27 março 2016

SERÁ POSSÍVEL RESSUSCITAR A EUROPA?


1. Não tenho nenhuma competência para me juntar à torrente de discursos sobre os modos de enfrentar os actuais movimentos terroristas, quer nos seus desígnios globais, quer europeus. Destaco a lucidez do Editorial do PÚBLICO[i]: Enquanto se financiar sem limites, o terrorismo continuará a matar. É preciso secar-lhe as raízes.

É sempre possível dizer que as raízes do terrorismo não são financeiras e que o dinheiro, sempre à disposição, é apenas um recurso instrumental. Seja como for, as discussões sobre as suas raízes metafísicas, sociais, éticas e religiosas não podem servir para esquecer a urgência em lhe cortar as bases e os percursos financeiros. Haverá vontade firme de executar esta operação, quando os bem conhecidos circuitos do comércio de armas e de seres humanos continuam, ano após ano, à solta, a crescer e a matar?

Existe, na Arábia Saudita, um campo de Tendas espantosamente bem equipadas para 3 milhões de pessoas, utilizadas apenas durante 5 dias por ano, na peregrinação a Meca. Não é nenhum santuário. É uma residência. Pergunta-se: não deveriam os muçulmanos de todo o mundo serem interpelados pelo escândalo humano e religioso de verem os seus irmãos na fé terem de fugir para países pagãos, em condições miseráveis, com a morte por companhia? Que interesses estará esta situação a esconder? Poderá Alá estar de acordo com este comportamento da Arábia Saudita e satélites?

Não digo que a indignação e as condenações dos atentados em Paris e em Bruxelas não sejam profundamente sinceras, aliás como as condolências que chegaram de todo o lado. Pergunta inevitável: terá finalmente a Europa acordado e entendido o sentido do que lhe está a acontecer?

2. Quando o Papa Francisco visitou Lampedusa, transformada num cemitério de vivos e mortos, resumiu tudo numa só palavra: vergonha! Poucos se importaram. Os interesses em jogo não podem dar ouvidos a uma sotaina argentina. Quando, diante das matanças dos cristãos, no Médio Oriente, declarou aos jornalistas que era preciso suster aquele avanço do crime, foi logo sussurrado o comentário: diz isso só para salvar a pele dos cristãos e, afinal, nem é tão pacifista como parece.

 Agora, a Europa, a braços com os refugiados e agredida até à morte pelo terrorismo, desencanta especialistas em ciência da religiões por todo o lado, mas recusa reanimar o projecto europeu que ainda a poderia salvar. Podem fazer as coisas mais sensatas e sofisticadas em termos de segurança. Podem e devem atacar as fontes económicas que alimentam a demência terrorista a nível mundial! Mas sem fazer da Europa, e não só, uma zona de paz e desenvolvimento inclusivista, pouco adiantam tantas lágrimas.

3. Uso o termo reanimar e não ressuscitar, por escrúpulos teológicos. No Novo Testamento (NT) temos narrativas de “reanimação” de cadáveres, como, por exemplo, a de Lázaro. Temos outras de encontro com Cristo Ressuscitado, mas não há ninguém a dizer que tinha visto Jesus a sair do túmulo.  

S. Paulo foi muito enfático sobre o evangelho que anunciou aos Coríntios: «Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas[ii] e depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos só de uma vez, a maioria dos quais ainda vive, enquanto alguns já adormeceram. Posteriormente, apareceu a Tiago e, depois, a todos os apóstolos. Em último lugar, também me apareceu a mim, o abortivo. Pois sou o menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus[iii].

Como dizíamos, nenhuma destas testemunhas afirma que viu Cristo a ressuscitar.

Aqueles que pensavam que o percurso de Jesus tinha sido sepultado para sempre, testemunharam que ele se tornou a vida das suas vidas, que ressuscitou neles uma esperança invencível, que tinham de continuar com Cristo um projecto que não pode morrer. A evidência empírica da morte não é a última palavra sobre a aventura humana. 

Se em Deus vivemos, nos movemos e existimos, se a nossa vida está no coração de Deus, esconde-se na nossa existência terrena o mistério que, apenas, a fé na ressurreição nos pode revelar.

A apologia que S. Paulo faz da fé na ressurreição dos mortos não tem nada a ver com uma atitude fideísta, um eclipse da razão, hoje muito frequente: quem acredita, acredita; quem não acredita, não acredita e pronto. A fé é uma graça e eu não recebi essa graça.

Mas assim o que resta? Uma confissão niilista acerca da vida humana. Faça-se o que se fizer, aconteça o que acontecer, a última palavra é a morte. O resto é só para entreter os que tiverem sorte. Por alguns anos.

S. Paulo julga esta posição miserável, pois não vence a morte. Ele acredita na ressurreição, que não é na reanimação de um cadáver, um regresso ao mesmo.

Os cristãos europeus, mulheres e homens, jovens e adultos não podem fingir que é possível reanimar o projecto europeu. Seria investir num caminho que já não leva a lado nenhum.

O que importa é a ressurreição da Europa. Como? Veremos

Frei Bento Domingues, O.P.

in Público 27.03.2016



[i] 24.03. 2016
[ii] Simão Pedro
[iii] 1Cor 15, 3-13

20 março 2016

A PÁSCOA DO ESCRAVO

 
1. Graças a Deus, há sempre algum amigo que se julga encarregado de me chamar à “realidade”. Convidado para umas mini férias na Semana Santa, observei que, para mim, não era a melhor altura. O amigo não me largou sem uma viagem pela sua visão do mundo, em forma de sermão, que passo a resumir: isto já não vai com cerimónias, nem com as da Páscoa, nem com as outras. Estamos cercados de guerras por todos os lados e sem qualquer proposta para enfrentar a desordem mundial em que estamos mergulhados. A paixão pela dominação económica e financeira não recua diante de nada. O apelo aos direitos humanos tornou-se uma invocação de rotina.
A chamada UE já não sabe para que nasceu. A promovida divisão entre a Europa rica e a Europa pobre - divisão reproduzida também dentro de cada país – fabricou a burocracia que esvaziou o seu desígnio primeiro. Esquecida da responsabilidade solidária, parece que nenhuma refundação a poderá salvar. Continuaremos na dúvida se vale a pena discutir a dívida.
Por outro lado, com a recusa, ao longo do tempo, em resolver o conflito israelo-palestino, sucederam-se, no Médio Oriente, loucas intervenções norte-americanas e europeias. O Ocidente, de alma vazia, confrontado com as estratégias terroristas de poder político-religioso (daesh), discute na Europa, a partilha dos refugiados. Nos Estados Unidos e no norte europeu crescem os desejos de muralhas salvadoras.
Agradeci este rápido percurso. Observei que, perante ameaças de guerra ou de catástrofes, nunca há dinheiro para as soluções razoáveis e baratas. Surgem sempre financiadores da estupidez desumanizante e nunca faltarão propostas de negócio depois do desastre. O sofrimento humano não conta e os mortos não se queixam.
2. Ao contrário do que pensa este amigo, não existem apenas celebrações vazias, onde não acontece nada, que se esgotam na encenação do seu teatro mais ou menos cuidado. Não é decisivo saber se tudo se passou, do ponto de vista histórico, como vem narrada, nos Evangelhos, a Paixão de Jesus Cristo.
 Recorde-se que, no povo judeu palestino, desde os finais do séc. I a. C até ao séc. II d. C., surgiram diversos movimentos libertadores, directamente políticos ou proféticos. Eram, por isso, variadas as figuras messiânicas: chefe político libertador, em geral de ascendência de David; um profeta proclamando a vontade de Deus e actuando com sinais específicos ou, ainda, a de sacerdote à frente da nova e definitiva comunidade teocrática, com Deus como único soberano.
Segundo as circunstâncias e no meio de tantas propostas polémicas, é normal que os judeus que reconheceram em Jesus de Nazaré o Messias tivessem o cuidado de reconfigurar a originalidade de Jesus como Cristo, como Messias[i].
A celebração da Eucaristia estava enquadrada numa nova forma de entender e praticar a vida cristã, nas suas diferentes comunidades, como se pode ver na narrativa dos Discípulos de Emaús[ii].
Não era apenas, nem sobretudo, a reprodução de uma cerimónia estereotipada. S. Paulo, que apresenta a narrativa mais completa da Ceia do Senhor[iii], fez também o protesto mais acutilante contra a prática de descriminação social na celebração da Eucaristia, que ele próprio recebeu e transmitiu à comunidade de Corinto.
As comunidades joaninas celebravam, como todas as outras, a Ceia do Senhor em termos muito próximos da narrativa transmitida por S. Paulo. No entanto, no 4º Evangelho, a Ceia termina com o gesto que exprime a transformação que a Eucaristia semanal deve produzir nos seus participantes: a prontidão para o serviço[iv]. Quando se diz: fazei isto em memória de Mim, com o Lava-pés afirma-se que a memória da Igreja terá de ser, no futuro, a reinvenção desta prática e não apenas uma colecção de ritos. Daí a discussão com Pedro, que não estava a gostar nada do programa incluído no gesto despropositado do Mestre. Ao referir apenas o Lava-pés dos discípulos, enuncia-se a lei geral do Cristianismo: a árvore conhece-se pelos frutos.
3. Diz-se que o Papa alterou o ritual da 5ª feira Santa: as mulheres já podem ser incluídas na cerimónia do lava-pés. É uma forma miserável de anestesiar e reduzir o sentido da intervenção do Papa. A alteração que o seu gesto visa provocar não é de tipo ritual, mas de acção transformadora. Pertence ao seu programa de ver o mundo a partir dos excluídos. Levar o centro às periferias.
O Papa Francisco compreendeu que era preciso pôr a Igreja a mexer, como Maria Julieta Mendes Dias e António Marujo intitularam o 4º volume da selecção das minhas crónicas[v], cuja realização só tem sido possível pela sua grande competência e extraordinária dedicação. Recolheram muitos anos da hospitalidade do Público e de esforço empenhado de Guilhermina Gomes.
O gesto chocante de Jesus, próprio de um escravo, tinha sido neutralizado pelo ritual. O Papa Francisco restituiu-lhe a força de interpelação. Ao questionar a sua solenidade aos pés de gente, aparentemente, pouco recomendável, fez dele a bússola da Igreja.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 20.03.2016


[i] Senén Vidal, Evagelio y cartas de Juan, Mensajero, Bilbao, 2013;  Daniel Boyarin Le Christ juif, Cerf, 2007; Cadernos ISTA, Messianismo: ontem e hoje, nº 14, 2002
[ii] Lc 24, 13-35
[iii] 1Cor. 11,17-29 
[iv] Jo. 13
[v] Frei Bento Domingues, O.P., Francisco o Papa que põe a Igreja a mexer, Temas e Debates, 2016


13 março 2016

O GOSTO PERVERSO DE ACUSAR


        1. Bergoglio, desde que foi nomeado bispo de Buenos Aires, empenhou-se em transfigurar, a partir da sua prática, o imaginário religioso do confessionário. Viu que era preciso fazer dos lugares de tortura psicológica e moral espaços e tempos de festa, mediante a manifestação da misericórdia infinita de Deus no comportamento dos confessores.

      O sacramento de reconciliação tem e teve muitos nomes, até o de “tribunal”. Numa aula de teologia dos Sacramentos, um estudante, ao ouvir tal designação, exclamou: só podia ser um tribunal fascista! Para o Papa Francisco, o confessionário tornou-se um dos lugares da prática mais profunda da sua teologia da libertação e da sua actuação pastoral.

       No passado dia 9 de Fevereiro, na celebração da Eucaristia, rodeado de franciscanos Capuchinhos, disse-lhes directamente: “a vossa tradição é a do perdão, oferecer o perdão”. Só aquele que se sente pecador pode ser um grande perdoador no confessionário. Os que se julgam puros e mestres sabem apenas condenar.

      O argentino universalizou depois, de modo coloquial, a sua exortação[i]: “Falo-vos como irmão e, em vós, gostaria de falar a todos os confessores, especialmente neste Ano da Misericórdia: o confessionário existe para perdoar. Se tu não puderes dar a absolvição – admito esta hipótese – «não maltrates!» A pessoa procura conforto, perdão, paz na sua alma; quer encontrar um sacerdote que a abrace, lhe diga e lhe faça sentir: «Deus ama-te!» Lamento ter de o dizer, mas quantas pessoas se queixam – creio que a maioria de nós já terá ouvido esta observação: «nunca me vou confessar porque certa vez me perguntaram, fizeram-me isto e aquilo …» Por favor! “

       Finalmente, com humor carinhoso, apresentou o exemplo de um grande perdoador capuchinho que ele conheceu. Tinha sempre pessoas em fila de espera para se confessarem. “Uma vez, ao visitá-lo, disse-me: Tu és bispo e podes esclarecer-me: eu penso que peco porque perdoo demais; ando com este escrúpulo, mas encontro sempre o modo de perdoar”. Que fazes, perguntou-lhe Bergoglio, quando te sentes assim? “Olha, vou à capela e, diante do tabernáculo, digo: desculpa-me, Senhor, perdoa-me, penso que hoje perdoei demais. Mas, foste tu, Senhor, quem me deu este mau exemplo”.

        2. O Sumo Pontífice aproveitou a ocasião para tornar o seu discurso ainda mais abrangente: “Existem outras linguagens na vida. Não há apenas a palavra. Temos também os gestos. Se uma pessoa se aproxima de mim, no confessionário, é porque sente algo que lhe pesa, do qual deseja libertar-se. Talvez não saiba como dizer, mas o gesto fala. Se esta pessoa se aproxima, é porque gostaria de mudar, deixar de fazer isto ou aquilo, de se transformar, ser pessoa de outra maneira. Isto é dito através deste gesto de aproximação. Não é preciso fazer perguntas do género: mas tu ?... Se alguém se aproxima é porque na sua alma quer mudar. Mas muitas vezes está condicionada pela sua psicologia, pela sua vida, pela sua situação… Ad impossibilia nemo tenetur (ninguém é obrigado a coisas impossíveis).

Com esta peça de antologia, Francisco desautorizou séculos de práticas de opressão pseudo-religiosa. No entanto, o que o preocupa é o presente e o futuro. Encerrou a sua homilia com uma exortação cheia de afecto responsabilizante: O perdão é uma carícia de Deus. Na Bíblia, o grande acusador é o diabo ou os que o imitam, os que têm gosto em acusar, como os escribas e os fariseus.

3. A cena evangélica deste domingo é muito conhecida e vai na mesma direcção. Levaram a Jesus, para lhe armarem uma cilada, uma mulher surpreendida em flagrante adultério[ii]. O texto não está muito preocupado com questões jurídicas concretas a esse respeito[iii]. O que lhe interessa é mostrar Jesus a desmascarar as pessoas que se julgam santas, cumpridoras exemplares das leis religiosas e que andam sempre à procura de poderem acusar alguém, no caso, escribas e fariseus. Hoje, ainda existem muitas sociedades que usam os mesmos bárbaros processos. Importa encontrar os meios adequados para varrer da face da terra essa vergonha.

A preocupação de Jesus era, pelo contrário, desmascarar a hipocrisia desses acusadores, prontos a matá-la à pedrada. Jesus escreve na areia com um desprezo infinito por aquele zelo bíblico. Desarma os atiradores com uma simples observação: Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Remédio eficaz: puseram-se todos a andar a começar pelos mais velhos.

Nas sociedades ocidentais, esta prática desarmada por Jesus já não é a mais comum. Em questões de sexo, vale tudo ou quase, embora o voyeuirismo ainda alimente alguns meios de comunicação social. Mas o gosto perverso de acusar, de encontrar alguém em falta, dentro e fora das religiões, nos espaços sagrados ou profanos, diz-nos que os fariseus e os escribas ainda não são uma espécie em extinção. Quem dera! Mas ainda persiste o gosto de novas formas de apedrejar “suspeitos” em praça pública.

       
 

[i] Cf. L’Osservatore Romano semanal (11.02.2016). A tradução, mesmo com arranjos, é sempre má. Os itálicos e as deslocações das aspas são da minha responsabilidade.
[ii] Jo 8, 1-11.
[iii] Cf. Deuteronómio 22, 13-29
         Frei Bento Domingues, O.P.
        in Público 13. 03. 2016
 
 
 
 

06 março 2016

UM CONTADOR DE HISTÓRIAS SUBVERSIVAS


1. Segundo os evangelhos sinópticos[i], Jesus não deu nenhum contributo para o avanço das ciências, nem revelou um grande pendor metafísico, embora não faltem investigadores que, hoje, o reconheçam como um filósofo.

O facto é que não deixou nada escrito. A sua breve intervenção pública acabou num fracasso tão vergonhoso, que ninguém poderia descobrir alí qualquer caminho de futuro. Aconteceu que os seus seguidores, depois de várias crises, não recalcaram a sua memória. Alguns judeus continuaram a ver, naquele carpinteiro de Nazaré, o messias esperado; outros recusaram-no, o que nada tem de surpreendente. Passados dois mil anos, Daniel Boyarin, conhecido especialista do Talmude, observa que se há alguma coisa que os cristãos sabem bem a propósito da sua religião é que ela não é o Judaísmo. Se há alguma coisa que os judeus sabem bem a propósito da sua religião é que ela não é o cristianismo. Segundo esse professor de Berkeley, reexaminando as suas fronteiras, nem sempre foi assim nem tem que continuar assim[ii]. Mais ainda: certos judeus que o tinham considerado um traidor, como aconteceu com Paulo de Tarso, acabaram por descobrir que Jesus era e é o Cristo de uma dimensão tal que não cabia nos horizontes de um só povo. As suas cartas são reconhecidas como os primeiros escritos cristãos. São textos de interpretação da significação de Jesus Cristo nas experiências de transformação da vida das comunidades cristãs.

 Nas famosas Epístolas paulinas, o Jesus pregador da vinda do Reino de Deus reaparece como Cristo pregado, esperança da ressurreição e fonte divina de salvação universal, cósmica.

Os fogosos escritos de S. Paulo, deslumbrados pela fé no Ressuscitado, não apagaram, no entanto, a memória “histórica” de Jesus.

Dispomos de quatro narrativas, com objectivos, origens e estilos diferentes, mas com o mesmo assunto: Jesus de Nazaré, o amado de Deus cravado na Cruz e que a morte não pode conter. Os três Evangelhos sinópticos insistem em Jesus pregador da proximidade do Reino de Deus. Gosto de ler esses textos imaginando Jesus a contar histórias e a participar em acontecimentos subversivos. 

Os historiadores preocupam-se em destrinçar o que se pode dizer de Jesus observando o método histórico e o que deve ser atribuído às reconstruções feitas a partir da fé das comunidades cristãs. Os textos dos Evangelhos testemunham de Jesus Cristo vivido nas antigas e novas experiências humanas das comunidades. Não cortam nem com a história nem com a realidade presente. As Escrituras crescem com os seus leitores. O real não é só o comprovadamente histórico.

Quando os pregadores repetem as leituras bíblicas da missa, atraiçoam a sua missão. Não fazem a ponte - nem pedem para ser ajudados a fazer essa ponte - entre o passado e a nossa actualidade tão complexa.

2. Neste Domingo, é proclamada a parábola do Filho Pródigo[iii]. Espero que nenhum pregador a vá apresentar como uma boa prática a recomendar aos pais e educadores. Seria um desastre. Compensar e festejar os mais mal comportados!? Mas não há nada como ler essa bela narrativa de um filho estroina, um pai que perde a cabeça e do filho ajuizado, completamente indignado.

A linguagem das parábolas não é a dos catecismos nem a dos manuais de boas maneiras. Destina-se, no caso dos Evangelhos, a subverter as representações que temos de Deus e da religião. A nossa tendência é fazer um Deus à imagem dos nossos interesses. O que as parábolas dizem, sem dizer, é que a lógica de Deus é muito diferente da nossa mediocridade e justiça mesquinha.

A parábola não ensina, dá que pensar. Liberta a imaginação. Não nos deixa acorrentados às religiões que herdámos. A fé cristã, ao proclamar, na Eucaristia dominical, a parábola do Filho Pródigo vem dizer: não estraguem o Domingo! É a festa das pessoas em processo de transformação. A Eucaristia - o Papa Francisco tem insistido muito neste ponto - não é um prémio, uma recompensa para os bem-comportados, segundo um código de moral convencional. É um convite para a festa, para a festa de Deus revelada nos gestos e nas palavras de Jesus.

3. Segundo os Evangelhos, o Mestre revelou-se um grande contador de histórias subversivas ou consoladoras. Reconstruidas segundo o que era importante para as comunidades, comunidades criativas, fiéis, mas não herdeiras da repetição.

Agora, quem conta histórias na missa? Quando é que se reúnem os participantes, por grupos, para seleccionar, em correlação com os Evangelhos, as histórias mais significativas e mais interpelantes, no coração da nossa história?

Os cristãos juntam-se para um jantar de festa. Não é para dizer que está tudo bem, pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até ao presente[iv], mas é por causa da alegria que vivemos e lutamos para que ela seja completa[v].

Frei Bento Domingues O.P.


[i] Mateus, Marcos e Lucas
[ii] Le Christ Juif, Cerf, Paris, 2013 p.13
[iii] Lc 15, 11-32 faz parte das chamadas Parábolas da Misericórdia
[iv] Rom. 8, 22
[v] Jo. 15, 11; 1 Jo 1, 4
 
in Público 06.03.2016
 

ESTA QUARESMA COMEÇOU BEM (2)

1. Há 25 anos, a convite do Centro Bartolomé de Las Casas, de Cusco, participei num congresso internacional sobre modelos de Inculturação e Modernidade, realizado na cidade do México. Samuel Ruiz Garcia, bispo de San Cristobal de las Casas, estava hospedado no convento dominicano onde também eu tinha sido fraternalmente acolhido. Pude conversar longamente com esta figura do catolicismo mexicano que, na altura, já andava nas bocas do mundo, vigiado pelo Governo e pelo Vaticano. Contou-me que tinha sido um padre muito conservador. O contacto com a vida terrível e humilhada dos índios de Chiapas, a participação no Vaticano II e na conferência de Medellin (Colômbia), mostraram-lhe que o caminho do catolicismo era o da incarnação nas culturas nativas. Daí brotou a teologia indigenista que se prolongou na teologia da libertação.

Participei, então, com representações de várias dioceses, numa fervorosa romagem ao Santuário da Virgem de Guadalupe, presidida pelo referido bispo, de protesto contra a prisão de um padre responsável pela nova orientação pastoral indigenista[i].

Voltei a encontrar o bispo Samuel no meio do seu povo, onde se anunciava a guerra na qual ele desempenhou um papel de mediador, evitando um genocídio. Gostei de ver o Papa Francisco a rezar junto ao seu túmulo.

2. Na visita pastoral ao México, o Papa foi extremamente duro com os exploradores da população pobre, sobretudo com os narcotraficantes. Mas ao fazer o balanço da viagem com os jornalistas, foi enfático: Quero dizer uma coisa, uma coisa justa, sobre o povo mexicano. Tem uma cultura… milenária. Sabeis que hoje, no México, se falam 65 línguas, contando as indígenas? É um povo duma grande fé, também sofreu perseguições religiosas, existem mártires: irei canonizar dois ou três.

(…) O «povo» não é uma categoria lógica; é uma categoria mística. Como conseguiu este povo não falir, com tantas guerras? E as coisas que sucedem agora... Um povo que ainda tem esta vitalidade só se explica por Guadalupe.

No primeiro dia, o destaque foi para o encontro com o episcopado. Perante os graves problemas que este tem de enfrentar, o Papa lembrou que era preciso um olhar que reflectisse a ternura de Deus. Por isso, sede bispos de olhar límpido, alma transparente, rosto luminoso; não tenhais medo da transparência. A Igreja não precisa da obscuridade para trabalhar. Vigiai para que os vossos olhares não se cubram com as penumbras da névoa do mundanismo; não vos deixeis corromper pelo vulgar materialismo nem pelas ilusões sedutoras dos acordos feitos por baixo da mesa; não ponhais a vossa confiança nos «carros e cavalos» dos faraós de hoje, porque a nossa força é a «coluna de fogo» que irrompe separando em duas as águas do mar, sem fazer grande rumor[ii].

O Papa observou que a hibridação irreversível da tecnologia aproxima o que está afastado, mas, infelizmente, torna distante o que deveria estar perto.

Por isso, nos vossos olhares, o povo mexicano tem o direito de encontrar os indícios de quem «viu o Senhor». Isto é o essencial. Assim, não percais tempo e energias nas coisas secundárias, nas críticas e intrigas, em projectos vãos de carreira, em planos vazios de hegemonia, nos clubes estéreis de interesses ou compadrios. Não vos deixeis paralisar pelas murmurações e maledicências. Introduzi os vossos sacerdotes nesta compreensão do ministério sagrado. A nós, ministros de Deus, basta a graça de «beber o cálice do Senhor», o dom de guardar a parte da sua herança que nos foi confiada, apesar de sermos administradores inexperientes. Deixemos o Pai atribuir-nos o lugar que preparou para nós[iii]. Poderemos nós ocupar-nos verdadeiramente doutras coisas que não sejam as do Pai? Fora das «coisas do Pai[iv]» perdemos a nossa identidade e, culpavelmente, tornamos vã a sua graça.

Se o nosso olhar não dá testemunho de ter visto Jesus, então as palavras que recordamos d’Ele não passam de figuras retóricas vazias. Talvez expressem a nostalgia daqueles que não podem esquecer o Senhor, mas, em todo o caso, são apenas o balbuciar de órfãos junto do sepulcro. No fim de contas, são palavras incapazes de impedir que o mundo fique abandonado e reduzido ao próprio poder desesperado.

3. Peço-vos que não subestimeis o desafio ético e anticívico que o narcotráfico representa para a juventude e para a sociedade mexicana inteira, incluindo a Igreja.

(…) Qual é a tentação que nos pode vir de ambientes dominados pela violência, a corrupção, o tráfico de drogas, o desprezo pela dignidade da pessoa, a indiferença perante o sofrimento e a precariedade? Qual é a tentação que repetidamente podemos ter nós, os chamados à vida consagrada, ao presbiterado, ao episcopado?

Acho que a poderemos resumir numa só palavra: resignação. À vista desta realidade, pode vencer-nos uma das armas preferidas do demónio: a resignação que nos entrincheira nas nossas «sacristias» e seguranças aparentes e nos trava na hora de arriscar e transformar.

Pai Nosso, não nos deixeis cair em tentação.

Esta Quaresma ainda não terminou.

Frei Bento Domingues, O.P.

Público, 28.02.2016

[i] Cf. Frei Bento Domingues, O.P. A Igreja e a Liberdade, Mário Figueirinhas, Porto,1997, 120-123
[ii] Mt 20, 20-28
[iii] Lc 2, 48-49