1. Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, é um dos heterónimos criados por Fernando Pessoa. Compôs o Livro do Desassossego, a sua cobardia: Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação da vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.
A vida é um desassossego, também, por uma boa razão. É muito desagradável olhar para alguém muito satisfeito com ele próprio e com a sua obra. Fica-se com a impressão de que já morreu e finge que está vivo. O desassossego significa que uma pessoa ainda não está acabada, ainda tem futuro, está a fazer-se. Uma Igreja sossegada, convencida de que é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo, precisaria de alguém que lhe lembrasse que parou antes de tempo.
Reuniu-se, no ano passado, em Sínodo, para abordar a temática da Nova Evangelização. Não faltou quem dissesse que foi quase um Concílio. Foram abordadas algumas questões importantes, mas não sabemos o que daí vai resultar. Essa, porém, não é a questão mais importante. Sínodo ou Concílio é uma reunião de delegados que não receberam delegação da Igreja, do conjunto dos católicos. Ficar-se sossegado com este método é adiar uma reforma urgente, por mais desassossego que provoque no mundo católico. Quando, no Sínodo, se afirmou que é preciso mudar a situação das mulheres na Igreja, alguém perguntou o que pensam elas, de forma verdadeiramente representativa, do estatuto que lhes é reconhecido ou negado? Quanto à situação eclesial dos divorciados casados em segundas núpcias, considerá-los simplesmente como pecadores - e que, por isso, não podem comungar -, ou dizer que não se trata propriamente de pecado, mas de uma situação incompatível com a nova aliança significada na Eucaristia, não se toca na pergunta essencial: Que pensam os divorciados recasados do estatuto que lhes é atribuído? Será que o verdadeiro sentido da Fé (sensus fidei) se tornou um exclusivo da hierarquia? Não pertence ele ao NÓS - sujeito de toda a Igreja - e que a expressão Nós Somos Igreja reproduz com exactidão?
2. Dadas as conquistas sociais, culturais e políticas que as mulheres já conseguiram, diferenciadas segundo os países e continentes, existe a tentação de não olhar de frente os crimes que continuam a cometer-se contra a parte maior da humanidade. Direitos e deveres implicam igualdade social de mulheres e homens. A hierarquia católica e as autoridades de outras confissões religiosas não podem reclamar essa igualdade na sociedade civil e negá-la no campo religioso, incapacitando-as de se tornarem as grandes impulsionadoras, a nível local e mundial, de mudanças inadiáveis.
Não se pode dizer que os crimes contra as Mulheres – violência física, psicológica e social, tráfego de mulheres, comércio de prostituição – não suscitem movimentos de indignação e de intervenção. Os níveis de conscientização dos direitos das Mulheres cresceram um pouco por toda a parte, resultado das suas lutas. Quando se olha, porém, para casos como os que a imprensa relata todos os dias – muito poucos em comparação com o que realmente se passa – e dos acontecimentos monstruosos como os que, ultimamente, ocorreram na Índia e não só, podemo-nos aperceber do que falta fazer. Quase tudo.
Quando surgem pedidos de abaixo assinados, quando as organizações de mulheres intervêm publicamente, solicitando adesões e divulgação, os homens não podem reagir como se fossem “questões de género”. São questões do género humano, questões de mulheres e de homens, seja qual fôr o credo religioso, cultural ou político.
As representações da boa relação entre homens e mulheres aprendem-se no berço, na escola, no namoro, na conjugalidade e até à morte. É a vida concreta, em todas as idades e situações, que se deve tornar o caminho de relações de mútua ajuda, libertas e libertadoras.
Desassossegar a situação actual é o melhor caminho para o bom sossego no futuro. Que 2013 nos dê uma paz desassossegada.
Frei Bento Domingues, O.P.
1 de Janeiro de 2013
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