21 julho 2012

Se não comungas, não lês


De atitude decidida, caminhava com passos seguros em direcção ao altar. Inclinou-se, dirigiu-se para o ambão e passou o olhar pelas duas páginas do livro para se assegurar onde começava a segunda leitura. Mas a primeira palavra que iria pronunciar ficou-lhe suspensa na abóbada do céu-da-boca. A voz do padre sobrepôs-se: Francisca, tu não lês porque não comungas. Ela abriu um pouco mais os olhos grandes que Deus lhe ofereceu e sorriu com uma certa doçura na direcção da assembleia. Saiu da estante, fez novamente inclinação diante do altar e do celebrante e regressou ao seu lugar com a mesma passada firme e sem qualquer sombra de perturbação. Talvez um leve sinal de quem se interroga interiormente: mas o que é isto? Não sei o que pensaram as outras pessoas, se isso é normal acontecer, se já dão um desconto às atitudes do senhor abade, ou se ficaram a pensar no que se passará com aquela rapariga. Eu não pensei nela, estive toda a missa atento a ver se a outra leitora iria comungar. Foi. Por isso pus-me a pensar nas causas de tal proibição e vieram-me à mente as proibições que actualmente andam em voga na Igreja. Era isso. Depois da missa alguém me explicou a situação familiar da jovem que não leu. Casou pela Igreja com um não crente. Ela crescera num contexto eclesial católico, ele distante de tudo isso. Mas aceitou muito bem o casamento pela Igreja, o casamento é que não teve um desenvolvimento feliz. Entretanto ela tem agora um companheiro de vida a quem aconteceu qualquer coisa de semelhante. Não tendo possibilidade de que este seu amor seja abençoado pela Igreja, vivem placidamente na graça de Deus e dos amigos. Deve ser por isto que ela não pode comungar, pois já ouvi muitas histórias semelhantes. Não percebi se isso a preocupa, espero que não. Trata-se de uma espécie de lei da Igreja que deixa muita gente perplexa, tipo uma rua com o sinal de trânsito que indica: sem saída. A rua não tem continuação, mas pode-se lá entrar. O mesmo acontece com algumas pessoas na missa: podem entrar, participar, sabendo porém que não têm saída para os lados do altar. Esta jovem não pôde ler porque não vai à comunhão, mas não vai à comunhão porque a proíbem de ir. Ou seja, proíbem-na de fazer uma coisa, por não fazer outra que também lhe é proibida. Extraordinário! Que dirá o JP de tudo isto quando crescer mais um pouco? Baptizado aos seis anos, a meio da cerimónia levantou os dois dedos polegares virado para a assembleia e disse com segurança: está a ser fixe! Não sei o que terá querido dizer com isto, mas a verdade é que estava a ser feliz com o baptismo e, para a sua idade, já tinha suficiente consciência do que estava a fazer. Agora com doze anos fez a comunhão solene e parece continuar convencido de que é fixe. Que virá um dia a pensar o JP destas leis tão absurdas que em vez de incluírem excluem, em oposição ao que Jesus disse e fez? E não se pode evocar a autoridade da Igreja porque o ridículo e a parvoíce não têm qualquer autoridade. Nem Igreja. Diante disso só se pode dizer: valha-nos Deus! Estes dois acontecimentos passaram-se bastante longe um do outro, mas por casualidade estive relativamente perto de ambos. No primeiro caso fiquei perplexo porque fui completamente surpreendido. No segundo identifico-me bastante com o avô do JP: à cautela fica-se na ponta do banco para basar quando a fartação já é muita. Confesso que já o fiz. Quando saía reparei que o Jesus da tela da Ascensão mantinha o seu semblante glorioso.
frei matias, op  

1 comentário:

  1. É uma vergonha que a Igreja insista teimosamente com regras que «não lembram ao diabo». Espero estar ainda vivo quando forem definitivamente abolidas.
    Continuar a protestar é simultaneamente um direito e um dever.
    Um bem-haja.

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