30 novembro 2011

Entre a Dor e o Riso


Tempos Interiores de Mudança

O meu tempo do Advento chega-me sempre antes do domingo marcado no calendário litúrgico. É assim desde que comecei a tomar consciência do burburinho interior que em certos momentos nos faz pensar na nossa própria condição, recordando as perdas e adversidades, os sucessos, as horas de júbilo que fazem da nossa vida uma festa. No dia de Todos os Santos, 1 de Novembro, sempre me vem uma onda de emoção que disfarço dos outros, a revolver o mais fundo de mim. Simplesmente e sem nenhuma possível interpretação teológica, o Sermão da Montanha, em palavras de dor e compaixão rematadas na certeza da esperança, é o sinal do Advento em mim.  
E nestes dias sombrios de Novembro, naveguei à procura de mais palavras de alento, ditas por quem experimentou as peripécias da grande história humana. Fui reler o Livro de Job, porque em momentos difíceis me anima a história do sofrimento rematada pelo regresso da felicidade, na entrega da fé. Passei pelo Salmo 107: “Na sua aflição clamaram a Iavé, e ele libertou-os das suas angústias. Ele transformou a tempestade em leve brisa e as ondas emudeceram. Ficaram alegres com a bonança e ele guiou-os ao porto desejado.” Guardei o fragmento do Profeta Isaías, sobre a paz recuperada: “Os resgatados de Javé voltarão! estarão de volta a Sião cantando e com a cabeça coroada de uma alegria sem fim, serão acompanhados de dor e contentamento, dor e aflição ficarão para trás” (51-11)
Com a Alice Vieira, tínhamos sido desafiadas a pensar em voz alta (gosto mais do que de conferenciar) sobre Tempos Interiores de Mudança, Entre a Dor e o Riso, no Mosteiro das Monjas Dominicanas do Lumiar. Sala cheia e nós decididas a soltar o coração, como se andássemos com aquelas e aqueles de mãos dadas, pelas ruas da cidade. Falámos de casos e de gente, de amor por quem se cruza connosco, de solidões que um gesto, uma palavra, um carinho, podem aliviar. Lendo este Domingo a crónica do Frei Bento Domingues no Público, sei que nós somos Igreja quando nos empolgamos na concreta ação de todos os dias. Dessa ação falámos, cristãs a tempo inteiro, mulheres em política, como o Frei nos diz que devemos ser.        
E remato com uma historinha verdadeira, a colorir os tempos que vivemos: O João, filho da minha amiga Ana, deu 50 cêntimos a um pobre, antes de tomar o comboio do Porto para Lisboa. Quando foi pagar um café faltavam-lhe 15 cêntimos. Voltou ao pé do pobre e pediu-lhe – ó pá, empresta-me aí 15 cêntimos.  O pobre, encantado por alguém lhe pedir 15 cêntimos, levou a mão ao bolso – eh pá toma lá 50, que te podem fazer falta.
A alegria de dar e receber, num dia qualquer.

Leonor Xavier 29 Novembro 2011

26 novembro 2011

“Cantar é rezar duas vezes!”


Se “cantar é rezar duas vezes”, como afirma o ditado, é estranho que as pessoas, particularmente os cristãos portugueses, cantem tão pouco.
É verdade que o canto foi praticamente eliminado da escolaridade, substituído quase só pela disciplina de Educação Musical nos 5º e 6º anos. A Arte, de um modo geral é pouco valorizada pelo sistema educativo. Tornou-se cada vez mais objeto de consumo. Vê-se, ouve-se, mas não se faz, não se pratica…
Espetadores da realidade, seja via TV, computador, iPod ou telemóvel, grande parte das pessoas entra em contacto com a música via TIC; consomem música como quem consome outra coisa qualquer. É pena! Uma parte importante dos seus próprios talentos fica por explorar. O canto é um deles.

“Analfabetas musicais”, “duras de ouvido”, “desafinadas”, muitas pessoas assumem-se como tal sem nunca terem tentado seriamente cantar. Dizem-no com tanto desembaraço como se não fosse estranho essa forma de analfabetismo funcional. E pior, parece que se orgulham disso!

Claro que não há muitas ocasiões para cantar, sem ser no douche. As longas viagens de carro com as crianças, em que as familias cantavam em conjunto, passaram a ser bem mais curtas e os rádios, CDs e afins que equipam de origem os automóveis, substituiram essa atividade coletiva que entretinha graúdos e miúdos. Em casa, a televisão ocupou o espaço da velha telefonia. Cantarolar tornou-se assim uma coisa rara. Muito menos ainda se encontra ocasião de cantar.

Restam-nos os cânticos nas celebrações litúrgicas. Ora precisamente aí deveríamos poder encontrar duas dimensões importantes do ato de cantar. Por um lado é um momento de festa e de expressão de alegria (ou o louvor, ou a prece…) na partilha fraterna a que Eucaristia remete. Acontece que a Missa é em muitos lados apenas mais um tempo da folga de domingo e nada mais, de festa não tem nada. O outro aspeto é a dimensão coletiva do cântico religioso, é a comunidade que canta em conjunto, numa só voz, ou seja faz-se a experiência da pertença ao cantar em grupo, em côro, como povo de Deus.

Acontece que muitas vezes os cristãos se demitem de ao menos tentarem cantar em conjunto nas celebrações.
A tradição judaico-cristã situa-nos amplamente nesse caldo de cultura musical que vem bem clara nos Salmos e se desdobra nas variantes culturais em que se expressou históricamente, o que na tradição católica implica incluir o canto gregoriano a par de outras expressões musicais e/ou corais como parte integrante da vivência coletiva da Fé em Igreja.

Não se espera, dado o contexto atual, que em Portugal o povo cristão esteja musicamente desperto para o canto ou intuitivamente o faça, qual coro de Gospel, nem que a qualidade do canto seja fantástica, mas há uns mínimos que deveriam ser expectáveis. Infelizmente estamos ainda longe do desejável.

Hoje em dia os cânticos e os grupos corais das Missas, são muitas vezes um espetáculo de mau gosto lamecha com falta de conteúdos, quer na partitura, quer no poema do texto. (Invocações cantadas do género “Meu Jesus eu amooooooo-Teeee!”...) Outros, por seu lado, não sabem distinguir um Cântico de Entrada de um de Ação de Graças (basta aprender a estrutura da Missa, não é complicado). Algumas paróquias ainda usam o grupo coral como continuação do enquadramento funcional da catequese de jovens. O facto de se ser jovem não implica necessariamente saber orientar musicalmente uma Missa. Tal como o ser idoso e costumar ir à Missa não dá competências musicais particulares às “beatas de serviço” que se esganiçam esforçadamente para alegrar (?) a liturgia.

Felizmente em muitos sítios os cânticos são bem escolhidos, os animadores e/ou grupos corais cumprem a sua função e dão o apoio necessário para toda a gente que possa cantar. Se quiser cantar…
O esforço musical de encontrar as formas musicais liturgicas atuais fáceis de cantar em Igreja, vem-nos em parte significativa da comunidade ecuménica de Taizé. Há aí um potencial a explorar se a opção pastoral for, como deveria ser, de por toda a gente a cantar.

Há ainda a considerar as Missas em que não é suposto o povo cantar. As celebrações com especialistas musicais. Existem para todos os gostos. Com canto gregoriano, com fado, com cânticos  dos séculos XVI e XVII, e por aí fora. Estão muito em voga para casamentos por exemplo.
Nestes casos a qualidade do desempenho musical é altíssima. É um prazer ouvir! Mas de facto está-se a assistir a um concerto de temática liturgica inserido na celebração. Como opção pastoral é legítima mas será realmente adequada? Compreende-se apenas inserida numa mais ampla estratégia musico-pastoral.

Sabemos que a escolha das Missas depende dos gostos e das modas; há as homilias que “estão in” como há os cânticos que estão “in”. Ambos os fatores pesam na escolha das pessoas, além da hora e local da celebração. É um dado de facto e não um juízo de valor.
Como “ na casa do Pai há muitas moradas”, a diversidade de opções é um enriquecimento eclesial.
No entanto, como diz o fado “Se Deus me (nos) deu voz foi p’ra cantar…”
Era bom então que assumissemos esse dom e o soubessemos partilhar…em côro!

Neste tempo de crise, económica e civilizacional, cantar é “de borla”. É um prazer que se tem, que se dá e se recebe e nunca se gasta. Diz a sabedoria popular, além de afirmar que cantando se reza duas vezes, que “Quem canta, seu mal espanta! “ e é verdade!

AFF - 21-11-2011

20 novembro 2011

Cohelete e Nicodemos

Cohelete e Nicodemos são duas personagens bíblicas. O Cohelete não é mulher e o Nicodemos é claramente homem. O primeiro é do antigo testamento, três séculos antes de Cristo; o segundo é do tempo de Jesus e seu simpatizante. Cohelete dá mesmo o nome a um livro que aparece na Bíblia com o título de Eclesiastes. Era um sábio, um pregador, um comentador da vida no mundo e em Deus. Nicodemos era um fariseu, um mestre da lei, um homem do parlamento (Sinédrio).
Cohelete e a gente representada pelo seu livro parecem estar numa posição dentro do judaísmo que talvez tivessem necessidade de dizer: nós também somos judeus. Apresenta-se com algum cepticismo, até mesmo melancolia, descrente do mundo e da vida, apenas com esperança em Deus como aquele que dá sentido ao que parece não ter sentido nenhum. Diz que a vida humana, às vezes, é como andar atrás do vento. É uma espécie de super-realista diante do que observa dos comportamentos humanos e da repetição cíclica de todas as coisas.
Consegue analisar tudo o que pode ser abrangido pelo conhecimento e ver o que está mal, mas não vê formas de os homens serem diferentes. Só mesmo com a força de Deus. Analisa o que torna a vida arrastada, aborrecida e sem alegria e, nesse sentido, sabe o que não quer. Mas não sabe o que fazer ou o que esperar da repetição fastidiosa dos dias e de tudo, em que tanto o homem como o animal parecem destinados ao mesmo: o pó.
Nicodemos conhece Jesus e até simpatiza com ele. Vê que é bonito e feliz aquilo que Jesus faz e diz, mas é de uma exigência que vira tudo do avesso. Por isso vai encontrar-se com ele só de noite. Jesus diz-lhe que ele é um homem que parece querer o que vê, mas para chegar a isso precisa de nascer de novo. Ora aí é que está o problema: ele é fariseu, tem a segurança da lei, a salvação pelo cumprimento das suas obras; é olhado com admiração nas praças, onde estende a mão para dar esmola num gesto largo e vistoso; faz parte do lugar onde se determina a vida das pessoas, onde se decide sobre tudo e todos. Ele e os seus são os judeus. Não precisam de o afirmar e sair dessa posição é complicado. Sabe que para nascer de novo não precisa de entrar no ventre da mãe e sair outra vez nu, mas que tem que se despir de tudo o que é, para começar nu de novo.
Cohelete analisa a vida e o mundo, vê o que o aborrece e por isso vê o que não quer, mas não sabe muito bem por onde ir e o que fazer. Resta-lhe confiar em Deus. Nicodemos analisa tudo isso e compreende o que deveria fazer e por onde ir; mas não é capaz, pesa mais no seu coração e na sua vida tudo aquilo que tem e faz.
Entre Cohelete e Nicodemos, também nós somos Igreja.
                                                                   (Amatop)
Frei Matias, O.P.

11 novembro 2011

Ao contrário de que é tantas vezes dito por autoridades eclesiásticas, constata-se que na Europa, como no resto do Mundo, a religião, a espiritualidade, a transcendência estão muito presentes na vida das pessoas, sendo o cerne dos seus valores e das suas vivências. O Atlas das Religiões e muitas outras investigações assim o comprovam. Em Portugal, uma larga maioria da população revê-se no catolicismo. Ou seja, a secularização não está a alastrar. O que se alterou nos países onde se atingiram maiores índices culturais e sociais, como na Europa e na América do Norte, foi a relação das pessoas com as autoridades que falam em nome do sagrado, que não mais são ouvidas acriticamente, passivamente, obedientemente.
Tal se deve ao aumento dos níveis educativos, à democratização da sociedade, ao empoderamento das mulheres e dos homens, à aspiração a uma justiça terrena. Ao sonho proposto por Jesus de que 'outro mundo é possível.'

05 novembro 2011

Viagem a Espanha

No fim-de-semana passado o colectivo espanhol de grupos católicos Redes Cristianas organizou uma assembleia nacional em Jerez de la Frontera. Participaram várias dezenas de pessoas, de comunidades de base e outros grupos similares, vindos de toda a Espanha. Foram organizadas 14 oficinas, que decorreram no sábado, todas bastante concorridas, e uma celebração, com guião organizado pelos organizadores, no domingo.


Eu participei na reunião a convite da organização, como representante do movimento Nós Somos Igreja - Portugal. Apenas tive tempo de participar na celebração final e na oficina sobre construção de uma igreja plural, organizada pela Corriente Somos Iglesia, onde participaram cerca de 20 pessoas, de diversas partes de Espanha. Todas traziam histórias interessantes de celebrações, reflexões, vida de paróquia organizada “a partir de baixo”, com grande participação da comunidade, quer nos trabalhos quer nos processos de decisão. Houve também muitas referências a movimentos da sociedade civil, nomeadamente ao 15M (15/Maio, movimento ue ocupou a Puerta del Sol).


Foi muito revigorante ver a vitalidade dos grupos católicos espanhóis mais progressistas. Mais surpreendente, porém, foi o que me esperava na Catedral de Sevilha, que visitei depois do fim do encontro. Dentro da própria catedral, e com autorização escrita do arcebispo, estava um grupo de professores “acampados”, com colchões, mantas e tudo o mais que era necessário, lutando pela manutenção de direitos iguais para trabalho igual. 


Várias pessoas, surpreendidas como eu, se aproximavam para conversar com os professores, que expunham a sua situação e pediam apoio, através de um abaixo-assinado. 

Sendo a catedral de Sevilha a terceira maior de todo o Catolicismo, teria sido muito fácil para o arcebispo recusar este acampamento. Foi assim igualmente revigorante ver que, neste caso, os valores defendidos soaram mais alto do que a majestade do lugar.

01 novembro 2011

Bodas de Prata

1. As surpresas nem sempre têm de ser boas. O medo do desconhecido é paralisante em qualquer dimensão da vida. A diferença entre a cultura tradicional e a cultura moderna reside na atitude perante o futuro. Para a cultura tradicional o importante é repetir o passado. Dar futuro ao passado. A cultura moderna caracteriza-se pela confiança na inovação, na criação do diferente, do que nunca existiu.
As duas atitudes têm virtudes e defeitos. A virtude da cultura tradicional é o respeito pelo património legado pelas gerações do passado. O seu vício é o tradicionalismo, a repetição: assim como era no princípio agora e sempre pelos séculos e séculos. No Vaticano II foi muito difícil saber distinguir entre tradição e tradições. Nem tudo o que vem do passado deve ser mantido. Há tradições que são uma traição ao espírito da tradição que é um ponto de partida para o ainda não. Há quem diga que o passado é o que passou. Mas há passado que deve ser transmitido às novas gerações. A triagem entre o que deve ser assumido e o que merece o caixote do lixo, nem sempre é fácil.
A cultura moderna também tem os seus defeitos e virtudes. Nem tudo o que é novo é bom. É fácil cair na superficialidade, na moda pela moda (ou porque está na moda), a chamada cultura descartável nada tem a ver com a inovação de qualidade. Esta é um contributo do inédito, do que vai enriquecer o património da humanidade. Há dimensões da realidade humana que nascem no tempo, mas que ficam para a “eternidade”: uma obra de arte, seja qual for a expressão artística, conserva a sua frescura passados milhares de anos. Há outras realidades que devem desaparecer assim que foram realizadas. São puramente funcionais.
2. A 28 e 29 de Outubro realizou-se a 25ª edição das Jornadas Culturais de Vila das Aves, eram as suas bodas de prata. O tema geral era Cidadania e Cultura. A iniciativa destas Jornadas está ligada à Paróquia de S. Miguel das Aves, que nunca as abandonou e à Câmara Municipal de Sto. Tirso que depois as assumiu, sem rotura com a história paroquial. Este ano, a reflexão ( acompanhada pela Oficina de  Música do Grupo Coral de Vila das Aves) incidiu sobre a cultura como prática cidadã através de dois binómios: Cidadania / Sociedade e Cultura / Religião. Neste sentido, estas Jornadas propunham-se aprofundar as seguintes questões: 1º Quais serão as formas actuais de construção e transformação da sociedade através do exercício da cidadania?, 2º Para responder aos desafios sociais impostos pela crise actual, qual o papel das associações dos grupos e das pessoas?,  3º Por outro lado, quais os efeitos previsíveis do diálogo entre as culturas religiosas e as culturas laicas para uma cidadania assumida, tendo em conta a sua complexidade?.
3. O programa foi realizado dada a eficácia da actuação dos serviços da Câmara, sempre apoiados pelo seu Presidente. A mim coube-me a coordenação à distância. Tive a sorte de obter uma resposta rápida aos convites feitos a: Dr Guilherme Oliveira Martins, Dr. Manuel Pinto, Dra. Teresa Toldy, Dr. Eduardo Duque e Dr. Miguel Oliveira da Silva. 
O meu espanto não veio das excelentes conferências dos diversos painéis. Conhecia as pessoas e previa respostas de muita qualidade. O que me surpreendeu foi o contacto com a história e o balanço que dela fez o Presidente da Câmara: uma aposta na cultura local, mas sem nenhum regionalismo. Pelo contrário, as Jornadas estiveram sempre em diálogo com os grandes tema nacionais e internacionais. Trata-se de uma zona industrial afectada, desde há muito, pelas transformações que afectaram a própria indústria têxtil. Se é uma desolação olhar para fábricas enormes que trabalhavam ininterruptamente, ver agora, muitas delas, abandonadas, de vidros partidos, também é encorajador ver as transformações que foi possível realizar para que este passado recente não fosse apenas um desastre. Agora, com o desemprego sem perspectivas vai ser mais difícil. Neste contexto a aposta em várias vertentes culturais não deixará de ter boas consequências em termos económicos e sociais. Vila das Aves e as suas gentes estão mesmo de parabéns.

Frei Bento Domingues
2011.11.01