10 junho 2012

O DIREITO À ASSISTÊNCIA RELIGIOSA

Pela primeira vez, pois tinha sido sempre extremamente saudável, enfrentei a minha mortalidade. Informei os muitos médicos que encontrava a olhar para mim, com consternação, em volta da cama do hospital, que não queria excesso de tratamentos nem de medicamentos. Declarei que preferia morrer mais cedo, com alguma qualidade, do que ser submetida a esses excessos que me parecem tantas vezes motivados para salvaguarda da consciência dos médicos ou dos familiares do enfermo, mas não para bem-estar da principal interessada, a doente. Sou, pois, a favor do testamento vital, que devolve às pessoas as decisões que só a elas dizem respeito. É o empoderamento do doente que está em causa. Em meio hospitalar é muito fácil os doentes, precisamente pela sua condição, perderem o controle sobre si próprios, que à luz da razão, da emoção e para mim, também da fé, tem que ser nosso. O poder dos profissionais de saúde, o poder da instituição, é arrasador. Face a tantas e tantos profissionais de saúde, apelo a que nunca abusem do seu poder sobre o doente. Senti, contudo, que no hospital onde fui tratada, procura-se esse difícil equilíbrio de poderes. Todo o pessoal faz um esforço para ouvir os doentes e seus familiares, com cordialidade e paciência, o que em situações de fragilidade tem uma importância extraordinária, para o físico e psíquico.
 

Iniciei então os tratamentos tradicionais de quimioterapia e radioterapia, que aguentei bem. Calhou-me na sorte um excelente oncologista, o Dr. Nuno Gil, que mantém uma atitude respeitosa, afectiva e criativa face aos seus doentes. Reconhece ser esta uma doença muito misteriosa, onde não pode haver certezas e que a mente do doente e dos seus cuidadores tem que estar aberta a múltiplas hipóteses. Tive ou continuo a ter, ainda, a ventura de ser tratada por outros excelentes profissionais. Deparei-me com uma nova geração de enfermeiras (e muitos enfermeiros) e outros técnicos, de sofisticadas e difícieis especializações, muitos na casa dos vinte, de um excelente nível profissional, mas sobretudo humano. Verdadeiramente imbuídos do espírito do ‘cuidado’.

E agora entro mais especificamente no tema que o Pe Vítor me pediu para abordar:
 

O direito à assistência religiosa – para mim obviamente indiscutivel – e que eu descreveria até como um direito humano. Como todos os direitos humanos também este caminhou muito devagarinho. Podemo-nos alegrar porque, ao contrário do que acontece em tantas zonas do mundo, no nosso país temos agora em plena implementação a Lei da Liberdade Religiosa, (Lei nº 16/2001 de 22 de Junho), assim como o Decreto-Lei nº 253/2009 de 23 de Setembro, que regulamenta a assistência espiritual e religiosa nos hospitais e outros estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde – onde são respeitados os doentes pertencentes às diferentes crenças religiosas ou a ausência dessa crença.
 

Posso relatar a minha experiência específica mas sei, de conversas havidas com muitas pessoas que já passaram pela hospitalização, que essa assistência pode ser muito gratificante e confortante, desde que quem a preste tenha características pessoais e formação específica para a poder exercer com qualidade - e penso, no que diz respeito às pessoas católicas, ser positivo que tendencialmente esta função deixe de ser remunerada pelo hospital e passe a ser exercida por mulheres e homens, ordenados ou não, de forma voluntária.
 

Quando ainda estava internada chamei o meu amigo Frei Bento Domingues O.P. para me dar, já não os ‘últimos sacramentos’ ou a ‘extrema unção’ como dantes de dizia, dramaticamente, mas antes a benção dos doentes, o que fez com a sua habitual bonomia. Só me falta, portanto, receber um dos sete sacramentos, o da ordenação. Aproveito para repetir, pois já o escrevi e disse muitas vezes, a par com uma imensidão de outros crentes, de várias formações e responsabilidades, considero que não há fundamentos teológicos para excluir as mulheres dos ministérios ordenados e que antes pelo contrário, a mensagem de Jesus é de inclusão e nunca de exclusão.
 

A partir do momento em que se soube da doença fui alvo de uma espantosa onda de atenções, cuidados, orações, visitas, mensagens e telefonemas por parte de familiares e pessoas amigas que me confortaram extraordinariamente. E continuam a fazê-lo. psíquico e físico. Estou-lhes muitíssimo grata. Dou apenas alguns exemplos de índole religioso: A minha prima, Rosário Borges de Castro, trazía-me regularmente a comunhão a casa. A minha amiga Adriana Sarmento, que tem qualidades emocionais que ultrapassam o comum das pessoas, estava sempre disponível para me fazer ‘heiki’, a misteriosa transmissão de energia vital que nos faz sentir bem a nível físico, mental e espiritual. Outra velha amiga, a Lygia Preto, organizou uma cadeia de orações. Quanto a Elizabeth Bulger, freira carmelita há mais de 40 anos, no norte de Inglaterra, agora atingida por uma doença degenerativa, encontramo-nos em comunicação espiritual diária.
 

Esta é para mim a verdadeira ‘comunhão dos santos’ – muito longe dos critérios de se encontrar um ‘milagre’ a todo o custo (nem que envolva um acidente com a fritura de peixe) para ‘provar’ que esta ou aquela pessoa importante na instituição-igreja é ‘beata’ ou até ‘santa’. Santas e beatas são todas aquelas pessoas que no seu dia a dia procuram seguir o apelo de Jesus Cristo - amai-vos uns aos outros como eu vos amei - mesmo que não acreditem nesse mesmo Jesus e que sejam convictamente agnósticas ou ateias. Como repetia amiúde a minha mãe, há milhões de ‘santos escondidos’ que nunca conhecerão os altares nem obvervarão, lá dos céus, cerimónias pomposas sobre si próprios.
 

O meu marido e filhos encararam a minha doença com muito sofrimento mas também muita coragem, e sinto sempre a sua protecção, cuidado e amor. Dado o facto de minha filha e família estarem, providencialmente, a passarem o ano escolar de 2008-9 em Londres, para lá parti para ouvir outra opinião, pois sabia que tinha que ser operada. Uma prima minha, inglesa, religiosa, vinha visitar-me muitas vezes, trazendo-me a comunhão. Um dia, lembrou-se de mandar chamar o prior de St James, a Igreja Católica da zona. Julgando eu que ele me trazia a comunhão, manifestou que também pretendia dar-me a benção dos doentes, pelo que recebi aquele sacramento pela segunda vez, num curto espaço de tempo. Pelo seu olhar surpreso e ligeiramente embaraçado, percebi que pertencia à ala mais tradicionalista e conservadora da igreja quando lhe referi que considerava urgente acabar com a disciplina do celibato obrigatório para o clero secular.
 

Em Londres, recorri aos cuidados do célebre hospital Royal Marsden, que tinha deixado cair a palavra ‘cancer’ do seu nome. Agora que a palavra ‘cancro’ já não significa, necessariamente, o anúncio de morte a breve prazo, mas antes a oportunidade de viver uma fase muito interessante da vida, não se quer incomodar. Vivendo mais uma vez, uma ‘primeira’ experiência, fui operada por uma equipe de excelência e constatei que o anestesista era considerado tão importante como o cirurgião, seguindo a doente no pós-operatório tanto como o colega. Os cinco dias que fiquei no hospital foram extremamente desagradáveis, dado que do meu corpo saía um número elevado de tubos e entravam outras tantas agulhas, entre as quais uma espetada no pescoço. Não podia comer nem virar-me. Administrava a mim própria uma qualquer morfina para combater a dor, puxando por um cordão, que só actuava de cinco em cinco minutos. Um exemplo do sentido prático britânico.

Regressada a Portugal, tive e continuo a ter, altos e baixos. A partir de Maio de 2010, resolvi experimentar a medicina de tradição chinesa, sem abandonar a ocidental. Na pessoa do Dr. Ricardo Furtado encontrei um profissional de alto nível humano e técnico, com uma atitude holística face ao paciente. Muito para além da utilização da acupunctura, a que ela vulgarmente é reduzida, a medicina chinesa trabalha sobretudo com as plantas medicinais, a massagem, a dieta e determinados tipos de exercício. Cada um destes tratamentos, a serem utilizados, são-o de forma especificamente dirigida aquela pessoa com aquela sintomologia, procurando-se sobretudo a causa.
[1] A doente é encarada em toda a sua complexidade, sobretudo a nível emocional e também espiritual. Os efeitos positivos dos tratamentos são muitas vezes surpreendentes.
 

Outro tipo de terapia que tenho experimentado é a chamada Medicina Informacional. Trata-se de um método não invasivo que usa energia eléctrica para fornecer informação acerca do estado do nosso corpo e espírito, procurando restaurar um equilíbrio natural e um bom desempenho.
 

É banal repetir que não sabemos o dia nem a hora, ecoando o Evangelho. Desde que fui diagnosticada, seis pessoas amigas morreram de forma inesperada ou repentina. Outra banalidade é o relativismo de uma situação de doença. Há tantos milhões em situação de grande sofrimento (mulheres no Afeganistão, escravas sexuais em todo o mundo, crianças abusadas em Portugal, entre centenas de outros exemplos) que se torna quase obsceno dar demasiada importância à nossa condição.

Tenho falado com doentes oncológicos, crentes ou não, que consideram quase um privilégio ter sido atingido por esta doença (uma em cada cinco pessoas o são e prevê-se que dentro de pouco tempo a taxa será de uma para três – em Portugal estima-se que adoecem anualmente 40,000 pessoas) porque passamos a ter outra relação com o tempo e o espaço. Passa-se a apreciar de outra forma belezas várias e adquirir novas sabedorias. Um médico amigo, também ele afectado pela doença, de que se tratou, dizia-me com sentido prático: “como não há nada que possamos mudar, mais vale aceitar.” Como dizia o meu radioso primo Pedro Magalhães Ramalho, que conviveu com o seu cancro durante doze anos, “não podemos levar a vida demasiadamente a sério.” Aprofunda-se a fé, a meditação, a disponibilidade. Não é preciso ser crente para se praticar a meditação. É uma caminhada que está a ser objecto de muito interesse, também em Portugal. Afastamo-nos do turbilhão dos nossos pensamentos habituais para “ficar na quietude de corpo e espírito”.
[2]
 

Doente, escolho as leituras com mais cuidado e leio sem parar, um prazer insuperável. Desde o início que resolvi falar abertamente da doença, com naturalidade, em vez de a ocultar ou ignorar. Será também uma estratégia minha para a enfrentar sem medo. Acontece, por vezes, ser questionada acerca da razão porque uso uma bengala. Respondo calmamente que tenho uma doença grave, nomeadamente um cancro. A cara da interlocutora enche-se de espanto, de consternação ou de pânico. Quase sempre se inicia um relato das muitas pessoas que conhece, que tiveram cancro, e que agora há uma infinidade de tempo que estão bem. Eu também tendo a ter essa reacção se me vêem falar de cancro.
 

Vamo-nos habituando, aos poucos, à nossa mortalidade, e como eu nunca desejei morrer de repente, encaro este processo com interrogação. Percebemos a evidência de que não morremos quando queremos mas quando o corpo quer. Está cansado. Quer cessar as suas múltiplas funções que pareciam eternas.
 

Nesta, como em qualquer período da nossa vida, o futuro é um país estrangeiro, jogando com as palavras de um escritor inglês. Estar atenta aos sinais dos tempos em geral e aos que se atravessam no meu caminho, especificamente, é aconselhável. Estar em comunhão com Deus e com o próximo é o bem-estar permanente que procuro.
 

Cheguei agora a uma fase da vida, repleta de boas e más memórias, com uma plêiade de expectativas no horizonte, desfrutando a auto-segurança trazida pela idade. Na certeza que chegou a altura de fazer apenas aquilo de que sou capaz.

[1] Angela Hicks, A Medicina Chinesa,Lisboa, Presença, 1998.
[2] Há centenas de sítios sobre meditação. Um é www.meditacaocrista.com

Ana Vicente

10.06.2012

2 comentários:

  1. Muchas gracias por publicar este hermoso testimonio sobre el derecho a decidir frente a cuestiones tan profundamente humanas y humanizantes como lo son las relativas a la vida y la muerte. Compartimos plenamente la actitud que frente a una persona que esta viviendo una de esas experiencias existenciales fundamentales, el respeto es lo primero que se impone, respeto que incluye afirmar y apoyar positivamente las decisiones y los deseos de esa persona. Necesitamos unas y otros de las y los demas. La disponibilidad amorosa y atenta de una o dos personas ya crean comunidad, que es lo que necesitamos para ser imagen del Dios triniario que profesamos.

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  2. Cara Ana Vicente,
    Obrigada pelo testemunho de coragem, serenidade, fé. Escrever assim é uma forma requintada de evangelização. É também um modo de informar, esclarecer, de que muita gente pode beneficiar.Além disso, para mim este texto transporta um consolo especial: a referência à maneira como tem prececionado os cuidados de saúde e, especial , os cuidados de enfermagem. Quem sabe se alguma das enfermeira não foi minha aluna?! Ou seja, é muito bom saber que se tem sentido bem cuidada. Fico feliz por isso.
    Um beijo
    Lisete Fradique

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