24 dezembro 2016

NATAL OU PÁSCOA?

       1. O dia 25 de Dezembro não celebra o aniversário histórico do nascimento de Jesus de Nazaré. A Igreja de Roma fixou esta data como réplica pastoral à festa solar pagã do Natalis Invicti, festa de inverno no hemisfério norte. Foi uma bela astúcia. Procurava destronar a heliolatria, o culto do sol, pela celebração do nascimento de Jesus Cristo, o verdadeiro Sol Invencível, a luz da justiça e da graça. Se o Natal é decisão romana, a Epifania, a 6 de Janeiro, é de origem oriental: celebram ambas a mesma realidade, a manifestação do Deus humanado.
A linguagem das Escrituras e da Liturgia não caiu do Céu. Para fazer entender a novidade cristã foram transpostas, muitas vezes, imagens e festas pagãs para o universo católico. Onde hoje alguns podem julgar que houve uma paganização do Cristianismo, outros vêem, nesse esforço, a sua cristianização. A este propósito, as descrições que Epifânio de Salamina[i] fez  da festa pagã, de tipo solar, ajudam-nos a perceber os discernimentos que foram necessários para entender a nossa festa de 6 de Janeiro.
Vale a pena ler: “em muitos lugares, os charlatães inventam ritos idolátricos para enganar os adoradores dos ídolos que neles confiam. Celebram, uma festa grandiosa, precisamente na noite que precede o dia da epifania… Temos de referir, em primeiro lugar, a festa que se celebra em Alexandria, no chamado Koreion. Ficam acordados toda a noite, a cantar alguns hinos e a tocar flauta para acompanhar os cânticos que entoam em honra do ídolo. Uma vez terminada a celebração nocturna, ao cantar do galo, descem, empunhando tochas, a uma espécie de capela subterrânea e pegam num ídolo de madeira, despido, colocado sobre uma peanha… A seguir, levam o ídolo em procissão, dando sete voltas ao recinto interior do templo, ao som de flautas, de tambores e a cantar hinos; terminada a procissão, levam o ídolo para a sua sede subterrânea. Se lhes perguntarmos que mistério é esse, respondem: Hoje, a esta hora, Kore, a virgem deu à luz Aion.”
Além desta conotação solar, a festa oriental da epifania aponta para outra festa pagã, a das águas. Epifânio relaciona a festa de 6 de Janeiro com o milagre de Caná.
“Até aos nossos dias, em muitos locais, repete-se o prodígio divino que teve lugar naquele tempo, a fim de dar testemunho aos incrédulos. Em muitos sítios, comprovam-no fontes e rios transformados em vinho. Isto acontece na fonte de Cibyra, cidade de Caria, no momento em que os servos tiram água dizendo: levai-a ao mestre-sala.” (…) Também a 11 de Tybi, 6 de Janeiro, segundo os egípcios, todos irão tirar água e pô-la de parte, tanto no Egipto como noutros países.
2. Este ano, o Natal é num Domingo, a celebração semanal da Páscoa. Mas é Páscoa ou Natal? Pensando bem, não poderia haver Páscoa sem Natal, mas um natal sem Páscoa seria dar à morte a última palavra.
Uma coisa é dizer e outra é ter consciência do que isso implica. Há uns tempos a esta parte, observo o seguinte: há cristãos que, ao participarem na Eucaristia dominical, regressaram ao costume depressivo de ficar de joelhos. Uns fazem-no durante a anáfora e outros ajoelham antes de comungar.
Talvez não seja descabido ler o que, já no século II, Tertuliano[ii] destacava: nós consideramos que, ao domingo, não é permitido jejuar nem rezar de joelhos. Do mesmo privilégio gozamos no dia de Páscoa e durante o período do Pentecostes. O grande teólogo, S. Basílio[iii] sublinha: “É de pé que fazemos a oração do primeiro dia da semana, mas nem todos sabem a razão de tal facto. Permanecemos de pé quando rezamos no dia consagrado à ressurreição – como ressuscitados com Cristo e devendo procurar as coisas do alto[iv]– não só porque recordamos a graça que nos foi dada, mas por aquele dia ser, de certo modo, uma imagem do mundo que há-de vir. (…) É necessário, pois, que a Igreja habitue os fiéis a rezar de pé, a fim de que, pela incessante invocação da vida eterna, não nos esqueçamos de preparar o nosso viático, em vista da nossa partida para o céu”.
3. Dir-se-á que não vale a pena perder tempo a procurar saber se é melhor rezar de pé, de joelhos ou sentados. É verdade e seria ridículo dizer a uma pessoa que se ajoelha para comungar: levante-se!
A oração não é um comportamento exclusivo de nenhuma religião. Jesus era um grande orante, mas o seu primeiro cuidado não foi o de arranjar um manual de orações para os seus discípulos, que se queixaram desse descuido. Não se esqueceu, porém, de evangelizar a oração[v].
Segundo S. Mateus, importa não imitar os hipócritas exibicionistas nem os gentios que entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos: o vosso Pai sabe do que tendes necessidade antes de lho pedirdes. A oração nasce em nós, por causa dos nossos limites. Pedir socorro, quando se está aflito, é uma atitude normal e saudável. É uma forma de resistência ao fatalismo.
Importa, no entanto, não transferir para a nossa relação com Deus a ficção de que O estamos a informar e a convencer, inventando um sistema de cunhas para O fazer entrar nos nossos projectos.
A oração não é para convencer a Deus é para nos convencer de quanto precisamos de Deus e dos outros para transformar o mundo.
Boa ressurreição!
Frei Bento Domingues, O.P.
        in Público 24.12.2016


[i] 310-403 dC. Cf. José Manuel Bernal, Para viver o ano litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001, pp 301-303
[ii] 160-220 dC
[iii] 329-379
[iv] Col 3, 1
[v] Mt 6, 1-13; Lc 11, 1-2;

18 dezembro 2016

DE MÃE A DISCÍPULA

      1. Pertencem a Paulo os primeiros escritos do Novo Testamento. Não são de carácter narrativo. São tentativas de interpretação de uma experiência que mudou completamente a sua vida, que o fez nascer de novo. A iluminação que derrubou as suas certezas não o fez ver apenas que nem Jesus nem os seus discípulos eram traidores da autêntica fé de Israel. Esta tinha sido atraiçoada ao deixar-se prender pela Lei, pelos seus preceitos e regulamentos, tornando-se uma questão nacionalista.
Jesus não cabia em Israel e não era só um judeu fora de série. Era um começo novo da humanidade. S. Lucas imaginou a sua genealogia como filho de Adão, como filho de Deus[i] e S. Mateus dirá, citando Isaías, que ele é Deus connosco[ii]. É o evangelho de um filho da humanidade para toda a humanidade.
Quem frequentar as engenhosas narrativas, magníficos romances do nascimento e dos começos da vida de Jesus, não corre o perigo de imaginar que estamos a preparar, com o Advento, o nascimento de Cristo, assunto há muito resolvido. O que nos falta é consentir em nascer de novo. Como já referimos na semana passada, a grande figura do Natal é Nicodemos, um fariseu membro do Sinédrio[iii], que andava de noite à procura da luz.
2. Maria, nunca foi, nunca será tirada do Presépio, mesmo que este não figure nem no Evangelho de Marcos nem no de João, que apanharam Jesus já em andamento.
No Evangelho de João, Maria é surpreendida entre dois milagres, ou sinais, como ele gosta de dizer. Tudo começa com um casamento onde se encontrava a Mãe de Jesus e para o qual também o seu filho e os seus discípulos foram convidados.
É estranho que numa boda falte vinho. Maria mostra-se muito ansiosa com aquela vergonha e pede ao filho que faça alguma coisa. Recebe uma resposta mal criada, agressiva. Maria faz-se desentendida e diz aos serventes: fazei o que ele vos disser. Água não faltava e, de repente, torna-se num vinho de excepção. Todos conhecemos o resto da conversa, o milagre da água convertida em vinho. Só que o verdadeiro milagre não foi esse. Esquecemos o milagre dos milagres.
Fixemos o contraste da narrativa. No começo, Maria é a mãe que mostra a sua relação com o filho. O seu filho. É ela que toma a iniciativa. Não esqueçamos a continuação.
Depois do que aconteceu, desceu a Cafarnaum ele, a sua mãe, os seus irmãos e os discípulos. Ali ficaram alguns dias.[iv]
Qual foi, então, o grande milagre? A partir daquele momento, no Evangelho de S. João, nunca mais se fala de Maria, mãe de Jesus. Só reaparece durante a crucificação do seu filho: Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé a sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas e Maria Madalena. Jesus então, vendo a sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem mais amava, disse à sua mãe: Mulher, eis o teu filho! Depois disse ao discípulo: eis a tua mãe! E, a partir dessa hora, o discípulo recebeu-a em sua casa[v].
3. Que significa este longo silêncio? Jesus viveu uma longa polémica com os discípulos: traído por um e abandonado por muitos[vi]. Os seus irmãos também não acreditavam nele[vii].
O caso de Maria é completamente diferente. O Evangelho de João mostrou que a mãe de Jesus deixou de mandar no seu filho, mas não o abandonou, nem deixou de acreditar nele. Tornou-se a mãe que vai, silenciosamente, para a escola do filho. Só reaparece quando já está identificada com o projecto de Jesus e com a decisão de o acompanhar até ao fim.
Se Jesus passou a vida, a sua vida de intervenção pública, a tentar fazer família com que não era da família, a ponto de os familiares o julgarem doido[viii], na cruz, Maria é apresentada como a Mãe da nova humanidade. Ela vai aparecer no meio dos apóstolos na preparação do advento do Pentecostes: eram Pedro, João, Tiago, André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão Zelote e Judas filho de Tiago. Todos, unânimes, eram assíduos à oração com algumas mulheres, entre as quais Maria, Mãe de Jesus e os seus irmãos[ix].
O doido da família conseguiu enlouquecer a família.
Se a Igreja renunciasse a trabalhar por um mundo, família de muitas famílias, de muitos povos, culturas e religiões ou sem religião, significaria que tinha renunciado a acreditar na sua missão: revelar que, na sua imensa diversidade, há uma só humanidade, feita de filhos de Deus, de irmãs e irmãos. Talvez continuasse a falar na dignidade e no primado da pessoa humana, mas estaria apenas a referir-se a uma abstracção.
Importa confessar que isto está muito atrasado. Passaram dois mil anos e, quando dizemos que Jesus é o Messias, ainda estamos longe dos poemas de Isaías e das promessas do Apocalipse de um novo céu e uma nova terra[x].
Não é coisa que não se soubesse há dois mil anos. As parábolas do grão de mostarda e do fermento não nasceram por acaso.
No entanto, nem elas nos podem valer. Não temos nenhuma fórmula que nos explique o mistério do tempo. A Fé cristã está ligada a um crucificado. A Ressurreição diz-nos que a morte não é a última palavra sobre a nossa vida. A sua garantia só é dada pelo que fizermos para ressuscitar alguém esquecido na sua dor.
A igreja não tem nenhuma fórmula para salvar o mundo. É uma convocatória para o trabalho. Não é pouco.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 18.12.2016


[i] Lc 3, 38
[ii] Mt 1, 23
[iii] Jo 3, 1-21
[iv] Jo 2, 1-12
[v] Jo. 19, 25-27
[vi] Jo 6, 64-71
[vii] Jo 7, 1-16
[viii] Mc 3, 20-33
[ix] Act 1, 12-14
[x] Ap 21-22 

13 dezembro 2016

MENSAGEM DO SANTO PADRE
FRANCISCO
PARA A CELEBRAÇÃO DO
50º DIA MUNDIAL DA PAZ

1° DE JANEIRO DE 2017

A não-violência: estilo de uma política para a paz



1. No início deste novo ano, formulo sinceros votos de paz aos povos e nações do mundo inteiro, aos chefes de Estado e de governo, bem como aos responsáveis das Comunidades Religiosas e das várias expressões da sociedade civil. Almejo paz a todo o homem, mulher, menino e menina, e rezo para que a imagem e semelhança de Deus em cada pessoa nos permitam reconhecer-nos mutuamente como dons sagrados com uma dignidade imensa. Sobretudo nas situações de conflito, respeitemos esta «dignidade mais profunda»[1] e façamos da não-violência ativa o nosso estilo de vida.

Esta é a Mensagem para o 50º Dia Mundial da Paz. Na primeira, o Beato Papa Paulo VI dirigiu-se a todos os povos – e não só aos católicos – com palavras inequívocas: «Finalmente resulta, de forma claríssima, que a paz é a única e verdadeira linha do progresso humano (não as tensões de nacionalismos ambiciosos, nem as conquistas violentas, nem as repressões geradoras duma falsa ordem civil)». Advertia contra o «perigo de crer que as controvérsias internacionais não se possam resolver pelas vias da razão, isto é, das negociações baseadas no direito, na justiça, na equidade, mas apenas pelas vias dissuasivas e devastadoras». Ao contrário, citando a Pacem in terris do seu antecessor São João XXIII, exaltava «o sentido e o amor da paz baseada na verdade, na justiça, na liberdade, no amor».[2] É impressionante a atualidade destas palavras, não menos importantes e prementes hoje do que há cinquenta anos.

Nesta ocasião, desejo deter-me na não-violência como estilo duma política de paz, e peço a Deus que nos ajude, a todos nós, a inspirar na não-violência as profundezas dos nossos sentimentos e valores pessoais. Sejam a caridade e a não-violência a guiar o modo como nos tratamos uns aos outros nas relações interpessoais, sociais e internacionais. Quando sabem resistir à tentação da vingança, as vítimas da violência podem ser os protagonistas mais credíveis de processos não-violentos de construção da paz. Desde o nível local e diário até ao nível da ordem mundial, possa a não-violência tornar-se o estilo caraterístico das nossas decisões, dos nossos relacionamentos, das nossas ações, da política em todas as suas formas.

Um mundo dilacerado

2. Enquanto o século passado foi arrasado por duas guerras mundiais devastadoras, conheceu a ameaça da guerra nuclear e um grande número de outros conflitos, hoje, infelizmente, encontramo-nos a braços com uma terrível guerra mundial aos pedaços. Não é fácil saber se o mundo de hoje seja mais ou menos violento que o de ontem, nem se os meios modernos de comunicação e a mobilidade que carateriza a nossa época nos tornem mais conscientes da violência ou mais rendidos a ela.

Seja como for, esta violência que se exerce «aos pedaços», de maneiras diferentes e a variados níveis, provoca enormes sofrimentos de que estamos bem cientes: guerras em diferentes países e continentes; terrorismo, criminalidade e ataques armados imprevisíveis; os abusos sofridos pelos migrantes e as vítimas de tráfico humano; a devastação ambiental. E para quê? Porventura a violência permite alcançar objetivos de valor duradouro? Tudo aquilo que obtém não é, antes, desencadear represálias e espirais de conflitos letais que beneficiam apenas a poucos «senhores da guerra»?

A violência não é o remédio para o nosso mundo dilacerado. Responder à violência com a violência leva, na melhor das hipóteses, a migrações forçadas e a atrozes sofrimentos, porque grandes quantidades de recursos são destinadas a fins militares e subtraídas às exigências do dia-a-dia dos jovens, das famílias em dificuldade, dos idosos, dos doentes, da grande maioria dos habitantes da terra. No pior dos casos, pode levar à morte física e espiritual de muitos, se não mesmo de todos.

A Boa Nova

3. O próprio Jesus viveu em tempos de violência. Ensinou que o verdadeiro campo de batalha, onde se defrontam a violência e a paz, é o coração humano: «Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos» (Marcos 7, 21). Mas, perante esta realidade, a resposta que oferece a mensagem de Cristo é radicalmente positiva: Ele pregou incansavelmente o amor incondicional de Deus, que acolhe e perdoa, e ensinou os seus discípulos a amar os inimigos (cf. Mateus 5, 44) e a oferecer a outra face (cf. Mateus 5, 39). Quando impediu, aqueles que acusavam a adúltera, de a lapidar (cf. João 8, 1-11) e na noite antes de morrer, quando disse a Pedro para repor a espada na bainha (cf. Mateus 26, 52), Jesus traçou o caminho da não-violência que Ele percorreu até ao fim, até à cruz, tendo assim estabelecido a paz e destruído a hostilidade (cf. Efésios 2, 14-16). Por isso, quem acolhe a Boa Nova de Jesus, sabe reconhecer a violência que carrega dentro de si e deixa-se curar pela misericórdia de Deus, tornando-se assim, por sua vez, instrumento de reconciliação, como exortava São Francisco de Assis: «A paz que anunciais com os lábios, conservai-a ainda mais abundante nos vossos corações».[3]

Hoje, ser verdadeiro discípulo de Jesus significa aderir também à sua proposta de não-violência. Esta, como afirmou o meu predecessor Bento XVI, «é realista pois considera que no mundo existe demasiada violência, demasiada injustiça e, portanto, não se pode superar esta situação, exceto se lhe contrapuser algo mais de amor, algo mais de bondade. Este “algo mais” vem de Deus».[4]E acrescentava sem hesitação: «a não-violência para os cristãos não é um mero comportamento tático, mas um modo de ser da pessoa, uma atitude de quem está tão convicto do amor de Deus e do seu poder que não tem medo de enfrentar o mal somente com as armas do amor e da verdade. O amor ao inimigo constitui o núcleo da “revolução cristã”».[5] A página evangélica – amai os vossos inimigos (cf. Lucas 6, 27) – é, justamente, considerada «a magna carta da não-violência cristã»: esta não consiste «em render-se ao mal (...), mas em responder ao mal com o bem (cf. Romanos 12, 17-21), quebrando dessa forma a corrente da injustiça».[6]

Mais poderosa que a violência

4. Por vezes, entende-se a não-violência como rendição, negligência e passividade, mas, na realidade, não é isso. Quando a Madre Teresa recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1979, declarou claramente qual era a sua ideia de não-violência ativa: «Na nossa família, não temos necessidade de bombas e de armas, não precisamos de destruir para edificar a paz, mas apenas de estar juntos, de nos amarmos uns aos outros (...). E poderemos superar todo o mal que há no mundo».[7] Com efeito, a força das armas é enganadora. «Enquanto os traficantes de armas fazem o seu trabalho, há pobres pacificadores que, só para ajudar uma pessoa, outra e outra, dão a vida»; para estes obreiros da paz, a Madre Teresa é «um símbolo, um ícone dos nossos tempos».[8] No passado mês de setembro, tive a grande alegria de a proclamar Santa. Elogiei a sua disponibilidade para com todos «através do acolhimento e da defesa da vida humana, a dos nascituros e a dos abandonados e descartados. (...) Inclinou-se sobre as pessoas indefesas, deixadas moribundas à beira da estrada, reconhecendo a dignidade que Deus lhes dera; fez ouvir a sua voz aos poderosos da terra, para que reconhecessem a sua culpa diante dos crimes – diante dos crimes! – da pobreza criada por eles mesmos».[9] Como resposta, a sua missão – e nisto representa milhares, antes, milhões de pessoas – é ir ao encontro das vítimas com generosidade e dedicação, tocando e vendando cada corpo ferido, curando cada vida dilacerada.

A não-violência, praticada com decisão e coerência, produziu resultados impressionantes. Os sucessos alcançados por Mahatma Gandhi e Khan Abdul Ghaffar Khan, na libertação da Índia, e por Martin Luther King Jr contra a discriminação racial nunca serão esquecidos. As mulheres, em particular, são muitas vezes líderes de não-violência, como, por exemplo, Leymah Gbowee e milhares de mulheres liberianas, que organizaram encontros de oração e protesto não-violento (pray-ins), obtendo negociações de alto nível para a conclusão da segunda guerra civil na Libéria.

E não podemos esquecer também aquela década epocal que terminou com a queda dos regimes comunistas na Europa. As comunidades cristãs deram a sua contribuição através da oração insistente e a ação corajosa. Especial influência exerceu São João Paulo II, com o seu ministério e magistério. Refletindo sobre os acontecimentos de 1989, na Encíclica Centesimus annus (1991), o meu predecessor fazia ressaltar como uma mudança epocal na vida dos povos, nações e Estados se realizara «através de uma luta pacífica que lançou mão apenas das armas da verdade e da justiça».[10] Este percurso de transição política para a paz foi possível, em parte, «pelo empenho não-violento de homens que sempre se recusaram a ceder ao poder da força e, ao mesmo tempo, souberam encontrar aqui e ali formas eficazes para dar testemunho da verdade». E concluía: «Que os seres humanos aprendam a lutar pela justiça sem violência, renunciando tanto à luta de classes nas controvérsias internas, como à guerra nas internacionais».[11]

A Igreja comprometeu-se na implementação de estratégias não-violentas para promover a paz em muitos países solicitando, inclusive aos intervenientes mais violentos, esforços para construir uma paz justa e duradoura.

Este compromisso a favor das vítimas da injustiça e da violência não é um património exclusivo da Igreja Católica, mas pertence a muitas tradições religiosas, para quem «a compaixão e a não-violência são essenciais e indicam o caminho da vida».[12] Reitero-o aqui sem hesitação: «nenhuma religião é terrorista».[13] A violência é uma profanação do nome de Deus.[14] Nunca nos cansemos de repetir: «jamais o nome de Deus pode justificar a violência. Só a paz é santa. Só a paz é santa, não a guerra».[15]

A raiz doméstica duma política não-violenta

5. Se a origem donde brota a violência é o coração humano, então é fundamental começar por percorrer a senda da não-violência dentro da família. É uma componente daquela alegria do amor que apresentei na Exortação Apostólica Amoris laetitia, em março passado, concluindo dois anos de reflexão por parte da Igreja sobre o matrimónio e a família. Esta constitui o cadinho indispensável no qual cônjuges, pais e filhos, irmãos e irmãs aprendem a comunicar e a cuidar uns dos outros desinteressadamente e onde os atritos, ou mesmo os conflitos, devem ser superados, não pela força, mas com o diálogo, o respeito, a busca do bem do outro, a misericórdia e o perdão.[16] A partir da família, a alegria do amor propaga-se pelo mundo, irradiando para toda a sociedade.[17] Aliás, uma ética de fraternidade e coexistência pacífica entre as pessoas e entre os povos não se pode basear na lógica do medo, da violência e do fechamento, mas na responsabilidade, no respeito e no diálogo sincero. Neste sentido, lanço um apelo a favor do desarmamento, bem como da proibição e abolição das armas nucleares: a dissuasão nuclear e a ameaça duma segura destruição recíproca não podem fundamentar este tipo de ética.[18] Com igual urgência, suplico que cessem a violência doméstica e os abusos sobre mulheres e crianças.

O Jubileu da Misericórdia, que terminou em novembro passado, foi um convite a olhar para as profundezas do nosso coração e a deixar entrar nele a misericórdia de Deus. O ano jubilar fez-nos tomar consciência de como são numerosos e variados os indivíduos e os grupos sociais que são tratados com indiferença, que são vítimas de injustiça e sofrem violência. Fazem parte da nossa «família», são nossos irmãos e irmãs. Por isso, as políticas de não-violência devem começar dentro das paredes de casa para, depois, se difundir por toda a família humana. «O exemplo de Santa Teresa de Lisieux convida-nos a pôr em prática o pequeno caminho do amor, a não perder a oportunidade duma palavra gentil, dum sorriso, de qualquer pequeno gesto que semeie paz e amizade. Uma ecologia integral é feita também de simples gestos quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do egoísmo».[19]

O meu convite

6. A construção da paz por meio da não-violência ativa é um elemento necessário e coerente com os esforços contínuos da Igreja para limitar o uso da força através das normas morais, mediante a sua participação nos trabalhos das instituições internacionais e graças à competente contribuição de muitos cristãos para a elaboração da legislação a todos os níveis. O próprio Jesus nos oferece um «manual» desta estratégia de construção da paz no chamado Sermão da Montanha. As oito Bem-aventuranças (cf. Mateus 5, 3-10) traçam o perfil da pessoa que podemos definir feliz, boa e autêntica. Felizes os mansos – diz Jesus –, os misericordiosos, os pacificadores, os puros de coração, os que têm fome e sede de justiça.

Este é um programa e um desafio também para os líderes políticos e religiosos, para os responsáveis das instituições internacionais e os dirigentes das empresas e dos meios de comunicação social de todo o mundo: aplicar as Bem-aventuranças na forma como exercem as suas responsabilidades. É um desafio a construir a sociedade, a comunidade ou a empresa de que são responsáveis com o estilo dos obreiros da paz; a dar provas de misericórdia, recusando-se a descartar as pessoas, danificar o meio ambiente e querer vencer a todo o custo. Isto requer a disponibilidade para «suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo».[20] Agir desta forma significa escolher a solidariedade como estilo para fazer a história e construir a amizade social. A não-violência ativa é uma forma de mostrar que a unidade é, verdadeiramente, mais forte e fecunda do que o conflito. No mundo, tudo está intimamente ligado.[21] Claro, é possível que as diferenças gerem atritos: enfrentemo-los de forma construtiva e não-violenta, de modo que «as tensões e os opostos [possam] alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida», conservando «as preciosas potencialidades das polaridades em contraste».[22]

Asseguro que a Igreja Católica acompanhará toda a tentativa de construir a paz inclusive através da não-violência ativa e criativa. No dia 1 de janeiro de 2017, nasce o novo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, que ajudará a Igreja a promover, de modo cada vez mais eficaz, «os bens incomensuráveis da justiça, da paz e da salvaguarda da criação» e da solicitude pelos migrantes, «os necessitados, os doentes e os excluídos, os marginalizados e as vítimas dos conflitos armados e das catástrofes naturais, os reclusos, os desempregados e as vítimas de toda e qualquer forma de escravidão e de tortura».[23] Toda a ação nesta linha, ainda que modesta, contribui para construir um mundo livre da violência, o primeiro passo para a justiça e a paz.

Em conclusão

7. Como é tradição, assino esta Mensagem no dia 8 de dezembro, festa da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria. Nossa Senhora é a Rainha da Paz. No nascimento do seu Filho, os anjos glorificavam a Deus e almejavam paz na terra aos homens e mulheres de boa vontade (cf. Lucas 2, 14). Peçamos à Virgem Maria que nos sirva de guia.

«Todos desejamos a paz; muitas pessoas a constroem todos os dias com pequenos gestos; muitos sofrem e suportam pacientemente a dificuldade de tantas tentativas para a construir».[24]No ano de 2017, comprometamo-nos, através da oração e da ação, a tornar-nos pessoas que baniram dos seus corações, palavras e gestos a violência, e a construir comunidades não-violentas, que cuidem da casa comum. «Nada é impossível, se nos dirigimos a Deus na oração. Todos podem ser artesãos de paz».[25]

Vaticano, 8 de dezembro de 2016.



Francisco



[1] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 228.

[2] Mensagem para a celebração do 1º Dia Mundial da Paz, 1° de janeiro de 1968.

[3] «Legenda dos três companheiros»: Fontes Franciscanas, n. 1469.

[4] Angelus, 18 de fevereiro de 2007.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

[7] Discurso por ocasião da entrega do Prémio Nobel, 11 de dezembro de 1979.

[8] Francisco, Meditação «O caminho da paz», Capela da Domus Sanctae Marthae, 19 de novembro de 2015.

[9] Homilia na canonização da Beata Madre Teresa de Calcutá, 4 de setembro de 2016.

[10] N. 23

[11] Ibidem.

[12] Francisco, Discurso na Audiência inter-religiosa, 3 de novembro de 2016.

[13] Idem, Discurso no III Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 5 de novembro de 2016.

[14] Cf. Idem, Discurso no Encontro com o Xeque dos Muçulmanos do Cáucaso e com Representantes das outras Comunidades Religiosas, Baku, 2 de outubro de 2016.

[15] Idem, Discurso em Assis, 20 de setembro de 2016.

[16] Cf. Exort. ap. pós-sinodal Amoris laetitia, 90-130.

[17] Cf. ibid., 133.194.234.

[18] Cf. Francisco, Mensagem à Conferência sobre o impacto humanitário das armas nucleares, 7 de dezembro de 2014.

[19] Idem, Carta enc. Laudato si’, 230.

[20] Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium, 227.

[21] Cf. Idem, Carta enc. Laudato si’, 16.117.138.

[22] Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium, 228.

[23] Idem, Carta apostólica sob a forma de “Motu proprio” pela qual se institui o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, 17 de agosto de 2016.

[24] Francisco, Regina Caeli, Belém, 25 de maio de 2014.


[25] Apelo, Assis, 20 de setembro de 2016.

11 dezembro 2016

SEMEADORES DE MUDANÇA: POETAS SOCIAIS (2)

1. A partir dos finais dos anos 60 do século passado, os militantes dos movimentos cristãos eram bombardeados com repetidas afirmações marxistas: a fé é a alienação da vida humana, a Igreja é o secular instrumento da alienação e os padres são os intelectuais orgânicos desse processo alienador.

A liturgia e a mística eram consideradas formas de fuga do mundo. Nesta perspectiva, a mística era rejeitada como expoente máximo do medo à realidade material, da fuga das responsabilidades sociais, da alienação na sua forma extrema. Era também recusada por ser uma mística de olhos fechados perante a história, sem ligação com as tarefas humanas[i].

Muitas atitudes e práticas religiosas, do passado e do presente, merecem bem esta crítica, mas diante do texto do domingo passado, e que desejo continuar hoje, essa crítica faz-nos sorrir. Não foram poucos os marxistas da época que se emburguesaram. Muitas pessoas da Igreja – e muitas que não se reconhecem em todas as suas expressões -, lideradas pelo Papa Francisco, vêem o mundo a partir dos excluídos e vivem em função da transformação da sociedade, como ficou claro no 3º Encontro com os participantes dos Movimentos Populares.

As organizações dos excluídos - e de tantas outras de diversos sectores da sociedade - estão chamadas a revitalizar e a refundar as democracias que atravessam uma verdadeira crise. Não devem ceder à tentação de se deixarem reduzir a agentes secundários ou, pior, a meros administradores da miséria existente. Nestes tempos de paralisia, desorientação e propostas destruidoras, a participação como protagonistas dos povos que procuram o bem comum pode vencer, com a ajuda de Deus, os falsos profetas que exploram o medo e o desespero, que vendem fórmulas mágicas de ódio e crueldade ou de um bem-estar egoísta e uma segurança ilusória.

Como vimos no Domingo passado, Bergoglio não acredita na fórmula beata: vai-se fazendo o que se pode e depois se verá. Para revitalizar a democracia é preciso não fechar os olhos e alimentar ilusões. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo nem problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais[ii]. Por isso, o Papa Francisco disse e repetiu: o futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos, na sua capacidade de se organizarem e orientarem este processo de mudança com humildade e convicção[iii]. Não devem consentir em serem excluídos da Política, com letra grande, e reduzir cada um dos movimentos à sua pequena horta.

2. O velho argentino tocou num segundo risco dos Movimentos: deixar-se corromper. Assim como a política não é uma questão de “políticos”, também a corrupção não é um vício exclusivo da política. Há corrupção na política, nas empresas, nos meios de comunicação, nas igrejas e, também, nas organizações sociais e nos movimentos populares. Há corrupção radicada nalguns âmbitos da vida económica, em particular na actividade financeira. É menos noticiada do que a corrupção de âmbito político e social.

Importa, no entanto, realçar o seguinte: aqueles que escolheram uma vida de serviço têm uma obrigação acrescida de honestidade. A medida é muito alta: é preciso ter vocação para servir com um forte sentido de austeridade e humildade. Isto é válido para os políticos, para os dirigentes sociais e para nós pastores.

Disse «austeridade» e gostaria de esclarecer que esta palavra é equívoca. Refiro-me à austeridade moral, no modo de viver, pessoal e familiar. Não estou a falar daquela que é imposta pelas leis e astúcias do mercado…

3. A qualquer pessoa que seja demasiado apegada às coisas materiais e que ama o dinheiro, banquetes exuberantes, casas sumptuosas, roupas de marca, carros de luxo, aconselharia que compreenda o que está a acontecer no seu coração e que reze a Deus para que o liberte destes laços. Mas, parafraseando o ex-presidente latino-americano que está aqui, todo aquele que seja apegado a estas coisas, por favor, que não entre na política, não entre numa organização social ou num movimento popular, porque causaria muitos danos a si mesmo, ao próximo e sujaria a nobre causa que empreendeu. E que também não entre no seminário!

Peço aos dirigentes que não se cansem de praticar esta austeridade moral, pessoal, e peço a todos que exijam dos dirigentes esta austeridade, que — de resto — os fará sentir-se muito felizes.

É no Advento que estou a ler este longo, belo e exigente discurso do Papa. Não é para preparar o nascimento de Jesus. Essa questão está resolvida há mais de dois mil anos. Para o Natal que interessa, a grande narrativa é a conversa nocturna de Jesus com Nicodemos: precisas de nascer de novo e não perguntes como, sendo já velho[iv].

Boa receita!

Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 11.12.2016

[i] Olegario González de Cardedal, Cristianismo y mística. Teresa de Jesús de la Juan de la Cruz, Educa, Buenos Aires, 2013, pp.215-216.
[ii] Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 202
[iii] Discurso no segundo encontro mundial dos movimentos populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015
[iv] Jo 3, 1-21

04 dezembro 2016

COMUNICADO DO MOVIMENTO INTERNACIONAL NÓS SOMOS IGREJA

   O MOVIMENTO INTERNACIONAL NÓS SOMOS IGREJA - O SÍNODO DA JUVENTUDE DEVE SER PARTICIPADO POR JOVENS, FAMÍLIAS E PROFESSORES

O Movimento Internacional Nós Somos Igreja, que representa Católic@s de todo o mundo, empenhad@s numa Igreja justa e inclusiva, expressa a sua preocupação com os planos para o Sínodo dos Bispos, em 2018, que deliberará sobe a juventude, fé e vocações.

"Concordamos que é realmente importante que a Igreja Católica compreenda melhor as necessidades e perspectivas da juventude global, como diz o Papa Francisco ", disse Sigrid Grabmeier, Coordenadora do Nós Somos Igreja Internacional. "Eles são o futuro da Igreja e serão eles que terão de lidar com as complexas situações que enfrenta o nosso mundo. Contudo, há demasiados jovens que não se identificam com a Igreja, ou acham que é irrelevante ou mesmo destrutiva dos temas que os interessam.

"Para este Sínodo ter algum impacto, tem de ser muito diferente dos sínodos do passado". Grabmeier acrescentou ainda "Não será positivo se os bispos forem os únicos participantes, comentando o resultado dos questionários a que eles próprios e os seus colegas responderam. Este deve ser um acontecimento de toda a Igreja." 
Jovens, pais, avós, professores e mentores devem ser ouvidos na sua preparação e devem fazer parte do Sínodo. Se for apenas um grupo de homens velhos e celibatários a tomar as decisões não valerá a pena.

O Nós Somos Igreja pede ao Vaticano que reestruture o Sínodo para que os leigos, que são quem trabalha com a juventude, sejam parte integrante do processo de discussão e de tomada de decisões.
"Esta será a única maneira de o próximo Sínodo responder verdadeiramente às necessidades e ao potencial da nossa Igreja" concluiu Grabmeier                                                                                       

SEMEADORES DE MUDANÇA: POETAS SOCIAIS (1)


    1. Falar e escrever para calar os outros era uma tradição papal que João XXIII interrompeu. O exemplo não vingou, mas o Papa Francisco tem gosto em acolher, ouvir e partilhar a palavra seja com quem for, seja onde for. Não aceita que a Doutrina Social da Igreja continue a ser apenas a voz dos Papas.
    No passado dia 5 de Novembro, Bergoglio acolheu, em Roma, o 3º Encontro dos Movimentos Populares. No anterior, realizado na Bolívia, ficou claro que sem transformar as estruturas não é possível vida digna para as populações. A luta continua e entusiasma o argentino: “Vós, movimentos populares, sois semeadores de mudança, promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e grandes acções interligadas, de modo criativo, como numa poesia. Foi por isso que vos quis chamar poetas sociais”.
     O ritmo dessa poesia é marcado pelos passos da caminhada rumo a uma alternativa humana face à globalização da indiferença: 1. pôr a economia ao serviço dos povos; 2. construir a paz e a justiça; 3. defender a Mãe Terra.
    O discurso do papa é longo e multifacetado[1]. É uma antologia da vida dos movimentos populares na resistência à tirania. Esta alimenta-se da exploração do medo e do terror. Os cidadãos que ainda conservam alguns direitos são tentados pela falsa segurança dos muros físicos ou sociais. Muros que prendem uns e exilam outros. De um lado, cidadãos murados, apavorados; do outro, os excluídos, exilados, ainda mais aterrorizados.         Será esta a vida que Deus, nosso Pai, deseja para os seus filhos?

   2. Além de ser um bom negócio para os comerciantes de armas e de morte, o medo destrói as nossas defesas psicológicas e espirituais, anestesia-nos diante do sofrimento do próximo e torna-nos cruéis.
Quando se festeja a morte de um jovem, que talvez tenha errado o caminho, quando se prefere a guerra à paz, quando se propaga a xenofobia, quando propostas intolerantes ganham terreno, sabemos que por detrás de tal crueldade sopra o frio vento do medo.
    O Papa não esquece a capacidade mobilizadora da oração: peço-vos que rezeis por todos aqueles que têm medo. O próprio Jesus nos intima: Não tenhais medo[2]! Tende misericórdia. A misericórdia é muito melhor do que os remédios, antidepressivos e tranquilizantes. Mais eficaz do que muros, grades, alarmes e armas. E é grátis: uma dádiva de Deus.
   Bergoglio acredita que todos os muros, mas todos, vão ruir. «Continuemos a trabalhar para construir pontes entre os povos, pontes que nos permitam derrubar os muros da exclusão e da exploração». Enfrentemos o terror com o amor!

    3. O fosso entre os povos e as nossas actuais formas de democracia alarga-se cada vez mais, como consequência do enorme poder dos grupos económicos e mediáticos, que parecem dominá-las.
   Sei, diz o Papa, que os movimentos populares não são partidos políticos. Em grande parte, é nisto que se encontra a vossa riqueza. Exprimis uma forma diferente, dinâmica e vital de participação social na vida pública. Mas não tenhais medo de entrar nos grandes debates, na Política com letra maiúscula, e cito Paulo VI: «A política é uma maneira exigente — não a única — de viver o compromisso cristão ao serviço do próximo». Ou então a frase que repito muitas vezes e já não sei se é de Paulo VI ou de Pio XII: «A política é uma das formas mais altas da caridade, do amor».
    Frisa, então, dois riscos na relação entre movimentos populares e política: o de se deixarem encurralar e o de se deixarem corromper.
Não se deixar cercar, porque alguns dizem: a cooperativa, o refeitório, a horta agro-ecológica, as micro empresas, o projecto dos planos assistenciais... até aqui tudo bem.
    Enquanto vos mantiverdes no âmbito das «políticas sociais», enquanto não puserdes em questão a política económica ou a Política com «P» maiúsculo, sois tolerados. A ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres e muito menos inserida num projecto que reúna os povos, às vezes parece-me um carro de carnaval a esconder o lixo do sistema.
    Quando vós, da vossa afeição ao território, da vossa realidade diária, do bairro, do local, da organização do trabalho comunitário, das relações de pessoa a pessoa, ousais pôr em causa as macro relações, quando levantais a voz, quando gritais, quando pretendeis indicar ao poder uma organização mais integral, então deixais de ser tolerados. Estais a deslocar-vos para o terreno das grandes decisões que alguns pretendem monopolizar em pequenas castas. Assim a democracia atrofia-se, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se desencantando porque deixa de fora o povo na sua luta diária pela dignidade, na construção do seu destino.
   Não estará o Papa a meter-se em seara alheia? Sem qualquer monopólio da verdade, deve pronunciar-se e agir face a «situações nas quais se tocam as chagas e os sofrimentos dramáticos, e nas quais estão envolvidos os valores, a ética, as ciências sociais e a fé».
    Continuaremos no próximo Domingo do Advento.
    Frei Bento Domingues, O.P.
    in Público 04.12.2016



   [1] O meu texto pretende chamar a atenção para o discurso do Papa. Não procura reproduzi-lo. Os recortes e as paráfrases são da minha responsabilidade.
    [2] Mt 14, 27 
     

27 novembro 2016

UMA NOVA REVOLUÇÃO CULTURAL

         1. O Ano litúrgico terminou com a carta apostólica Misericordia et Misera[1], do Papa Francisco, que marca o encerramento do Ano Jubilar da Misericórdia, mas não da misericórdia. Aproveitou para afirmar: “Quero reiterar, com todas as minhas forças, que o aborto é um grave pecado, porque põe fim a uma vida inocente, mas, com igual força, posso e devo afirmar que não existe nenhum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que pede para se reconciliar com o Pai. (…) Para que não exista qualquer obstáculo entre o pedido de reconciliação e o perdão de Deus, concedo a partir de agora, a todos os sacerdotes, em virtude do seu ministério, a faculdade de absolver todas as pessoas que tenham incorrido no pecado do aborto."
É normal que os grandes meios de comunicação tenham realçado esta coroa da misericórdia. Mas Bergoglio procura integrá-la numa perspectiva mais envolvente, destacando acontecimentos, mensagens e figuras que são a própria respiração dos Evangelhos. Se ficasse por aí, continuávamos a olhar para a beleza de há dois mil anos: uma galeria da misericórdia do passado. Se ficássemos, apenas, com as expressões devocionais e sacramentais do Ano Jubilar não saíamos dos espaços e dos ritmos do culto católico. A misericórdia não se exerce apenas, nem sobretudo nas missas, em resposta à carinhosa exortação saudai-vos na paz de Cristo!
2. Nesta carta, Bergoglio assume todas as dimensões do que tem sido a sua intervenção desde que foi eleito Papa, a começar pelo salto que é preciso dar desde a prática de Jesus até aos nossos dias: ”Ainda hoje, populações inteiras padecem de fome e sede. Imagens de crianças que não têm nada para se alimentar percorrem o mundo. Multidões de pessoas continuam a emigrar à procura de alimento, trabalho, casa e paz. As doenças são um permanente motivo de dor e aflição que requerem ajuda, consolação e apoio. Muitas vezes, os estabelecimentos prisionais, além da pena de privação da liberdade, devido às suas condições, são fonte de desumanidade. O analfabetismo ainda é enorme. Impede as crianças de se formarem, expondo-as a novas formas de escravidão. A cultura do individualismo exacerbado, sobretudo no Ocidente, leva a perder o sentido de solidariedade e responsabilidade para com os outros. O próprio Deus continua a ser hoje um desconhecido para muitos; isto constitui a maior pobreza e o maior obstáculo para o reconhecimento da dignidade inviolável da vida humana. Por isso, as obras de misericórdia constituem um evidente valor social. Impelem a arregaçar as mangas para restituir a dignidade a milhões de pessoas que são nossos irmãos e irmãs».
Somos, por isso, chamados a fazer crescer uma cultura de misericórdia, uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando vê o sofrimento dos irmãos. As obras de misericórdia são «artesanais»: nenhuma delas é cópia da outra, são a possibilidade de criar uma verdadeira revolução cultural.
Pelos vistos, o Papa continua fiel às exigências dos seus três tês: terra, trabalho e tecto. São as condições mínimas de respeito pela dignidade das pessoas, mas não só. A sua criatividade simbólica encontra sempre gestos realistas para abrir o futuro. Como ele próprio diz, à luz do «Jubileu das Pessoas Excluídas Socialmente», celebrado quando já se iam fechando as Portas da Misericórdia em todas as catedrais e santuários do mundo, intuí que, como mais um sinal concreto deste Ano Santo extraordinário, se deve celebrar, em toda a Igreja, na ocorrência do XXXIII Domingo do Tempo Comum, o Dia Mundial dos Pobres.
3. Tudo isso e muito mais, que não cabe nesta crónica, foi escrito na Solenidade de um Rei, coroado de espinhos e cruxificado, imagem do mundo, no Ano do Senhor de 2016, quarto do seu pontificado.
O profeta Isaías, a grande figura profética do Advento, lançou um novo desafio ao Papa Francisco: convocar a Igreja, as Igrejas, as outras religiões, os sem religião, os agnósticos e os ateus para acabar com as indústrias da guerra. Diz o profeta: converterão as espadas em relhas de arado e as lanças em foices. Não levantará a espada nação contra nação, nem mais se há-de preparar para a guerra[2].
Nada disto acontecerá só porque se sonhou, nem por qualquer decreto das Nações Unidas. Mas quando se deixar de sonhar, quando se deixar de responsabilizar as Nações Unidas e cada um dos países do mundo, quando se deixar de apelar à conversão das pessoas, de cada um de nós, por se julgar que tudo isto são utopias, é porque já desistimos da humanidade, dos seus pequenos e grandes passos e, os cristãos ter-se-ão perdido de Cristo, nossa Paz, esperança do mundo.
 Começou hoje o Advento, recomeçaram os trabalhos do futuro.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 27.11.2016


[1] As citações e as paráfrases deste documento são da minha escolha e responsabilidade
[2] Is 2, 1-5 

20 novembro 2016

NÃO INVOCAR O NOME DE DEUS EM VÃO

            1. Apesar do Papa Francisco e das suas intervenções carregadas de humanidade divina, o fundamentalismo religioso, mesmo no seio da Igreja católica, não desarma. Panfletos como o da folha dominical de uma paróquia da Califórnia - votar no Partido Democrata é pecado mortal; declarações como a do padre italiano à emissora católica Rádio Maria- os sismos, em Itália, são um castigo divino pelas uniões civis dos homossexuais, ou as expressas à revista Família Cristã pela responsável da Associação de Psicólogos Católicos - um filho homossexual é como ter um filho toxicodependente, são afirmações que não pecam por muito inteligentes. Infelizmente há outras mais tóxicas. Cresce um mal-estar muito vasto não só em relação ao tom e ao conteúdo fundamentalista das homilias dominicais, como acerca das desastradas atitudes no acolhimento aos pedidos de baptismo e de casamento. Em certos casos, em vez de constituírem uma oportunidade de evangelização, resultam em afastamento e azedume contra a Igreja.
Talvez mais perigoso ainda, sob todos os pontos de vista, é o populismo político que tomou proporções alarmantes com a eleição do pobre Trump. Geralmente, há sempre queixas por os eleitos não cumprirem as promessas eleitorais. Neste caso, até os republicanos gostariam que ele não as cumprisse todas. O homem é um susto e a aliança com o Putin faz aquecer a guerra fria. A Europa, que teve momentos de lucidez, já não tem certezas de nada. Tudo pode acontecer.
Com perspectivas diferentes, existe uma curiosa coincidência de desassossego entre os textos de encerramento do ano litúrgico e os textos políticos do Público[1] desta segunda-feira, em que escrevo.
2. Não vou regressar ao meu texto do Domingo passado. Dizem-me que gozei com a exclusão definitiva das mulheres ao sacerdócio, embora pelo baptismo sejam tão sacerdotes como os homens. As minhas razões eram e são de ordem teológica. Não são apenas minhas, que não teriam importância nenhuma. Como diz Edward Schillebeeckx[2], seguindo Tomás de Aquino, não temos nenhum conceito adequado para falar de Deus. A nossa linguagem é e permanece limitada. É uma linguagem terrestre para coisas terrestres.
Deus é inexprimível: nós não sabemos o que é Deus em si mesmo; dele captamos, apenas, um esplendor fraco através do mundo criado e no decurso da nossa história no mundo, história feita de acontecimentos felizes e de tragédias. Não é só o Deus incognoscível, mas também as expressões ou os dogmas sobre Deus que pertencem, à sua maneira, ao objecto da fé. Isto não implica, porém, de modo nenhum, que devam ser tratados em pé de igualdade.
A auto-revelação de Deus é dada em experiências humanas interpretadas. Nunca temos acesso à “Palavra de Deus” de modo imediato. Estritamente falando, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um conjunto de testemunhos de fé de crentes que se situam numa tradição particular da experiência religiosa. É por isso que E. Schillebeeckx, no uso litúrgico, utiliza, o menos possível, a conclusão solene: “palavra do Senhor”, precisamente porque Deus nunca fala assim. São crentes que falam.
Isto significa que, se em todo o dogma uma verdade se exprime de facto, fá-lo, no entanto, sempre de modo defeituoso e historicamente condicionado. Enquanto expressão verbal da fé, o dogma pode mudar no decurso do tempo. A partir das nossas questões, a fidelidade ao Evangelho e aos dogmas da Igreja pode, por vezes, exigir de nós romper com a imagem ultrapassada do ser humano e do mundo, na qual a verdade evangélica foi outrora expressa.
Há aí uma missão importante de diálogo no seio do cristianismo, missão que constitui uma missão própria para os teólogos. O que nos é transmitido a partir do Antigo e do Novo Testamento são interpretações de experiências de Deus. Ora, experiências não podem ser comunicadas a outros enquanto experiência. Cada geração deve, ela mesma e de modo pessoal, fazer a experiência. A experiência cristã de Deus também não pode ser transmitida. Podemos apenas permitir que essas expressões e descrições se abram, em nós, como experiência pessoal. Só a partir do ponto de falhanço de todas as nossas palavras é que podemos falar do mistério divino. Mas nessa palavra, decifração rigorosa e tacteio razoável no seio das possibilidades culturais de compreensão, o Deus vivo já “se dirigiu” silenciosamente a nós, antes mesmo de termos podido exprimir a nossa experiência. São experiências humanas que são, no entanto, realmente suscitadas pelo Deus incompreensível, esse Deus activo, embora não intervenha nem se imponha.
3. E. Schillebeeckx, neste texto, como em várias das suas obras, diz as razões pelas quais um dogma pode mudar. A sua expressão já não serve para defender o que estava em causa quando foi formulado. Mas se um dogma pode mudar, quanto mais uma declaração que só é definitiva porque foi declarada como tal, mesmo que pretenda interpretar uma tradição secular.
Em qualquer caso, não podemos usar o nome de Deus em vão como legitimação das afirmações, frutos da nossa responsabilidade ou irresponsabilidade.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 20.11.2016



[1] Público 14.11.2016
[2] A Identidade Cristã: Desafio e Desafiada, in Deus no século XXI e o futuro do cristianismo (coor. Anselmo Borges), Campo das Letras, 2007, pp 409-411. O texto de E. Schillebeeckx interpreta duas referências fundamentais da Summa Theologiae, I. q. 1. a 7. ad 1; II-II. q. 1. a. 2, c. São da minha responsabilidade os recortes, as divisões e a pontuação das transcrições do texto de E. Schillebeeckx, para facilitar a sua leitura.