Nas
festas populares por onde passei durante o verão não ouvi foguetes a estoirar
como era costume. Contudo nem por isso os incêndios foram menos. Ao mesmo tempo
que presto homenagem aos admiráveis bombeiros com quem me cruzei, e neles a
todos os bombeiros portugueses, quero recordar o extraordinário fogueteiro
Almerindo, um rapaz que no ano passado não tinha mãos a medir pelas aldeias de
um interior para ele desconhecido. A sua paixão era o fogo e os foguetes.
Trabalhava no seu fabrico, na sua distribuição e mesmo no seu lançamento. O
sopro da subida, o estalar ritmado, a descida traiçoeira das canas para lugar
incerto enchiam-lhe os pulmões de satisfação e envolviam-lhe os sentidos de
magia. Sendo jovem, pensava muitas vezes que o mundo dos foguetes era a sua
única paixão. Mas um dia, num povoado improvável, a uma hora imprevista e de um
modo imprevisível surgiu a Vanessa com aspecto de aparição. Ela não o via,
apenas via o fogo a subir, a estalar ou a derreter-se em lágrimas coloridas
descendo do céu. Mas o eco do rebentar dos foguetes fez-lhe sentir no peito
umas vibrações que pensou serem ondas vindas do peito do fogueteiro. E pronto,
foi ver onde ele estava. Ele olhou-a sorridente como se já a conhecesse há
muito tempo e começaram a andar os dois, um atrás do outro, sem muitas palavras
talvez por não sentirem necessidade de as dizer. Mas a Vanessa também não era
dali e no dia seguinte não apareceu. Foi assim que se começou a formar a
segunda paixão do fogueteiro. Durante um mês, todos os domingos vinha estoirar
três foguetes naquela terrinha com a esperança de que um dia a sua nova paixão
se tornasse mais real. Toda a gente achava aquilo muito estranho, mas ele tinha
razão porque um dia o milagre aconteceu, uma paixão atraiu a outra. Chegou a
pensar que o seu amor à arte dos foguetes iria diminuir, mas não, as duas artes
no amar continuaram a crescer em simultâneo sem que a mais recente definhasse a
anterior. Todavia as paixões têm muitas faces e, passado algum tempo,
revelou-se uma face cruel. As muitas solicitações de fogo exigiam mais horas de
trabalho, e o excesso de trabalho reduzia os cálculos dos riscos. E foi assim
que um dia o barracão onde se fabricavam os foguetes explodiu não deixando quase
vestígios de nada nem de ninguém. O vestígio mais notório era o do amor, mas
esse não era facilmente visível aos olhares perplexos dos cidadãos locais.
Ao
pensar nesta história que me foi próxima lembrei-me de uma leitura de Lucas no
capítulo 13: “Ora, naquele tempo, estavam
presentes alguns que lhe falavam dos galileus cujo sangue Pilatos misturara com
os sacrifícios deles. Respondeu-lhes Jesus: Pensais que esses foram mais
pecadores do que todos os galileus, por terem padecido tais coisas? Não, eu vos
digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis. Ou
pensais que aqueles dezoito, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou,
foram mais culpados do que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não, eu vos
digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis”.
Pilatos, o político cruel, agia com a fórmula da “paz romana”: quem se rebelar
contra Roma, morre. Por isso, os galileus tão cruelmente assassinados poderão
ter sido rebeldes contra o império invasor. Por seu lado, os que levaram com a
torre em cima parece que estavam simplesmente no lugar errado à hora errada ou
com cálculos errados. Nem uns nem outros sofreram um castigo por serem
pecadores. Como resultado das suas acções ou por acidente, foram apenas vítimas
de acontecimentos adversos. As opiniões acerca do amor entre o Almerindo e a
Vanessa também eram controversas. Mas algumas eram bastante sensatas: então, se
eles gostam um do outro e isso não faz mal a ninguém, alguém tem alguma coisa a
ver com isso? Ainda bem que havia estas opiniões e que temos por defesa esta
leitura de Lucas, senão não faltaria quem dissesse que o fogueteiro apaixonado tinha
morrido por ser pecador nas suas paixões. Assim sabemos que não foi, nem por
amar apaixonadamente o seu ofício de fogueteiro, nem por arder em chamas de
amor pela sua amada. Aconteceu. Mas há coisas que nunca poderão ser apagadas da
história, ou pelo menos daquele livro a que chamam da vida. Se o coração dos
galileus ainda hoje bate em toda a parte onde se luta pela dignidade de um
povo, os foguetes que o Almerindo estoirou em dias de nada continuam a ser o
símbolo de corações que não se aguentam a bater sozinhos.
Frei
Matias, O.P.
21.09.2013
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