com o Sol, rogai por nós.


Videntes da Luz que é Deus, rogai por nós.


Filhos prediletos da Virgem Mãe, rogai por nós.


Ouvidos atentos à solicitude materna da Virgem Maria, rogai por nós.

Advogados da Mensagem da Senhora mais brilhante que o Sol, rogai por nós.


Arautos da palavra da Mãe de Deus, rogai por nós.


Profetas do triunfo do Coração Imaculado de Maria, rogai por nós.


Cumpridores dos desígnios do Altíssimo, rogai por nós.


Fiéis depositários da Mensagem, rogai por nós.


Emissários da Senhora do Rosário, rogai por nós.


Missionários dos pedidos de Maria, rogai por nós.


Portadores dos apelos do Céu, rogai por nós.Zeladores do Vigário de Cristo, rogai por nós.


Confessores da vida heroica na verdade, rogai por nós.


Consoladores de Jesus Cristo, rogai por nós.


Exemplos da caridade cristã, rogai por nós.


Servos dos doentes e dos pobres, rogai por nós.


Reparadores das ofensas dos pecadores, rogai por nós.


Amigos dos homens junto do trono da Virgem Maria, rogai por nós.


Lírios de candura a exalar santidade, rogai por nós.


Pérolas brilhantes a resplandecer beatitude, rogai por nós.


Serafins de amor aos pés do Senhor, rogai por nós.


Oblações a Deus para suportar os sofrimentos em acto de reparação, rogai por nós.


Exemplo admirável na partilha com os pobres, rogai por nós.


Exemplo incansável no sacrifício pela conversão dos pecadores, rogai por nós.


Exemplo de fortaleza nos tempos da adversidade, rogai por nós.
Enamorados de Deus em Jesus, rogai por nós.


Pastorinhos que nos guiais ao Cordeiro, rogai por nós.


Discípulos da escola de Maria, rogai por nós.


Interpeladores da humanidade, rogai por nós.


Frutos da árvore da santidade, rogai por nós.


Dom para a Igreja Universal, rogai por nós.


Sinal divino para o Povo de Deus, rogai por nós.


Testemunhas da graça divina, rogai por nós.


Estímulo à vivência do batismo, rogai por nós.


Experiência da presença amorosa de Deus, rogai por nós.


Eloquentes na intimidade de Deus, rogai por nós.


Intercessores, junto de Deus, pelos pecadores, rogai por nós.


Construtores da Civilização do Amor e da Paz, rogai por nós.


Lâmpadas a alumiar a humanidade, rogai por nós.


Luzes amigas a iluminar as multidões, rogai por nós.


Luzeiros a refulgir no caminho da humanidade, rogai por nós.


Chamas ardentes nas horas sombrias e inquietas, rogai por nós.


Candeias que Deus acendeu, rogai por nós.
Cristo, ouvi-nos.


Cristo, ouvi-nos.


Cristo, atendei-nos.


Cristo, atendei-nos.


Oração conclusiva
Deus de infinita bondade,que amais a inocência e exaltais os humildes,concedei, pela intercessão da Imaculada Mãe do vosso Filho,que, à imitação dos bem-aventurados Francisco e Jacinta,Vos sirvamos na simplicidade de coraçãopara podermos entrar no reino dos Céus.Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho,que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
Ámen.

03 junho 2012

E pescaram garrafas

Estavam na praia iluminada duas centenas de mães. Uma semana antes cada uma delas tinha bebido uma garrafa de água mineral, numa espécie de comunhão invisível que por momentos uniu todos os lares das mais de trezentas crianças. Depois deixaram-na vazia num lugar indicado. Por seu lado cada criança tinha deixado num papelinho uma mensagem dirigida à sua mãe. Só era preciso que naquele domingo estivesse bom tempo para que uma festa cheia de emoção tivesse lugar naquela extensa praia em maré baixa. Assim foi. Depois de ter chovido nos dias anteriores e voltado a chover no dia seguinte, na manhã daquele dia 6 uma luz diáfana envolvia, num aconchego carinhoso, todo o universo visível. Ninguém sabia, nem mães (nem os pais presentes, em segundo plano) nem crianças adivinhavam o que iria acontecer. Pensaram muitas coisas, mas todas demasiado cansativas para um dia que se desejava leve e gracioso.
Num outro mar alguns discípulos de Jesus (João 21, 1-14) estavam cansados e frustrados por terem andado a pescar toda a noite e não terem apanhado nada. De manhã Jesus disse-lhes para insistirem lançando as redes para o outro lado do barco. Dizem-nos que pescaram 153 peixes e crê-se que este era o número de peixes conhecidos em registo. Como dizia um pescador da Zambujeira, o barco vinha abarrotando, o êxito foi mais que muito. Mesmo que raras vezes seja assim, fica a mensagem de Jesus ressuscitado de que há sempre o outro lado do desalento, o outro lado do que é costume, um outro lugar de esperança.
Nesta praia havia um sentimento de animada expectativa. Aqui os pescadores foram desafiados a virem do mar não com as redes cheias de peixe, mas com garrafas mágicas pescadas numa rede de sonhos. Foi isso o que aconteceu. Quando o barco se aproximava saído da neblina distante e crescendo em direcção à praia, todos se perguntavam o que era aquilo e o que viria ali o barco fazer. Uma vez mais ninguém adivinhava. Só quando os pescadores disseram o que naquela manhã tinham pescado, o mistério se revelou. Revelou-se como se revelam os mistérios, fica-se a saber o que se está a passar, havendo sempre uma luz difusa por detrás de um véu de espanto pelo que acontece.
Foi assim que naquela manhã, na zona de Milfontes, convocadas com as suas crianças para um areal ao romper da aurora, as mães do Jardim de Infância Nª Sra da Piedade receberam nas suas garrafas misteriosas a surpresa das mensagens dos seus filhos. E foi assim que as crianças viveram a magia de verem as suas mensagens para as mães numas garrafas vindas do fundo do mar, certamente muito antigas pois já tinham conchas dentro e algas presas ao vidro. Este Jardim de Infância está plantado em Wade-Emir, um vizinho do Vizir da ilha do Pessegueiro (Olá Carlos Tê e Rui Veloso!). Agora diz-se Odemira, uma terra onde a criatividade se expande pela várzea repousante e o rio vai a pé até ao mar.
frei matias, op

01 junho 2012

A morte e o off-shore no paraíso

Sabemos que um dia virá para cada um. Duas faces da mesma moeda; de um lado a vida e do outro a morte. Indissociáveis estes dois lados mas parece que apenas olhamos para uma das faces, a da vida. É cultural, sem dúvida, evitarmos falar naquela face oculta.
No entanto confrontamo-nos permanentemente com ela. Morremos um pouco cada dia que passa e saboreamos a vida de outro modo; crescer ou envelhecer é amadurecer, humanizarmo-nos um pouco mais, e quando estivermos mais próximos de sermos capazes de um amor infinito e desinteressado estaremos prontos para sermos acolhidos pela fonte de todo o Amor que é o nome de Deus.
Há gente que evita tanto a palavra “morreu” que diz sempre eufemisticamente “partiu”. Subentenda-se partiu para o Pai, partiu para a eternidade, partiu desta para melhor, no dizer do povo.
Lembro-me de uma amiga que vivia em Lisboa e foi viver para o Porto, vivendo e trabalhando entre as duas cidades em circulação permanente. Um dia um amigo comum disse-me com um ar consternado; “ela partiu” e eu perguntei ingenuamente “outra vez para o Porto?” ao que ele me respondeu indignado com a minha questão; “Não, morreu!”
Agora cada vez que oiço dizer que alguém partiu, olho bem para a cara de quem mo diz; se está triste ou preocupado sei que significa que alguém morreu, se está de sorriso aberto quer dizer que a pessoa em causa partiu para férias ou coisa assim.
A morte dos outros faz cortes violentos e deixa uma saudade infinita, uma parte de nós morre com essa saudade de um definitivo “nunca mais”, de um “adeus” sem retorno.
Vidas ceifadas antes do que nós consideraríamos o tempo certo. Recentemente sentimos isso de modo particular quando o Bernardo Sassetti morreu e pouco antes quando o Miguel Portas morreu depois de lutar contra um cancro devastador. Nenhum deles tinha “idade para morrer”, entre os quarenta e os cinquenta e picos não é a “idade” adequada nem de acordo com as estatísticas, nem no nosso quadro mental e sensibilidade.
Olhando um pouco o que foi a vida deles, sabemos que deixaram uma marca insubstituível no mundo, independentemente de podermos concordar ou não com algumas das respetivas opções, as duas vidas foram cheias de busca pela beleza e pela justiça, e isso expressou-se em gestos de amor concreto de cuidado pelos outros. Provavelmente estavam prontos para sair fora da finitude do tempo e serem acolhidos numa dimensão misteriosa a que chamamos eternidade.
Recentemente conversei longamente sobre a questão da morte com uma pessoa que tem mais de 90 anos. Tem consciência de que estatisticamente já ultrapassou o tempo de vida previsto e cada dia é uma vitória sobre o fatal momento de que tem um medo terrível. Direi mesmo um medo infantil. Mas medo de quê afinal? Confessou-me que tem medo do Juízo Final. Terá sido suficientemente boa pessoa?
Realmente é um dado a ter em conta, e é uma questão pertinente. A nossa experiência humana diz-nos que ninguém gosta de ir a tribunal ou de fazer exames, mesmo se ultrapassa esses momentos com sucesso. Sendo neste caso o juiz divino e não humano, confio que terá em conta muito mais vertentes do que as simples leis humanas ou eclesiais que teremos certamente transgredido.
Com uma vida longa cheia de missas, terços, primeiras sextas-feiras e de primeiros-sábados, entre outras devoções, já deve ter acumulado a quantidade de indulgências no sistema “bancário” instituído pela piedade do catolicismo tradicional a que Lutero reagiu com vigor e bastante razão.
Espanta-me pois que o Papa Bento XVI, à imagem do seu antecessor, continue a distribuir indulgências como se nada fosse. Ir a Madrid no ano passado às jornadas mundiais da juventude ou ir agora ao encontro mundial de famílias, desde que incluam uma confissão, missa e comunhão dão direito a mais “créditos” na hora da morte, depositados numa conta “off-shore” com sede no paraíso!
Será uma preocupação pastoral com as pessoas idosas que têm medo da morte? Suspeito que não seja bem isso mas apenas a reciclagem de tradicionalismos devocionais incluídos no chamado programa de Nova Evangelização.
Em vez destes investimentos em indulgências, é capaz de ser mais fácil quando nos confrontamos com a nossa mortalidade procurarmos rever as obras de misericórdia e verificar se fizemos o investimento correto em “ações” de amor ao próximo.
E se a fé nos ensina que o Amor de Deus é infinito devemos aprender a confiar em Deus sempre, incluindo o momento fatal da “hora da nossa morte. Amém!”
Ora, como ainda estamos vivos temos todo o tempo necessário para aprender a amar o próximo, do primeiro ao último dia da nossa vida, seja ela breve ou longa.
A dificuldade não é pois a morte, o difícil é viver!
AFF
27-05-2012