1.
Este título contraria a conhecida sentença antropológica de José Saramago induzida
da História e da observação quotidiana: o
ser humano não tem cura. A patologia de que sofre parece resultar de um defeito
de fabrico. É um animal que leva muito tempo para nascer e, em comparação com os
outros mamíferos, vem mal equipado para enfrentar o mundo envolvente.
Uma criança vem
ao mundo com enormes vantagens potenciais quanto a inteligência, emoções, linguagem,
criatividade estética e capacidade técnica. É uma personalidade em gestação, um
centro de relações com uma comunidade de conhecimento e de afectos que a
precedeu e a torna apta para sonhar, projectar e realizar o que nunca existiu
ou para destruir um património de milênios. As neurociências e as
nanotecnologias prenunciam uma caixa de surpresas nos subterrâneos da mente, sem
um alarme ético a avisar que nem tudo o que é possível fazer deve ser
concretizado.
Sem entrar nesse
vasto mundo de conjecturas, olhando para o passado e para o nosso presente, cresce
a sensação de que nunca mais ganharemos juízo. A Europa, por exemplo, talvez nunca
tenha conhecido, como nos últimos 60 anos, um tempo tão longo de paz. No séc.
XX, foi devastada por duas guerras mundiais. No entanto, foi possível
reconstruir-se e gozar uma época de desenvolvimento. Caiu o muro que a dividia.
Alimentou a ideia de que a democracia seria não só uma aspiração, mas uma
realidade praticável, numa Europa solidária.
2.
Quando, porém, a Europa parecia curada, não houve paciência para estudar e
calcular as consequências de cada uma das instituições que criava, dos tratados
que assinava e das decisões que tomava, para o desenvolvimento de uma
consciência europeia dos cidadãos e dos países com identidades próprias, a
respeitar e a promover. Uma Europa democrática esquecida da democracia, ignorando
as suas raízes e as suas culturas, sem um estilo de acolhimento da emigração
que evitasse os guetos, só podia dar no impossível. Sem espírito europeu, nunca
haverá União Europeia auto-sustentável.
A pressa em
alargar, antes de experimentar e avaliar a Europa dos pequenos passos na
direcção certa, perante situações tão díspares, não podia dar bons resultados.
Agora, é a pressa em debitar soluções para sair do euro, para ficar no euro,
para sair da UE, para continuar na UE, sem que os europeus saibam, em concreto,
as vantagens e os riscos de qualquer dessas soluções. Os europeus,
trabalhadores e empresários, sem dados concretos sobre a raiz das rejeições ou
decisões, como poderão avaliar o que os beneficia ou prejudica? As conversas
acerca dos prós e contras da troika são
inúteis, se não servirem para colocar os portugueses a pensar e discutir o que
lhes convém para depois da troika. As
exigências de marketing eleitoral não
devem servir para nos esconder os jogos dos mercados, da banca, dos poderes,
nacionais e internacionais. Somos nós que precisamos de saber quais são os jogos
e as regras a que nos obrigam.
3. Maria João Rodrigues[1], depois de muitos anos a
viajar pela Europa, a viver e trabalhar com pessoas de tão diferentes
nacionalidades, admira: “a organização dos alemães, o espírito crítico dos
franceses, o profissionalismo sofisticado dos britânicos, a criatividade dos
italianos, a sabedoria dos nórdicos, a têmpera combativa dos espanhóis, a
abertura cultural dos portugueses e por aí adiante”. Ficam as interrogações:
Quantas pontes precisaríamos de criar para restaurar a confiança, assegurar uma
vida decente hoje e preparar o futuro? Quantas iniciativas europeias serão
necessárias para as construir? Quantos europeus quererão falar europeu?
A Europa não
é o mundo nem pode ser uma fortaleza, um mar de morte, e o Mediterrâneo, um
cemitério. Reconhecido ou negado, o ser humano existe nos seres humanos. Em
todos.
Conta Fr.
Bartolomeu de Las Casas, na sua História
das Índias, que no dia 21 de Dezembro de 1511, Fr. Antón Montesinos subiu
ao púlpito, levando mandato de toda a comunidade dominicana da Isla Española[2], para, como voz de Cristo,
tomar a defesa pública dos índios explorados: “esta voz, disse ele, declara que
todos estais em pecado mortal e nele viveis e morrereis, pela crueldade e
tirania que usais com estas inocentes gentes. Dizei-me: com que direito e com
que justiça tendes estes índios em tão cruel e horrível servidão? Com que
autoridade fizestes tão detestáveis guerras a estas gentes que estavam nas suas
terras, mansas e pacíficas, onde consumistes um número infindável delas, com
mortes e estragos nunca ouvidos? Como é que os tendes tão oprimidos e
esgotados, sem lhes dar de comer nem curar as suas doenças, que pelos
excessivos trabalhos a que os sujeitais, vos morrem, melhor será dizer, os
matais, para arrancarem e conseguirem ouro todos os dias. (…) Estes
não são homens? Não têm almas
racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto?
Não sentis isto? Como estais adormecidos num sono tão profundo e letárgico?
(…)
O ser humano
tem cura, mas precisa de tomar os remédios. Quais?
Frei Bento
Domingues O. P.
02.03.2014
O nsi.pt. ajuda - me a viver.Bem hajam.
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