1. Há quem diga que a
melhor atitude perante as tentações é não lhes resistir. Como piada, não está
mal.
Tanto no sentido moral como religioso, tentar é induzir ao mal ou pôr
alguém à prova. É neste último sentido que se fala das tentações diabólicas que assaltaram Jesus, durante o seu retiro no
Deserto. Foi solicitado a assumir, de forma milagrosa e espectacular, o poder
económico, político e religioso de um país ocupado pelo império romano,
provando assim, a sua divindade messiânica. Essas propostas já foram evocadas
na Eucaristia do passado domingo. As suas versões são diferentes em cada um dos
Evangelhos sinópticos, mas coincidentes no essencial (Mc 1, 12-13; Lc 4,1-13;Mt
4,1-11). Para alguns autores do Novo Testamento (NT), as tentativas para fazer
de Jesus o líder de uma insurreição nacionalista nunca o abandonaram, tendo
encontrado cúmplices activos entre os apóstolos mais chegados. Jesus chegou a
considerar Pedro como um diabo.
Estamos perante textos de uma cultura
semita de há mais de 2.000 anos, com referências ao Antigo Testamento (AT) e
continuamente reinterpretados na história das Igrejas. Exigem, por isso, que se
volte a perguntar: as tentações de dominação económica, política e religiosa
terão, ainda hoje, expressões significativas no mundo contemporâneo? Poderá a
Igreja assumir as recusas radicais de Cristo ou terá de as corrigir, para poder
voltar a sonhar com uma Cristandade poderosa no futuro?
F. Dostoiévsky (1821-1881), no romance, Os Irmãos Karamozov, com A
Lenda do Grande Inquisidor, retomou, de modo impressionante, a centralidade
desse tema de que só posso transcrever um breve trecho: “Se fosse possível
imaginar, só a título de exemplo, que estas três perguntas tentadoras tivessem desaparecido das Escrituras e que fosse
preciso reconstituí-las, reinventá-las, imaginá-las de novo, para as reintegrar
nas Escrituras, se fosse preciso, para isso, reunir todos os sábios da terra –
os reis, os cientistas, os filósofos, os poetas – e dizer-lhes: inventai,
imaginai três perguntas que correspondam não só à grandeza do acontecimento,
mas exprimam, além disso, em três palavras, em três frases humanas, toda a
história do mundo e da humanidade, pensas que toda a sabedoria da terra teria
podido inventar qualquer coisa que igualasse em profundidade e em força estas
três perguntas que Te foram apresentadas no deserto, pelo espírito poderoso e
inteligente?
Bastam essas perguntas, basta o prodígio que elas representavam, para
se compreender que não se tratava duma inteligência humana, transitória, mas
duma inteligência eterna e absoluta. Porque nestas três perguntas estava
condensada e predita toda a história ulterior da humanidade. Elas resumiam,
também em três imagens, todas as insolúveis contradições históricas da natureza
humana. Isto podia não ser tão evidente, então, porque se desconhecia o futuro;
mas agora, quinze séculos mais tarde, vemos que tudo o que foi adivinhado e
predito nestas três frases se realizou a tal ponto que nada mais se lhe poderá acrescentar ou tirar”.
2. Não interessa muito
saber se, do ponto de vista histórico, tudo se passou como vem contado nos
Evangelhos. No campo literário, o mais simbólico, o mais poético é também o
mais real. O que importa, em textos desta natureza, é o seu processo de
significação. A sua interpretação em contexto litúrgico depende da seguinte
pergunta: em que medida ajudam a interpretar a nossa experiência actual e, por
ricochete, como é que a situação actual ajuda a redescobrir a fecundidade de
textos exemplares, do ponto de vista humano e cristão?
Faço este apontamento não só por causa dessa questão, mas também pelas
interrogações suscitadas pela leitura das passagens do livro do Genesis (c.2-3)
e de S. Paulo (Rm 5), na mesma celebração. Continuam a alimentar a crença no pecado original, no qual todos os seres
humanos teriam sido concebidos e que Jesus Cristo teria vindo redimir. Apesar
de todo o trabalho exegético e teológico realizado, tudo isso que parece
absurdo, ainda funciona como um arquétipo. Será porque nos continua a servir de
desculpa pelo mundo tremendo em que nascemos e para o qual não se vê, ou não se
quer ver, remédio?
3. Estamos no Domingo das Transfigurações. Celebramos o 1º
aniversário da eleição do Papa Francisco, que já começou a transfigurar o
Vaticano ao serviço da transfiguração da Igreja e a transfigurar o olhar de
todos sobre a sociedade: ver o mundo a partir das periferias.
70 personalidades assinaram um manifesto sobre a reestruturação da dívida. A dívida é cada vez maior. Seja qual for
a opinião acerca deste gesto, o que parece claro é que nunca iremos ter
possibilidades de a pagar. Nestas crónicas antecipámos uma transfiguração
quaresmal. O perdão das dívidas é um assunto bem conhecido do AT e NT. É melhor
não os esquecer nesta Quaresma, que deve ser transfiguradora. A Alemanha não
está arrependida de lhe terem perdoado uma dívida imensa. Desse perdão dependeu
o seu milagre económico.
Os deputados, todos os deputados, não se esqueceram das suas condições
de vida. Quando acordarem para a situação de vida da maioria dos seus
eleitores, talvez descubram que muitos deles já morreram e outros imigraram.
Frei Bento Domingues, O. P.
16.03.2014
in Público
Sem comentários:
Enviar um comentário