1. Não me lembro nada de ter sido baptizado. Recebi o
crisma na adolescência, mas só me recordo de que o grupo em que fui apresentado
escapou todo de uma temida palmada ritual do bispo. Com todo o respeito pelos
anabaptistas, sou, no entanto, um defensor fervoroso do baptismo de adultos e
de crianças, sem pensar que Deus só se dá bem com os baptizados.
É verdade que, às vezes, regresso
desconsolado e apreensivo com o futuro de certas celebrações baptismais. Que
irão fazer os pais para promover a progressiva descoberta do sentido e das
exigências inscritas no espantoso programa simbólico do baptismo? A Igreja
doméstica – a não confundir com certo beatério familiar – deve ser o espaço de
uma evolutiva pedagogia da fé cristã que saiba puxar pelo que há de melhor nas pessoas: a descoberta da alegria no
acolhimento dos outros, na partilha e na recusa dos caminhos da injustiça.
Ser cristão é adoptar o projecto de
Jesus Cristo, acolhendo o seu espirito de ruptura com as seduções diabólicas da
dominação económica, política e religiosa e o renascimento para a liberdade dos
filhos de Deus, sem irmãos excluídos da mesa comum. Não se trata de papaguear
fórmulas dogmáticas nem de receber instruções moralistas, mas de uma mudança
interior, de uma luz divina, no íntimo da consciência, que se inspira na
prática de Jesus e dos seus melhores discípulos
Hoje,
quero recomendar vivamente uma obra sobre o mergulho baptismal –Take the plunge – e a sua confirmação
que nos pode ajudar a reencontrar a Fonte e o Sentido em todas as encruzilhadas
da vida[1]. O autor é um dominicano inglês,
T. Radcliffe, que já tem outras obras publicadas em português. É professor em
Oxford e ex-Mestre Geral da Ordem dos Pregadores. No exercício dessa missão
percorreu o mundo. Sempre admirei a sua excepcional capacidade de aprender com
todos, em todas as situações. Serve-se de tudo para tecer as suas conferências,
a sua pregação e os seus livros de teologia, com uma requintada cultura
literária, artística, histórica, bíblica, patrística e sempre em registo
ecuménico. O inesgotável sentido de humor não o afasta das manifestações de rua
na defesa dos empobrecidos e marginalizados.
2.
As crianças são baptizadas desde o começo do Cristianismo e tornou-se tradição
de quase todas as Igrejas Cristãs. Já os Actos dos Apóstolos aludem ao baptismo
dos adultos e das suas famílias.
No
séc. IV, durante algum tempo, existiu uma tendência para adiar o Baptismo. Não
se duvidava da importância de baptizar as crianças. A razão era outra. Este era
o Sacramento do grande Perdão. Dada a disciplina penitencial da época, não se
queria gastar a sua eficácia antes de
tempo. O Baptismo não era garantia de um futuro sem pecado e corria-se o perigo
de passar o resto da vida em penitência. Muitas pessoas, como o próprio
imperador cristão Constantino, adiavam-no até ao último momento e Jacqueline de
Romilly foi baptizada aos 95 anos dizendo: já
é tempo! Quando Sto Ambrósio foi eleito Bispo, com a idade de trinta e
cinco anos, não era baptizado. Teve de receber este sacramento antes da
ordenação.
O
baptismo das crianças, apesar dos inconvenientes – antigos e modernos - exprime
uma realidade divina e humana que poderíamos ser levados a esquecer no baptismo
de adultos: afirma a absoluta gratuidade do amor que Deus nos tem; a criança
ainda não fez nada para merecer seja o que for, quer de Deus quer dos pais.
Ora, se os pais fazem tudo pelos seus filhos mesmo antes de nascerem, quanto
mais o Deus que nos amou primeiro.[2]
Deus não depende dos nossos méritos. Somos nós que dependemos do seu amor. De qualquer modo, os cristãos são confrontados com narrativas de um Deus que se tornou criança e adolescente, antes de surgir homem feito, como no Evangelho de Marcos, a dizer-nos que tudo pode ser diferente, pois somos amados e impõe-se uma reorientação da vida e de todos os seus valores.
3. De adultos ou de crianças, o baptismo é para refazer a vida toda. O ser humano não é de uma peça só e de uma só vez. Vai sendo e nunca de forma linear. A sua morada não é o passado, não é o presente. É a esperança, é o futuro. Sem ele, é o suicídio. Não vale a pena idealizar a infância, a adolescência, a idade adulta ou a da reforma. Se há tanta literatura sobre todas estas idades, é porque nenhuma delas é um paraíso. Por razões diversas, quase ninguém está contente com a idade que tem, mas vivemos num tempo em que é difícil ter crianças e ocupar-se dos idosos. Os desempregados não sabem de que terra são: de mendigar têm vergonha e já não têm condições nem de imigrar nem de ficar. O que é próprio do Baptismo cristão é não se conformar com o mundo como está. A sua natureza é pascal, é passagem, não é resignação.
Celebrar a data do Baptismo para um renovado encontro com a Fonte e com a Luz, para não esquecermos de onde vimos e para onde vamos.
Frei Bento Domingues, O. P.
26.01.2014
in Público
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