1. A imagem “presépio aberto” começa por ser enigmática, vai-se tornando sugestiva e acaba por ser mais pertinente e fecunda do que outra muito publicitada, “pátio dos gentios”. Tem especiais virtualidades para sugerir o espírito e o alcance deste domingo da Epifania.
Foi colhida por Agustina Bessa-Luís numa carta do grande romancista judeu, Franz Kafka (1883-1924), dirigida à sua irmã, a propósito das dificuldades que ela sentia com um filho de 10 anos.
Agustina recriou essa imagem numa conferência, no Goethe Institut do Porto, saltando fora das habituais preferências temáticas sobre a obra do grande escritor de Praga, “apresentando-o como um investigador prodigioso dos problemas da educação.
Agustina destaca algo que poderia passar por uma banalidade sociológica: Kafka faz notar à sua irmã a diferença entre o equilíbrio familiar de pobres e de abastados. O mundo e a vida de trabalho estão presentes na casa do pobre e a atmosfera tóxica da pressão familiar não se produz. A criança do pobre é uma parte do mundo e como tal reconhecida. Não digo reconhecida como privilegiada, mas como igual na partilha dos sofrimentos e dos prazeres. Kafka dá como exemplo o nascimento de Cristo num presépio aberto onde o mundo é imediatamente presente na figura dos Reis Magos e dos pastores, enquanto o quadro familiar fechado do Homem afortunado tende para o desequilíbrio do próprio amor.
Pode-se estranhar que seja um judeu a recomendar esta imagem. De facto, o próprio Kafka e a sua obra são um presépio aberto, um facto messiânico de nascimento em que o mundo está presente: todos nós o podemos abordar, visitar, amar.
A banalização ou a ocultação dos presépios escondem as teologias das construções literárias do presépio dos evangelhos de S. Mateus e de S. Lucas. Reflectem, ambos, um debate interno ao próprio judaísmo. As primeiras gerações dos discípulos de Jesus eram formadas por mulheres e homens judeus que desejavam abrir por dentro o próprio judaísmo. O presépio reflecte o que se passou na vida adulta de Jesus e na construção das comunidades com a presença do mundo pagão.
Jesus não nasce na cidade de Jerusalém, centro do poder político e religioso. Os pastores representam, precisamente, os que não frequentavam o culto oficial e são os primeiros a chegar ao presépio. Os Magos passam por Jerusalém, mas não ficam lá. A estrela desloca-os para a periferia, significando que se trata não de um fenómeno astronómico, mas teológico. Se os judeus da religião ortodoxa não reconhecem Jesus, os Magos, pagãos, procuram-no. Jesus, com Maria e José, depois da viagem pelo Egipto não vão morar no templo. Vão trabalhar para Nazaré, no meio de toda a gente. O presépio realiza, em miniatura, o que foi a revelação de Jesus na sua vida adulta: Deus anda à solta e faz a sua morada, o seu templo, onde menos se espera e faz família com quem não é da família.
2. Quando todas as indicações levavam a crer que em 2012 continuariam os artifícios de esquecimento do Vaticano II, realizado há cinquenta anos, pequenas iniciativas foram capazes de desencadear um movimento não apenas de recuperação da memória, mas esboçar um confronto com as questões actuais das igrejas, das religiões, do ateísmo, do mundo e tornar urgente a reconfiguração do futuro, num universo cada vez mais globalizado.
Não se esqueça que L’ Osservatore Romano, no dia seguinte ao anúncio do Concílio, feito por João XXIII, ocultou essa notícia, a mais importante no campo religioso do século XX e quando já ocupava a primeira página da imprensa mundial. Foi um boicote falhado, mas indicava que o presépio do mundo em mudança, com as suas alegrias e tristezas, não fazia parte da Cúria Vaticana.
Foi a paciência e a constância do santo João XXIII que conseguiu alterar esse clima para que a palavra aggiornamento fosse compreendida como a palavra de ordem da missão da Igreja nas sociedades contemporâneas, trabalhando na destruição dos muros que obrigavam sempre a pensar nos outros como inimigos, como incapazes de mudar.
Dir-se-á que não resolveu tudo, que apesar do trabalho dos padres conciliares ficou muita coisa adiada e que outros tentaram esquecer, desvirtuar e desfazer. A história humana da fé é de pequenos passos, não é uma viagem de TGV.
3. A imagem de presépio aberto, não se deve confundir com um presépio fixo, com aberturas de entrada e saída, para receber visitas. O presépio, apontado pelas figuras tradicionais, é feito por todos os que procuram a paz, baseada na verdade, na liberdade, no amor e na justiça, como lembrou João XXIII, há cinquenta anos, na Pacem in Terris.
Bento XVI diz o que é preciso recusar: a mentalidade subjacente ao capitalismo financeiro desregrado; as ideologias do liberalismo radical e da tecnocracia; a convicção de que o crescimento económico se deve conseguir mesmo à custa da erosão da função social do Estado e das redes de solidariedade da sociedade civil, bem como dos direitos e deveres sociais. Falta-nos construir o presépio de Cristo no qual todos os seres humanos, na diversidade de todos os povos, culturas e religiões possam dizer: somos um só mundo.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público
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