Chove suavemente. Sendo a chuva assim, lá vão com as ovelhas dois amigos pastores, cada um com o seu rebanho. Um bebia muito desde muito novo e o médico disse-lhe um dia que “ou beber ou viver”. Ele contrapôs que se não bebesse morria mais depressa, mas na companhia das ovelhas juntou os vês com os bês e conseguiu um nível alcoólico razoável. O outro bebeu tudo o que tinha a beber de modo concentrado na rápida juventude. Depois, crente de que não chegaria aos 50 anos porque o mundo iria acabar antes, passou a beber água e pouco mais. Lá vão eles agora debaixo de uma chuva miudinha, cada um para seu lado. Lembrei-me deles por causa dos pastores do presépio, muito falados nesta época e com uma grande visibilidade no cenário do nascimento de Jesus. A luz resplandecente de um céu rasgado para os anjos descerem à terra deixa os pastores assombrados, porém a sua presença como primeiras testemunhas da salvação, parecendo tão romântica está carregada de ironia. O que geralmente se diz é que os pastores eram um dos grupos mais desconsiderados e condenados naquele povo portador da salvação para toda a gente. A razão principal seria o facto de levarem um tipo de vida afastado do convívio social e, portanto, distante das obrigações religiosas e do cumprimento da Lei. Para além do cenário que envolve os pastores do presépio e do seu significado, cabe perguntar: de quem seriam as ovelhas que apascentavam? Deles não podiam ser. Os pobres tinham poucas ovelhas e guardavam-nas junto da casa, os grandes rebanhos que ficavam nos campos eram propriedade dos grandes senhores da terra. E quem seriam esses senhores de grandes rebanhos? Eram os senhores de tudo: da economia, das finanças, da religião, da teologia, das leis, até mesmo da imagem de Deus. O Templo era o centro religioso e político para onde tudo isto confluía e a partir do qual tudo era determinado. As ovelhas eram uma parte da questão mas não desprezível. Todos os anos pela Páscoa eram sacrificados milhares de cordeiros vindos dos rebanhos a preços que nem todos podiam pagar. Os que não podiam pagar ofereciam a Deus um par de rolas ou pombas, envergonhados e cheios de temor. Depois as peles dos cordeiros eram objecto de manufacturação que trazia grandes lucros, como por exemplo os odres que rebentavam com o vinho novo quando já eram velhos. E havia a lã, o leite, os próprios chifres dos carneiros. Onde está a ironia? Um dia falei aqui de uma jovem que não podia ler a leitura na missa porque não comungava. E que não comungava porque não a deixavam, por motivos ridículos. Neste caso passa-se algo semelhante: os pastores eram condenados pelos senhores do Templo e os seus sócios da Lei, por não cumprirem nem viverem o que estava estabelecido. Mas não cumpriam essas coisas porque eram pastores e tinham que andar nos campos a cuidar dos rebanhos dos senhores do Templo. Trabalhavam para aqueles que os condenavam. Era esse Templo que Jesus queria destruir e ainda quer, eternamente. A imagem dos pastores no presépio tem, por isso, uma grande densidade. Eles são o riso de Deus diante daqueles que se apresentam como deuses para o povo. São eles que anunciam a salvação àqueles que em vez de terem Deus como Senhor, são subtilmente os senhores de Deus. Mas o último a rir é sempre Deus, e os pastores são os portadores da alegria dos céus diante daqueles que proibiam ou tornavam impossível a alegria na terra. Penso neles ao ver o Armindo e o Laurindo, e o contrário também. Lá vão os dois agora debaixo de uma chuva miudinha, um contente porque o mundo ainda não acabou e pôde chegar aos 50 anos, o outro porque pode beber um dia de cada vez e viver todos os dias. Não vão muitas vezes à missa por razões de algum modo razoáveis, mas sei que rezam e não rezam orações egoístas. Creio que se numa noite de lua cheia começassem a gritar que o céu se tinha rasgado nas suas cabeças e tinham visto anjos a voar, um seria levado ao hospital para desintoxicação alcoólica e o outro para a esquadra por alucinações acerca do fim do mundo. Mas não vai acontecer porque o Natal, na sua mensagem de paz, esclarece tudo isso com a mesma serenidade da chuva miudinha caindo nos abrigos destes dois amigos.
Frei Matias, O.P.
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