22 setembro 2013

As paixões do fogueteiro Almerindo


          Nas festas populares por onde passei durante o verão não ouvi foguetes a estoirar como era costume. Contudo nem por isso os incêndios foram menos. Ao mesmo tempo que presto homenagem aos admiráveis bombeiros com quem me cruzei, e neles a todos os bombeiros portugueses, quero recordar o extraordinário fogueteiro Almerindo, um rapaz que no ano passado não tinha mãos a medir pelas aldeias de um interior para ele desconhecido. A sua paixão era o fogo e os foguetes. Trabalhava no seu fabrico, na sua distribuição e mesmo no seu lançamento. O sopro da subida, o estalar ritmado, a descida traiçoeira das canas para lugar incerto enchiam-lhe os pulmões de satisfação e envolviam-lhe os sentidos de magia. Sendo jovem, pensava muitas vezes que o mundo dos foguetes era a sua única paixão. Mas um dia, num povoado improvável, a uma hora imprevista e de um modo imprevisível surgiu a Vanessa com aspecto de aparição. Ela não o via, apenas via o fogo a subir, a estalar ou a derreter-se em lágrimas coloridas descendo do céu. Mas o eco do rebentar dos foguetes fez-lhe sentir no peito umas vibrações que pensou serem ondas vindas do peito do fogueteiro. E pronto, foi ver onde ele estava. Ele olhou-a sorridente como se já a conhecesse há muito tempo e começaram a andar os dois, um atrás do outro, sem muitas palavras talvez por não sentirem necessidade de as dizer. Mas a Vanessa também não era dali e no dia seguinte não apareceu. Foi assim que se começou a formar a segunda paixão do fogueteiro. Durante um mês, todos os domingos vinha estoirar três foguetes naquela terrinha com a esperança de que um dia a sua nova paixão se tornasse mais real. Toda a gente achava aquilo muito estranho, mas ele tinha razão porque um dia o milagre aconteceu, uma paixão atraiu a outra. Chegou a pensar que o seu amor à arte dos foguetes iria diminuir, mas não, as duas artes no amar continuaram a crescer em simultâneo sem que a mais recente definhasse a anterior. Todavia as paixões têm muitas faces e, passado algum tempo, revelou-se uma face cruel. As muitas solicitações de fogo exigiam mais horas de trabalho, e o excesso de trabalho reduzia os cálculos dos riscos. E foi assim que um dia o barracão onde se fabricavam os foguetes explodiu não deixando quase vestígios de nada nem de ninguém. O vestígio mais notório era o do amor, mas esse não era facilmente visível aos olhares perplexos dos cidadãos locais.

       Ao pensar nesta história que me foi próxima lembrei-me de uma leitura de Lucas no capítulo 13: “Ora, naquele tempo, estavam presentes alguns que lhe falavam dos galileus cujo sangue Pilatos misturara com os sacrifícios deles. Respondeu-lhes Jesus: Pensais que esses foram mais pecadores do que todos os galileus, por terem padecido tais coisas? Não, eu vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis. Ou pensais que aqueles dezoito, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, foram mais culpados do que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não, eu vos digo; antes, se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis”. Pilatos, o político cruel, agia com a fórmula da “paz romana”: quem se rebelar contra Roma, morre. Por isso, os galileus tão cruelmente assassinados poderão ter sido rebeldes contra o império invasor. Por seu lado, os que levaram com a torre em cima parece que estavam simplesmente no lugar errado à hora errada ou com cálculos errados. Nem uns nem outros sofreram um castigo por serem pecadores. Como resultado das suas acções ou por acidente, foram apenas vítimas de acontecimentos adversos. As opiniões acerca do amor entre o Almerindo e a Vanessa também eram controversas. Mas algumas eram bastante sensatas: então, se eles gostam um do outro e isso não faz mal a ninguém, alguém tem alguma coisa a ver com isso? Ainda bem que havia estas opiniões e que temos por defesa esta leitura de Lucas, senão não faltaria quem dissesse que o fogueteiro apaixonado tinha morrido por ser pecador nas suas paixões. Assim sabemos que não foi, nem por amar apaixonadamente o seu ofício de fogueteiro, nem por arder em chamas de amor pela sua amada. Aconteceu. Mas há coisas que nunca poderão ser apagadas da história, ou pelo menos daquele livro a que chamam da vida. Se o coração dos galileus ainda hoje bate em toda a parte onde se luta pela dignidade de um povo, os foguetes que o Almerindo estoirou em dias de nada continuam a ser o símbolo de corações que não se aguentam a bater sozinhos.

       Frei Matias, O.P.

      21.09.2013

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