02 março 2014

O SER HUMANO TEM CURA (1)

    
  1. Este título contraria a conhecida sentença antropológica de José Saramago induzida da História e da observação quotidiana: o ser humano não tem cura. A patologia de que sofre parece resultar de um defeito de fabrico. É um animal que leva muito tempo para nascer e, em comparação com os outros mamíferos, vem mal equipado para enfrentar o mundo envolvente.

Uma criança vem ao mundo com enormes vantagens potenciais quanto a inteligência, emoções, linguagem, criatividade estética e capacidade técnica. É uma personalidade em gestação, um centro de relações com uma comunidade de conhecimento e de afectos que a precedeu e a torna apta para sonhar, projectar e realizar o que nunca existiu ou para destruir um património de milênios. As neurociências e as nanotecnologias prenunciam uma caixa de surpresas nos subterrâneos da mente, sem um alarme ético a avisar que nem tudo o que é possível fazer deve ser concretizado.  

Sem entrar nesse vasto mundo de conjecturas, olhando para o passado e para o nosso presente, cresce a sensação de que nunca mais ganharemos juízo. A Europa, por exemplo, talvez nunca tenha conhecido, como nos últimos 60 anos, um tempo tão longo de paz. No séc. XX, foi devastada por duas guerras mundiais. No entanto, foi possível reconstruir-se e gozar uma época de desenvolvimento. Caiu o muro que a dividia. Alimentou a ideia de que a democracia seria não só uma aspiração, mas uma realidade praticável, numa Europa solidária.

      2. Quando, porém, a Europa parecia curada, não houve paciência para estudar e calcular as consequências de cada uma das instituições que criava, dos tratados que assinava e das decisões que tomava, para o desenvolvimento de uma consciência europeia dos cidadãos e dos países com identidades próprias, a respeitar e a promover. Uma Europa democrática esquecida da democracia, ignorando as suas raízes e as suas culturas, sem um estilo de acolhimento da emigração que evitasse os guetos, só podia dar no impossível. Sem espírito europeu, nunca haverá União Europeia auto-sustentável.

A pressa em alargar, antes de experimentar e avaliar a Europa dos pequenos passos na direcção certa, perante situações tão díspares, não podia dar bons resultados. Agora, é a pressa em debitar soluções para sair do euro, para ficar no euro, para sair da UE, para continuar na UE, sem que os europeus saibam, em concreto, as vantagens e os riscos de qualquer dessas soluções. Os europeus, trabalhadores e empresários, sem dados concretos sobre a raiz das rejeições ou decisões, como poderão avaliar o que os beneficia ou prejudica? As conversas acerca dos prós e contras da troika são inúteis, se não servirem para colocar os portugueses a pensar e discutir o que lhes convém para depois da troika. As exigências de marketing eleitoral não devem servir para nos esconder os jogos dos mercados, da banca, dos poderes, nacionais e internacionais. Somos nós que precisamos de saber quais são os jogos e as regras a que nos obrigam.

3. Maria João Rodrigues[1], depois de muitos anos a viajar pela Europa, a viver e trabalhar com pessoas de tão diferentes nacionalidades, admira: “a organização dos alemães, o espírito crítico dos franceses, o profissionalismo sofisticado dos britânicos, a criatividade dos italianos, a sabedoria dos nórdicos, a têmpera combativa dos espanhóis, a abertura cultural dos portugueses e por aí adiante”. Ficam as interrogações: Quantas pontes precisaríamos de criar para restaurar a confiança, assegurar uma vida decente hoje e preparar o futuro? Quantas iniciativas europeias serão necessárias para as construir? Quantos europeus quererão falar europeu?

A Europa não é o mundo nem pode ser uma fortaleza, um mar de morte, e o Mediterrâneo, um cemitério. Reconhecido ou negado, o ser humano existe nos seres humanos. Em todos.

Conta Fr. Bartolomeu de Las Casas, na sua História das Índias, que no dia 21 de Dezembro de 1511, Fr. Antón Montesinos subiu ao púlpito, levando mandato de toda a comunidade dominicana da Isla Española[2], para, como voz de Cristo, tomar a defesa pública dos índios explorados: “esta voz, disse ele, declara que todos estais em pecado mortal e nele viveis e morrereis, pela crueldade e tirania que usais com estas inocentes gentes. Dizei-me: com que direito e com que justiça tendes estes índios em tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade fizestes tão detestáveis guerras a estas gentes que estavam nas suas terras, mansas e pacíficas, onde consumistes um número infindável delas, com mortes e estragos nunca ouvidos? Como é que os tendes tão oprimidos e esgotados, sem lhes dar de comer nem curar as suas doenças, que pelos excessivos trabalhos a que os sujeitais, vos morrem, melhor será dizer, os matais, para arrancarem e conseguirem ouro todos os dias. (…) Estes não são homens? Não têm almas racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto? Não sentis isto? Como estais adormecidos num sono tão profundo e letárgico? (…)

O ser humano tem cura, mas precisa de tomar os remédios. Quais?

Frei Bento Domingues O. P.

02.03.2014



[1] A Europa ainda é possível, Presença, 2013.pp 133
[2] Isla Española, actual República Dominicana

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