1. Ao longo dos anos, foi-se
desenvolvendo nestas crónicas a convicção do nosso atraso, como Igreja e como
sociedade secular, em relação ao questionamento social e místico de Jesus
Cristo: não vos conformeis com a situação actual do mundo! Ao ler o texto do
Evangelho na Missa, em vez do ritual, “naquele tempo”, parece-me preferível um
convite: escutemos o que diz, hoje, Jesus
aos seus discípulos…
Pensava
nisto, ao entrar numa casa de artigos religiosos sem qualquer beleza,
acompanhados de livrinhos de piedade rançosa, quando deparei com um título
inesperado naquele cenário: As 23
Mulheres do Concílio. A presença feminina no Vaticano II.
O papa Paulo VI anunciou oficialmente a
presença de vinte e três mulheres, como auditoras, no Concílio Vaticano II. De
Setembro de 1964 a Agosto de 65, foram chamadas, uma por uma: dez religiosas e
treze leigas, escolhidas segundo critérios de competência e de internacionalidade”.
Na
previsão de muitos padres
conciliares, a participação delas deveria revestir-se, sobretudo, de carácter
simbólico. Essa presença depressa ultrapassou as barreiras previstas, acabando
por deixar, nos próprios documentos conciliares, sinais importantes detectados na
investigação da historiadora e teóloga, Adriana Valerio. Ao apresentar as
figuras e os meandros das intervenções destas madres conciliares que, pela
primeira vez, tomaram parte, de forma eficaz, nos trabalhos de um Concílio
ecuménico, mostra o longo caminho a percorrer para desempenharem na Igreja a
missão que o Ressuscitado lhes confiou.
Na Aula
conciliar, propriamente dita, nem sequer puderam agradecer terem sido
convidadas. Ouviram do secretário do Concílio, P. Felice, a proibição paulina, as mulheres estejam caladas nas assembleias
(1Cor 14, 34).
Ao verificarem
a involução do Concílio, comprovada no Sínodo de 1971, não se conformaram e remaram
contra a maré até ao limite das suas possibilidades, chegando a apresentar a
sua demissão. Acabou por vencer, de forma autoritária, quem não dispunha de
argumentos. Quem julga que está tudo definitivamente resolvido, talvez se
engane. O passado do Evangelho é voz da promessa irrevogável. Vejamos.
2. No Novo Testamento (NT), a conhecida
hostilidade entre vizinhos, judeus e samaritanos, é realçada para destacar a
arte de Jesus na destruição dos preconceitos do seu próprio povo. Repreendeu os
seus discípulos, com sede de vingança, pelo mau acolhimento na Samaria (Lc 9,
54-55). Mas não só. Depois de tudo o que já tinha sido dito sobre o ardente
amor a Deus e ao próximo, surge a pergunta de quem gosta mais de conversar do
que de meter as mãos na massa - mas quem
é o meu próximo? – Jesus arruma aquela petulância, escolhendo um samaritano,
um herético e cismático, de quem não se podia esperar nada de bom, para tecer
uma parábola de contrastes: Descia um homem de Jerusalém para Jericó e foi
assaltado, despojado, espancado, ficando quase morto. Um sacerdote viu-o e
passou adiante; veio um levita, viu-o e não parou. Um samaritano viu, encheu-se
de compaixão, desceu da sua montada, levou-o a uma estalagem para ser tratado,
pagou todas as despesas e só depois foi à sua vida. Foi a vez de Jesus questionar
o perguntador retórico: o nosso próximo é aquele cuja situação real nos
interroga, nos move e nos comove (Lc 10, 29-37).
3. Para alguns intérpretes do NT, a
presença das mulheres é tão irrelevante que poderia ser suprimida, sem se
perder grande coisa. Figuram, nos Evangelhos, como as 23 mulheres no Concílio
Vaticano II: puro adorno dispensável.
Seria
possível suprimir o longo diálogo entre Jesus e a Samaritana (Jo 4,1-42), tema
de fundo da Missa deste domingo, que mostra o nosso inveterado atraso eclesial,
acima evocado?
Vale a pena
percorrer a espantosa narrativa do encontro de um “judeu marginal”, Jesus, com
uma samaritana pouco recomendável, junto a um poço, no pico do calor. A arte de
S. João consiste em dar a impressão de que eles estão sempre a desconversar,
saltando de assunto para assunto, sem linha de conversa e a entenderem-se cada
vez mais profundamente. Foi Jesus quem quebrou a animosidade inicial, mas a
samaritana acaba por se esquecer do que foi fazer ao poço, sentindo-se
perfeitamente compreendida por aquele judeu que desloca a religião do Templo de
Jerusalém e do monte Garisim, para o culto do Pai, em espírito e verdade. Pressente que está a nascer nela uma fonte
de eternidade, uma outra religião, um futuro novo.
Os discípulos
de Jesus, meio escandalizados com o cenário não entendem, como de costume, o
que se está a passar. Entretanto, a mulher partiu em missão: contou a sua
experiência, não como protagonista, mas para levar os samaritanos a fazerem
eles próprios o seu caminho.
Esta
narrativa concentra todos os temas e percursos da verdadeira evangelização: a passagem
da suspeita ao diálogo, do diálogo à mútua compreensão, da mútua compreensão à
alteração da rivalidade religiosa, da rivalidade das instituições religiosas, a
uma compreensão nova e universalizante da religião.
Porque teria
Jesus, segundo as narrativas da Ressurreição, confiado a evangelização da
própria Igreja às mulheres?
Frei Bento
Domingues, O. P.
in Público
23.03.2014
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