Digo Eu
Cinquenta Minutos de Paz
Hoje,
a T. apanhou-me de surpresa. Não é que eu saiba ou possa adivinhar o que ela me
vai dizer, sempre que lhe atendo o telefone, todas as manhãs. A verdade é que
não há grandes novidades nas nossas vidas de mulheres reformadas, sozinhas em
casa, a dormir em cama vazia. As conversas vão seguindo quase sossegadas, a não
ser quando há algum acontecimento muito emocional, como foi o caso de a T. se
ter apaixonado no último verão ou de ter chorado um dia inteiro, por causa de
um minúsculo bikini que usou na praia.
Podemos
falar de sonhos ou de desejos, de projectos ou intenções. Combinamos um cinema,
uma exposição, um café. Evitamos lembrar os telejornais, que nos atiram a matar
as mais hediondas notícias. Não queremos mais ouvir a insensibilidade dos
poderes, a incompetência dos partidos políticos, o empobrecimento injusto, o
achatamento dos salários e das reformas. Recusamos a palavra “troika.” Tristes
tempos, desabafamos a duas vozes, muitas vezes.
Hoje
a T. disse-me o bom dia do costume, fez uma pausa para bem colocar a voz naquele
tom que julga adequado aos assuntos realmente importantes.
E
perguntou-me: -Tu és feliz?
-Espera
aí, respondi-lhe. E muito depressa:- Acho que sim. Não sei. Tenho de pensar.
Ao
mesmo tempo, disse eu para comigo própria que não é fácil responder a sério à
pergunta, com um sorrisinho leve, que sim, sou feliz.
–
Sabes que ser feliz está na moda?- insistiu
a T.
–
Não sei eu outra coisa! – respondi no mesmo instante, para passar a comentar com
ela a situação do nosso querido país, nesta questão existencial.
–
Fazem inquéritos a torto e a direito, tentou a T. interromper-me. Mas eu,
teimosamente, repeti-lhe os dados sobre a Felicidade há uns dias divulgados. E
não senti nenhuns escrúpulos por quebrar a nossa regra de falarmos ao telefone
dispensando as notícias deprimentes. Bem deprimentes.
Então,
relembrei eu à T. que no Relatório Mundial sobre a Felicidade da ONU, Portugal desceu
doze posições para o 85º lugar entre 156 países avaliados. Dinamarca, Noruega e
Suiça são os primeiros e Togo, Benim e Republica Centro Africana vêm no fim. A
agravar o quadro, também nos foi anunciado que 15 por cento dos portugueses
sofre de ansiedade, e que somos o país europeu com maior taxa de depressão.
A
T. reagiu, se calhar os dados do Relatório estão certos, a verdade é que os
portugueses voltaram do mês de agosto ainda mais tristes, e depois destes
números, pior ainda. E passou a falar-me sobre o que já nos últimos meses me
tinha dito, ela própria tem andado à procura dessa tão desejada felicidade e
acha que está a abrir-se para lá chegar. Saúde, alguma sorte, algum dinheiro
para pagar as contas e um pouco mais, ela tem. Deixou de sentir tentação de
consumos desnecessários, cuida da alimentação, anda muito a pé, carrega pesos por
disciplina, tem sido mais atenta àqueles que estão à sua volta, encontra em si
novos sentimentos de amor e compaixão.
A
T., tão exuberante, tão excessiva, anda em fase de austeridade exterior e de
reflexão interior. Aqui está um grande acontecimento. Ela, há muitos anos
afastada da Igreja, descobre-se a viver uma espiritualidade que desconhecia.
Foi ensinada a ter medo do inferno, a enunciar os pecados mortais, a ficar muda
e quieta nas missas, sem perceber a complicação dos sermões de domingo. Não se
considera uma convertida, porque nasceu e foi criada em puro ambiente de
cultura cristã.
A
personalidade do Papa Francisco, a maneira tão directa como fala, a justiça e a
paz que pede para toda a humanidade impressionaram a T. Hoje, garante que outra
dimensão a ilumina. Na rotina de todos os dias, ela sente que ganhou uma medida
maior deste mundo. –Ter fé é não estar só, diz-me.
Enquanto
a oiço, correm no meu pensamento as minhas horas felizes. – Sou feliz, sim. Nem
sempre. Mas sim, sou feliz.
E
dou-lhe o exemplo de um momento bom. Cinquenta minutos de paz, de beleza, de
espiritualidade pura, que vivi no segundo sábado de setembro. O Concerto para
Órgão na Igreja de São Vicente de Fora. Lisboa esplendorosa às 5 horas da tarde.
E eu lá dentro, a par dos tantos outros homens e mulheres tão diversos, unidos
no prazer absoluto da harmonia.
Leonor
Xavier
in Jornal Sénior
26.09.2013
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