Tenho um amigo que
embirra visceralmente com as ambulâncias. Fica tão irritado quando elas passam
a gritar, a passar os sinais vermelhos e por cima dos passeios que eu já lhe
disse que qualquer dia lhe dá um ataque e temos que chamar uma para o levar.
Pensando bem, as ambulâncias até representam o que nos evangelhos é uma
revolução extraordinária. Ressentidos com a liberdade de Jesus face à primazia
do ser humano, os homens da Lei andavam sempre a embirrar com ele. Uma das
coisas que não suportavam era ele curar e cuidar de pessoas ao sábado. O Sábado
era um dia de descanso dedicado apenas ao Senhor, por certo no sentido do
descanso do próprio Deus depois da trabalheira da criação. Para que o dia fosse
cumprido com rigor os homens da Lei foram tecendo um arame farpado de leis às
centenas para não se transgredir e ser-se obrigado a cumprir o dia do Sábado. O
resultado foi que aquele que deveria ser um dia de liberdade tinha-se tornado
um dia de prisão e castigo. Às vezes prega-se que Jesus era contra o Sábado e
suas leis, mas é mais correcto dizer que punha as pessoas acima de tudo, mesmo
o Sábado. Criticava e transgredia as leis do Sábado naquilo em que elas impediam
de atender e cuidar daqueles que precisavam. Entre várias das suas intervenções,
há uma muito expressiva: “Se um de vocês
tiver uma ovelha e ela cair num poço ao sábado, não vai logo tirá-la de lá para
fora? Ora, um homem vale muito mais que uma ovelha! Por isso é permitido fazer
bem ao sábado” (Mt 12). Aquelas
leis acerca do sábado eram semelhantes às do Código da Estrada, proibições e
obrigações. Com a grande diferença de que as leis de trânsito são para
favorecer a vida e a convivência e aquelas eram leis que, com uma boa intenção
inicial, se tinham tornado contra as pessoas. E, assim, também contra Deus
apesar de dizerem que eram Lei de Deus. A embirração do meu amigo pareceu-me
semelhante à embirração dos fariseus, e o comportamento das ambulâncias pareceu-me
derivar das palavras e do comportamento de Jesus. Claro que as leis de trânsito
foram feitas para que tudo seja bom para todos de igual modo. Não têm valor em
si mas, devido à sua função, transgredi-las pode causar problemas mesmo ao
transgressor. Porém as ambulâncias têm um estatuto diferente, levam alguém que
tem prioridade sobre todas as coisas, a começar pelas leis de trânsito. Para
salvar uma vida as ambulâncias podem gritar, ir a uma velocidade acima do
permitido, passar o sinal vermelho ou por cima de passeios. Nessa situação
todos os saudáveis perdem por momentos os seus direitos e o mais sensato que
têm a fazer é suspenderem por pouco tempo os seus objetivos. Se não o fizerem e
persistirem em não dar prioridade a uma ambulância, serão censurados por toda a
gente a começar pelas autoridades cujo ofício é obrigar a cumprir a lei. No
mínimo fica feio ter uma atitude dessas. E no momento em que termino estas
linhas ouço gritar duas ambulâncias. Ainda bem que esse meu amigo não está aqui
para as ouvir. Que Deus vos guie ó ambulâncias, mas não abusem do estatuto que
a emergência vos confere. Com o tempo até os pavões perdem a exuberância da sua
cauda.
Frei Matias, O.P.
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