1. Terão sido as “modernices” de um livro que provocaram conversas, ora bravas ora jocosas, com um desfecho pouco natalício: “esse Joseph Ratzinger nem vestido de cor-de-rosa será bem recebido no presépio” deste ano.
Convém esclarecer que este Joseph Ratzinger nasceu em 1927, na Alemanha, ensinou teologia em prestigiosas universidades, o Cardeal Frings, arcebispo de Colónia, escolheu-o para conselheiro e foi designado como perito no Concílio Vaticano II. Não tendo ele nenhuma simpatia pela teologia romana, colaborou com gosto na sua despromoção. Em 1977, Paulo VI nomeou-o arcebispo de Munique e em 1981, João Paulo II designou-o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. A 19 de Abril de 2005, foi eleito Papa e adoptou o nome de Bento XVI.
Sucedeu a João Paulo II que nunca revelou “tentações progressistas”, mas teve alguns gestos que ficaram como referências cristãs para o futuro: multiplicou os pedidos de perdão, opôs-se frontalmente à política belicista de Bush e realizou o belo e inesperado encontro inter-religioso de Assis. Durante o seu pontificado, além das muitas viagens, como peregrino e pastor, publicou longos documentos oficiais que continuam a descansar nas bibliotecas religiosas.
O itinerário e o estilo de Joseph Ratzinger são diferentes. Durante o Vaticano II, não era um desconhecido, não esteve inativo, mas também não era das estrelas mais brilhantes do céu teológico. Tornou-se pouco simpático na Europa, na América Latina, na Ásia e em África, como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Assustado com os rumos da teologia pós-conciliar, perdeu o gosto pela liberdade de investigação e expressão dos autores mais ousados. No conhecido estilo alemão, quem tem autoridade, exerce-a. Ficou-se a saber muito rapidamente quem mandava e qual era a doutrina segura.
2. Eleito Papa, serenou o ritmo de documentos pontifícios. Preferiu retomar o seu curso de obras teológicas, da sua inteira responsabilidade, discutíveis, portanto. Quem gostasse, gostava; quem não gostasse, poderia avaliá-las segundo os critérios habituais da crítica livre. Publicou uma trilogia cristológica. Recebeu elogios, reparos e rejeições. Nada de mais saudável.
Os editores sabiam, no entanto, que este autor não é papa dia sim, dia não. Toda a sua produção teológica, de qualquer das suas fases, seria sempre apresentada e recebida como escrita do Papa. Este facto daria a tudo o que escreveu, desde sempre, um valor acrescentado de que mais nenhum autor pode gozar: obra de Joseph Ratzinger é de Bento XVI.
A trilogia cristológica sobre Jesus de Nazaré chegou ao fim, a falar dos começos: o 1º volume foi sobre a Vida de Jesus, desde o baptismo até à transfiguração; o 2º, desde a entrada em Jerusalém até à ressurreição e o 3º, que acaba de ser editado em nove idiomas e com um milhão de exemplares, é dedicado à Infância de Jesus. Ninguém pode ser classificado como não católico por não ter as opiniões exegéticas, históricas e cristológicas de Bento XVI.
Enquanto o debate sobre o “Jesus da história e o Cristo da fé” se ocupar de questões acerca das quais o comum dos fiéis não dispõe de instrumentos para se pronunciar, com conhecimento adequado, o debate - se debate existir - ficará sempre entre especialistas. Embora com a ambiguidade editorial apontada, nada de grave poderá acontecer.
3. Os grandes meios de comunicação precisam do insólito, não de uma licenciatura, para se ocuparem de religião. Com todas as cidades iluminadas, com a publicidade desencadeada em tudo quanto é sítio, poder-se-ia supor que os natais são todos iguais. De repente, tocam os sinos a rebate: com a autoria de Joseph Ratzinger e Bento XVI, o livro sobre a Infância de Jesus, tinha expulso o burro e a vaca do presépio, deixando Jesus ao frio. A preocupação com a limpeza do presépio criou uma questão ecológica e teológica: a vaca e o burro, apesar de séculos e séculos de ocupação, tinham perdido o direito à casa, à personalidade jurídica e deixavam de figurar na recriação do mundo, com o mais belo nome de Jesus, Emmanuel, Deus connosco.
Há limites para cortar nas gorduras do Presépio. Por este caminho, ainda vão despedir os pastores, cortar os presentes dos Reis Magos e racionar as horas de iluminação do presépio. Perigo maior: teremos a família da crise, pai, mãe e um filho, cortando as narrativas sobre os “irmãos e irmãs” de Jesus.
Afinal, tanto alarido para nada. Joseph Ratzinger/ Bento XVI diz explicitamente que nenhuma representação do presépio prescindirá do boi e do jumento. Não acredito que venha a haver um desmentido oficial da notícia infundada, nem um pedido de desculpas à vaca e ao burro.
Não sejamos demasiado severos. Neste natal, não vinha muito a propósito a repetida conversa sobre os exageros consumistas; os subsídios foram retidos na fonte e como tinha de haver despedimentos no presépio, os animais foram os primeiros. Veremos o que acontece aos Reis Magos no próximo ano, já que o galo só serve para a missa.
S. Marcos começou o seu Evangelho pela vida adulta de Jesus. Nada contra, mas as crianças também têm direitos. É bom que se saiba que Jesus não nasceu adulto. Só peço que não façam dogmas dos frutos da imaginação da fé.
Frei Bento Domingues, o.p.
in Público 9.12.2012
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