20 janeiro 2013

ANO DA FÉ. UM DECRETO, PARA QUÊ? (2)

1. Em 1953, numa curta viagem de camioneta, sentou-se, ao meu lado, um padre de outra congregação religiosa. Sobre as características e as imagens de marca das invocadas na conversa, adiantou: “em humildade ninguém nos supera”. Não estava a fazer humor. Fiquei tão alérgico ao elogio da humildade como às disputas entre arrogantes. Nada, no entanto, mais inspirador do que uma pessoa humilde.
Esteve, em Portugal, Frei Bruno Cadoré. Nasceu em 1954, formou-se em medicina, entrou nos Dominicanos, foi director do Centro de Ética Médica do Instituto Católico de Lille e, depois de ter sido Provincial em França, foi eleito, em 2010, Mestre Geral da Ordem.
Não interessa explicitar aqui o que foi o seu brilhante e inspirador percurso profissional e dominicano, pois ele próprio nunca se lhe refere. É como se não tivesse existido.
Veio para visitar a família dominicana portuguesa, na diversidade dos seus ramos e revelou um estilo que não é muito habitual nos eclesiásticos.  
Na primeira reunião com a comunidade a que pertenço, procurou ouvir-nos acerca da situação da Igreja em Portugal, da Diocese em que estamos inseridos, do papel das ordens e congregações religiosas, masculinas e femininas, segundo o carisma de cada uma. Passou, depois, ao encontro fraterno, com cada um, individualmente, não para falar, mas para escutar. Durante meia hora ouviu-me, sem dizer uma palavra, despediu-se, sem me fazer qualquer recomendação. É evidente que debateu, com os órgãos das instituições da Província Dominicana Portuguesa, as questões com que ela está confrontada. Fez, também, a visita às monjas dominicanas, fundadas, no século XIII, por S. Domingos. Ainda antes do ramo masculino, eram elas a Santa Pregação. Encontrou-se também com as outras religiosas e com os leigos dominicanos.
Se Cristo veio, não para condenar, mas para manifestar o amor de Deus pelo mundo, como se poderá chamar evangelização, nova ou antiga, às obras, palavras e atitudes que não sejam escuta humilde dessa amizade divina?
O método de Frei Bruno - muito ouvir antes de falar - foi praticado e exposto na Paróquia de S. Domingos de Benfica, ao apresentar a tradução da obra clássica sobre A Pregação, de Humberto de Romans, e as Actas do Colóquio sobre a Restauração da Província Dominicana em Portugal.
2. É antiga a convicção de que o silêncio é o pai dos Pregadores e que a graça da pregação é secundada pelo estudo e pela contemplação. A fórmula dominicana foi cunhada muito cedo e já fazia parte do ensino de Tomás de Aquino: contemplar e dar testemunho da realidade contemplada. Era, desde a antiguidade, conhecida e exaltada a superioridade da vida contemplativa em relação à vida activa. Em benefício da sua própria causa, o santo doutor observou: a vida activa, que nasce da abundância da contemplação, vale mais do que a pura contemplação. Iluminar é melhor do que ser, apenas, luz. Foi este, aliás, o estilo da vida escolhida por Jesus.
A resposta é brilhante. Na prática, continuava a rivalidade entre o tempo consagrado ao principal e o tempo gasto com realidades temporais, inferiores. O tempo gasto na actividade esvaziava os ganhos da contemplação. A oração de S. Domingos, testemunhada pelos seus contemporâneos, estava sempre povoada pelas alegrias e tristezas do quotidiano. O trabalho apostólico não o dispersava nem o esvaziava.
Na sua conferência, Frei Bruno Cadoré saltou fora do esquema de falsas oposições. A fonte e o alimento da contemplação não se restringem ao quadro conventual ou às celebrações litúrgicas. A Igreja - e nela o dominicano -, não se pode apresentar ao povo cristão, aos membros das outras religiões, aos agnósticos e aos ateus como quem está na posse da verdade, dos bons princípios, dos bons caminhos e das boas soluções. Essa arrogância impede o caminho humilde da escuta, do estudo e do diálogo com todos os mundos em que se encontra, ou aos quais se dirige: a bondade e a verdade, servidas ou traídas, estão disseminadas em todos os estilos de vida e em todas as dimensões da existência. A Igreja, sem crescer e amadurecer nesse convívio, não pode partilhar nada, está fora de jogo. Esquece que Deus se insinua, de muitos modos, na vida das pessoas, expressa na diversidade de problemáticas e linguagens das sociedades, nas suas diferentes épocas e culturas. Os processos não são lineares e nunca nada está garantido.  
3. Em vários países, sob o ponto de vista cristão, o século XX foi prodigiosamente fecundo, apesar de duas guerras mundiais. Basta pensar nos movimentos bíblico, litúrgico, missionário, ecuménico, social, na redescoberta da teologia patrística e medieval, nos novos modelos e paradigmas de teologia - das realidades terrestres, do trabalho, da matéria, da evolução, da conjugalidade -, assim como nas formas de evangelização da pura presença, nos meios mais afastados das instituições da Igreja. Foi uma história exaltante de muitas esperanças e desilusões continuadas, pela repressão que se abateu sobre vários destes movimentos.
O Vaticano II, iniciativa de um papa que tinha os olhos postos no mundo em transformação e no aggiornamento da Igreja, recuperou e alargou a geografia da esperança.
Como e porquê se perdeu este impulso?

Frei Bento Domingues. o.p.
in Público

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