27 maio 2012

Absoluto Mistério e uma Fala na Cidade

Alguém me fala de outro alguém, numa esquina da cidade, em casual conversa. Esse outro alguém, uma rapariga que eu não conheço, é-me descrita como muito aberta de espírito, apreciadora de prazeres carnais e comerciais, “apesar de” pertencer à Opus Dei. O tom da conversa não é religioso, mas absolutamente laico. Espera-se de mim que reaja com crítica ao alinhamento conservador, eu que sou uma heterodoxa em relação a regras estabelecidas ou uma rebelde em matéria de obediência e que costumo ter o coração ao pé da boca, em matéria de opinião. Mais uma vez invoco as muitas moradas da casa de Deus e digo que há os conservadores e os progressistas, os tradicionais e os reformistas, enquanto elogio o bom gosto dos gostos da rapariga, que assim demonstra continuar viva de corpo e alma, em vez de se deixar ficar reclusa numa jaula de preconceitos, proibições, pecados possíveis, como se poderia esperar. Nesta altura em que o espaço da rua oferece casuais encontros, e cada vez menos se convive no espaço da casa por convite formal, a cidade obriga-nos ao reencontrar casual, ao sorriso do cumprimento, às frases de circunstância que, afinal, nos fazem perceber os outros e nos levam a pensar sobre o mundo, naqueles passos de solitária caminhada, em que o espírito corre à solta sem se deixar parar.
Chego a casa sem esquecer a conversa e muito, muito teria que dissertar ou escrever sobre o que me passou pela cabeça. Corro às minhas mais recentes leituras de sábios e pensadores e académicos sobre ser católico e cristão, sobre a Igreja, sobre a vivência religiosa e a espiritualidade, sobre a desumanização, sobre o fanatismo religioso, sobre a intolerância, sobre os medos deste tempo que vivemos. A leitura estimula a concentração, a imaginação, acorda o entendimento. Para responder a muitas perguntas (Que pertença é a minha? Que fidelidade, que cumprimento? Que caridade sendo amor, que compaixão? Como, a tempo inteiro?) – descubro então a fórmula de José Mattoso, professor catedrático jubilado, especialista em Idade Média, autor da coletânea de ensaios “Levantar o Céu - Os Labirintos da Sabedoria”(ed. Temas e debates/Círculo de Leitores), que viveu anos de experiência monástica. Em comentário sobre os resultados da sondagem sobre Identidades Religiosas, a propósito da diminuição de católicos e do aumento de grupos religiosos diversos em Portugal, em entrevista a António Marujo no Público, diz: “Que estratégia a Igreja deveria seguir para não perder o lugar que chegou a alcançar? Penso que é sobretudo na vivência do evangelho na autenticidade da vida cristã.” Vou a seguir recortar a opinião de Alfredo Teixeira, sociólogo, coordenador desta mesma Sondagem, sobre a transformação das sociedades cristãs. Este fenómeno “não é o da não-crença, é o da reconstrução individual do religioso,” diz também ao jornalista António Marujo, usando a sua expressão científica para explicar que “a experiência, as crenças, os símbolos deixam de estar amarrados a um determinado contexto institucional e comunitário e passam a ser recompostos a partir da experiência individual.” Continuo a desfiar as minhas perplexidades e, no pensamento do Professor José Mattoso, encontro a flexibilidade das diferenças: “As ideologias traçam uma série de regras e se as regras são absolutas tornam-se como o homem que se submete à lei e não a lei para o homem e, se são instituições permissivas, não atingem os objetivos. Na Idade Média as regras fundamentais eram apresentadas em toda a sua exigência, mas a prática era muito mais maleável e não considerava que houvesse casos sem solução.” E hoje mesmo, leio a entrevista do Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Conselho Pontifício da Cultura a António Marujo, no Público. Sinto a universalidade do Evangelho, nas duas frases que aqui transcrevo: “O cristianismo é descobrir o eterno no tempo. Descobrir a importância do instante, do tempo que se vive, mesmo para construir-se a si mesmo.” Assim, ao longo dos dias, vou perguntando, sem parar. A fé não tem o descanso das certezas, mas o desassossego do mistério. Absoluto mistério, Deus Nosso Senhor.

Leonor Xavier

26 de Maio de 2012

20 maio 2012

As laranjas e o sumo pontífice

Um grupo de jovens estava reunido com um jovem padre. Tinham um semblante de piedade feliz e alegria devota enquanto combinavam uma procissão para breve, restrita, lembrando ao mesmo tempo uma outra mais geral que é a do Corpo de Deus. Dissertavam sobre os modos que deviam ter e os arranjos que os deviam conter. Essa procissão seria um acto de reverência e louvor a Deus, mas também uma afirmação pública da fé católica. Tornar-se visível, dar-se a conhecer parecia ser o mote para um acto destes no coração de uma sociedade laica e indiferente. Falavam de paramentos, de incenso, de velas. Pareceu-me ouvir falar de flores e por alguns momentos pensei nas lindas buganvílias do jardim das monjas, na discreta romãzeira da horta das irmãs, na protea que não se encontra facilmente, e noutras mais campestres como a giesta amarela com a sua exuberância ou a esteva de beleza luminosa e delicada. Mas afinal não era de flores que falavam, era de valores. Não compreendi o significado desses valores, se eram princípios, regras de conduta, ou valores monetários uma vez que também se referiam a despesas e receitas que a cerimónia comportaria.

Independentemente do que teriam estado a fazer esses jovens antes da reunião, depois dela foram todos ajoelhar diante do Santíssimo e, sob orientação do sacerdote, sussurraram breves orações, sendo depois convidados a ficar um pouco em silêncio. No fundo da igreja estavam algumas senhoras e dois homens com ar compungido, quase tristes, uma leve expressão de problemas em casa ou simplesmente na vida. Nesse momento não estava lá o homem de que fala S. Lucas (18, 9-14) que, ao fundo do templo, com semblante magoado, se declarava pecador. Era um cobrador de impostos, provavelmente colega de Zaqueu. A oração do fariseu tinha-o deixado envergonhado diante de Deus. Diminuído. Voltaria, mas não hoje. Confiava que Deus lhe perdoaria os pecados, mas teria de se encontrar a sós com Ele e não ao lado de tanta virtude. Por isso hoje não estava lá. Estavam aquelas senhoras e os dois homens que pareciam nem reparar nos piedosos e honestos jovens com uma expressão religiosa digna de nota. Quando o jovem padre lhes deu sinal de que podiam sair, uma senhora acenou afirmativamente com a cabeça, gesto de que nunca saberemos o significado.


Os jovens foram embora mas não para a rua. Regressaram à sala onde antes tinham estado reunidos, para aí lancharem e terem um pequeno e contido convívio. No meio dos sussurros ouve-se a voz do padre dizer: sabem que o santo padre fez anos há pouco tempo! E também sabem, ou se não sabem ficam a saber, que ele gosta muito de sumo de laranja! Como não tinha em casa laranjas que chegassem para fazer sumo, mandei comprar estas garrafas para bebermos em honra de sua santidade e em comunhão com ele. Diante deste episódio é legítimo perguntar se Jesus teria feito a multiplicação das laranjas que o padre tinha, de maneira que houvesse sumo para todos e ainda sobrasse para os que estavam ao fundo da igreja e mesmo para os que pediam à porta. Daquelas garrafas irá com certeza sobrar sumo, mas não será fruto de um milagre. Talvez apenas desperdício de supermercado. É pena! E também é pena que o sumo pontífice não tenha sido honrado com sumo de laranja natural, espremido à vista de todos para que todos fossem testemunhas de uma verdade indiscutível. Enfim, é na diversidade que todos somos Igreja.


Entretanto, no dia 13 de Maio, li no Público o artigo de Frei Bento “Sem teoria de tudo”. Não sei se já leram.

Frei Matias, op

18 maio 2012

Participação do NSI numa reunião internacional


O Nós Somos Igreja - Portugal (NSI-PT) participou na recente reunião da Rede Europeia Igreja em Liberdade, da qual é membro. Esta reunião teve lugar em Freising, Alemanha.

Para além das reuniões de trabalho, ouve duas oficinas e uma reunião informal do Movimento Internacional Nós Somos Igreja (IMWAC).

Uma das oficinas foi sobre a Europa, e nela se debateu a Aliança para uma Europa Secular (AES), uma rede de organizações que trabalham junto do Conselho da Europa, congregando organizações cristãs e não cristãs que trabalham para o igual reconhecimento de religiões, crenças e convicções ao nível europeu e pela separação de igreja e estado. No fim da reunião a Rede Europeia tornou-se membro da AES.

A outra oficina foi sobre o projecto Council 50, que pretende fazer um grande encontro em Roma, em Dezembro de 2015, por ocasião dos 50 anos do encerramento do Concílio Vaticano II. Até lá, as organizações participantes no projecto (entre as quais o NSI-PT) preparam este encontro organizando em cada país actividades que celebram o espírito do Concílio e o retomam. Em Protugal já foram organizadas várias conferências.

Está prevista já este ano, perto do dia 11 de Outubro, data de abertura do Concílio, uma Conferência de Imprensa em Roma, com a participação de várias organizações. 

Na reunião informal do IMWAC fez-se o ponto da situação presente, em termos de relação entre a hierarquia católica e a igreja em geral. Foram mencionados:

- A Iniciativa Pfarrer, que foi mesmo mencionada pelo papa na homilia de quinta-feira santa
- A recente crítica à organização "Leadership Conference of Women Religious", de religiosas norte-americanas,
- Alguns teólogos recentemente silenciados.

Pode ler algumas notícias sobre estes assuntos na página de notícias do IMWAC.

Foram também discutidos alguns aspectos da colaboração do IMWAC no projecto Council 50.

15 maio 2012

A Palavra amor e os meus cristãos siríacos de Azeh

Nestas matérias de fé, ou sobre o amor que na palavra de Jesus nos une e ilumina, não é linear nem lógico o pensamento. Descubro a frase do Frei Bento Domingues: “A fé cristã não é um calmante, mas um excitante da inteligência e dos afetos,” disse o Frei Bento no domingo, 29 de Janeiro deste ano. A partir daqui, vêm-me os fragmentos de pensar, a compor-se uns e outros como uma tela ou um bordado em construção. E porque todos os passos desta vida podem ter um significado, aqui vos conto um caso que eu soube, pela notícia do jornal Herald Tribune que li numa viagem de avião de Istambul para Lisboa. Eu tinha ido à Turquia em quase absoluta ignorância sobre o tempo real do país e não viajava com entusiasmo turístico nem com desejos consumistas e nem com cruzeiro de navio marcado. Atravessei um terço do território, entre a transparência do Mar Egeu, o cruzamento de Oriente e Ocidente, o espaço de olhar o céu, o capricho das escarpas recortadas na montanha, a rudeza da planície, a fertilidade da terra cultivada. Senti os sinais dos tempos nas ruínas das civilizações antigas, nos percursos dos apóstolos, nos refúgios das comunidades cristãs. Ali, quando por mim desfilam as memórias das perseguições, das guerras, dos êxodos, das destruições que desde sempre e até hoje permanecem, retomei a ideia da grande revolução que foi – e continua sendo – a mensagem de Jesus, naquele lugar e naquele tempo em que o mundo se ordenava pelo poder e não pelo amor.
As vidas dos outros podem levar a revisões de vida, a reordenar prioridades, a parar em meditação sobre os mistérios da condição humana e da liberdade em face dos desígnios de Deus. Assim me impressionou a história do cidadão turco Robert Tutus, cristão siríaco nascido em Azeh (Idil em turco), uma povoação no sudoeste da Anatólia, que remonta o seu cristianismo ao tempo dos apóstolos. Em Junho de 1994 dois homens assassinaram a tiro o pai de Robert, presidente da câmara local. De seguida a aldeia foi ocupada pelo exército turco, que destruiu as casas e decretou a expulsão de todos habitantes. Com a mãe e mais nove irmãos, Robert Tutus pediu asilo político na Alemanha, como o fizeram as centenas de cristãos siríacos que então se refugiaram na Europa Ocidental. Dez anos mais tarde, ele foi um dos primeiros exilados a aceitar o convite do governo turco aos siríacos para que voltassem à sua terra. Convite feito em 2001, por pressão da União Europeia, várias vezes repetido. A debandada dos habitantes de Azeh determinou o fim da era cristã daquela que foi sede de episcopado no séc II, habitada por uma população cristã de alguns milhares de pessoas até finais dos anos 70 do séc. XX. Dessa era, ficaram ruínas e foi surgindo da nova cidade de Idil habitada por curdos, árabes e alguns turcos, orgulhosos pela conquista muçulmana da cidade. Entre as planícies da Anatólia e as montanhas do sudoeste da Turquia fica o histórico centro da igreja ortodoxa siríaca, onde o Patriarca viveu até aos anos 30, quando mudou para a Síria. Aqui ainda existem igrejas siríacas e há um mosteiro do ano 397, reconhecido como um dos mais antigos mosteiros ativos do mundo. Há cem anos viviam naquela região 200 mil cristãos. Desses, 50 mil sobreviveram aos massacres de cristãos na Primeira Guerra. Hoje, são 4500 no máximo, enquanto 80 mil siríacos vivem na Alemanha, 60 mil na Suécia, 10 mil na Bélgica, na Holanda, na Suiça. Apesar da guerrilha entre curdos e exército turco e da agressividade dos curdos contra os siríacos, e apesar da mulher e das filhas adolescentes não quererem deixar a Alemanha, Robert Tutus voltou a Idil. Veio para reconstruir a casa de família, arrasada, está a restaurar a Igreja de Santa Maria e fundou uma associação para a cultura siríaca, para que a língua, a cultura e a tradição cristã siríaca se mantenham vivas. Para que os siríacos saibam que aquela é a sua terra. Para que o mundo saiba que ali vivem e existem, desde os primeiros tempos. Depois de ler a história até aqui acontecida, deixo-me pensar no ecumenismo, metáfora de unidade e harmonia, de entendimento e de paz, casa e resguardo, defesa de todos os males, na Igreja desejada. E acrescento a gente de Azeh-Isil à minha galeria de presenças, em hora de oração.

Leonor Xavier

15 de Maio de 2012

13 maio 2012

Viver com uma doença

Tal como milhares de portugueses tenho uma doença oncológica. Em cada ano cerca de 40,000 portugues@s são diagnosticados com esta doença. O meu diagnóstico data do verão de 2008, e desde então tenho tido o privilegio de ser tratada por pessoas altamente competentes e também com um forte sentido de ‘cuidado’. Recorro também à chamada ‘medicina chinesa’. Muito para além da utilização da acupunctura, a que ela vulgarmente é reduzida, a medicina chinesa trabalha sobretudo com as plantas medicinais, a massagem, a dieta e determinados tipos de exercício. A doente é encarada em toda a sua complexidade, sobretudo a nível emocional e também espiritual.
Não recebi a notícia como uma catástrofe ou uma desgraça mas, por feitio e por ter fé em Deus, com naturalidade, fazendo parte do precurso da vida. Entrei, até, numa fase em que sentia e sinto uma grande paz de espírito. Pela primeira vez, pois tinha sido sempre extremamente saudável, enfrentei a minha mortalidade. Informei os muitos médicos que encontrava a olhar para mim, com consternação, que não queria excesso de tratamentos nem de medicamentos. Declarei que preferia morrer mais cedo, com alguma qualidade, do que ser submetida a esses exageros que me parecem tantas vezes motivados para salvaguarda da ‘má’ consciência dos médicos ou dos familiares do enfermo, mas não para bem-estar da principal interessada, a doente. Sou, pois, a favor do testamento vital, que devolve às pessoas as decisões que só a elas dizem respeito. Em meio hospitalar é muito fácil os doentes perderem o controle sobre si próprios, que à luz da razão, da emoção e para mim, também da fé, tem que ser nosso. O poder dos profissionais de saúde, o poder da instituição, é arrasador. Apelo aos profissionais de saúde que nunca abusem do vosso poder sobre o doente.
A partir do momento em que se soube da doença fui alvo de uma espantosa onda de atenções, cuidados, orações, visitas, mensagens e telefonemas por parte de familiares e pessoas amigas que me confortaram extraordinariamente. Estou-lhes muitíssimo grata. Esta é para mim a verdadeira ‘comunhão dos santos’ – muito longe dos critérios de se encontrar um ‘milagre’ a todo o custo (nem que envolva um acidente com a fritura de peixe) para ‘provar’ que esta ou aquela pessoa importante na instituição-igreja é ‘beata’ ou até ‘santa’. Santas e beatas são todas aquelas pessoas que no seu dia a dia procuram seguir o apelo de Jesus Cristo - amai-vos uns aos outros como eu vos amei - mesmo que não acreditem nesse mesmo Jesus e que sejam convictamente agnósticas ou ateias.
É banal repetir que não sabemos o dia nem a hora, ecoando o Evangelho. Costumo pensar que, como tenho consultas regulares marcadas, não posso faltar e por isso não dá jeito morrer nos intervalos entre as consultas. Desde que fui diagnosticada, seis pessoas amigas morreram de forma inesperada ou repentina. Outra banalidade é o relativismo de uma situação de doença. Há tantos milhões em situação de grande sofrimento que se torna quase obsceno dar demasiada importância à nossa condição.
Aprofunda-se a fé, a meditação, a disponibilidade. A meditação é uma caminhada que está a ser objecto de muito interesse. Afastamo-nos do turbilhão dos nossos pensamentos habituais para “ficar na quietude de corpo e espírito”.
[1]
Não costumo ler relatos destinados a animar os doentes, e nunca faço pesquisas na internet sobre a doença. Uma excepção foi o livro de David Servan-Schreiber, um médico franco-americano, que nos dá uma visão, muito bem escrita e prazerosa, de caminhos possíveis para enfrentar a doença oncológica.
[2] Aos 30 anos confrontou-se com um tumor cerebral. Só morreu 19 anos mais tarde, tendo partilhado com uma imensa comunidade de doentes e cientistas a sua estratégia: alimentação saudável, a vivência das emoções, incluindo o espiritual, o exercício físico e psíquico e também os tratamentos tradicionais. Inspirada no exemplo deste médico, uma amiga minha, também ela doente, e eu própria, criamos um grupo de auto e inter-ajuda, que desde o Natal passado, reune quinzenalmente, em Lisboa, no Convento dos Dominicanos. Somos acompanhadas tecnica e gratuitamente por uma excelente enfermeira, Helena Pitta Negrão. Quem estiver interessado/a em saber mais é favor telefonar para 91 491 40 49. São bemvindos doentes, crónicos ou não, seus familiares e amigos. A próxima reunião é no dia 16 de Maio entre as 17.00 e as 18.00.
Ana Vicente
13 de Maio

[1] Há centenas de sítios sobre meditação. Um é www.meditacaocrista.com
[2] David Servan-Schreiber, Anti-Cancro – Um novo estilo de vida, Lisboa, Caderno, 2008.

09 maio 2012

A questão do “muitos” e do “todos” na consagração do vinho

O melhor texto que encontrei para o blogue deste mês é este. É longo, mas é essencial.


Frei Bento Domingues









Introdução
Segundo informação vaticana de 30 de Abril p.p., Bento XVI teria enviado aos bispos católicos da Alemanha uma mensagem determinando que a expressão “pro multis”, isto é, “por muitos”, da consagração eucarística do vinho, e que em várias línguas (incluindo a portuguesa) é actualmente traduzida “por todos”, seja a preferida, porque mais fiel ao texto bíblico. É verdade, filologicamente. Mas não, semanticamente. E em hermenêutica bíblica, se interessa a filologia, mais, muito mais nos deve interessar a semântica. Mas, vamos por partes.

A consagração eucarística do vinho
É verdade que no texto original do Missal Romano se lê, na fórmula eucarística da consagração do vinho e a propósito do sangue do Senhor Jesus: qui pro vobis et pro multis effundetur in remissionem peccatorum, o que dá em português e consta dos missais canonicamente aprovados e em uso: derramado por vós e por todos os homens para remissão dos pecados. Assim também em outras línguas, em que o multis do Missal Romano, isto é, muitos, é traduzido por todos. Quem tem razão? Vamos a ver. Mas antes, sejam-me permitidas algumas observações prévias.

Observações Prévias
O primeiro documento bíblico que nos informa sobre o que hoje consideramos a Eucaristia (ou a Missa, se quisermos), é a referência que Paulo faz à refeição fraterna dos fiéis de Corinto (1Cor.11,17-34)
[1]. Nele Paulo afirma taxativamente: “Com efeito, eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse “Isto é o meu corpo, que é entregue por vós; fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue: todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim” (1Cor.11,23-26). E mais não disse Paulo nem escreveu.

Outros bem puxados vinte anos depois, o médico Lucas, caríssimo discípulo e companheiro[2]
e colaborador de Paulo[3] na narrativa da Ceia de Despedida do Senhor Jesus escreve: “Depois da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós” (Lc.22,20), no que está essencialmente de acordo com Paulo (1Cor.11,25), diferindo, quanto ao sangue, apenas naquele: que vai ser derramado por vós. E nada mais.

Os dois outros Sinópticos (Marcos, que escreveu antes dos demais, e Mateus) dão-nos as seguintes versões sobre o mesmo[4]: Depois, tomou o cálice, deu graças e entregou-lho. Todos beberam dele. E Ele disse-lhes: “Isto é o meu sangue da aliança, que vai ser derramado por todos…” (Mc.14,23-24). Segundo Mateus: Em seguida, tomou um cálice, deu graças e entregou-lho, dizendo: “Bebei dele todos. Porque este é o meu sangue, sangue da Aliança, que vai ser derramado por muitos, para perdão dos pecados (Mt.26,27-28). Embora no texto grego original, e quanto ao sangue derramado, a expressão num e noutro evangelista seja a mesma, e translitero: tò ekchynnónenon hypèr pollôn (Marcos); tò perì pollôn ekchynnónenon, é notável que a tradução em Marcos e Mateus do termo grego pollôn, que é o busílis da questão, não seja a mesma: todos, em Marcos, e muitos, em Mateus. Afinal em que ficamos? Em todos ou só em muitos? Segundo Bento XVI deverá ser muitos. Segundo me parece e justificarei, literariamente, o tradutor de Marcos tem razão: são todos.

A chave da questão
Não há dúvida nenhuma de que o termo grego pollôn[5]
se pode traduzir, à letra, por muitos. Assim leio na quase dúzia de versões portuguesas que possuo[6], à excepção de duas: a TEB – a tradução ecuménica, publicada no Brasil pelas Paulinas em 1995, com recomendação do Presidente da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros, e cujo texto é: derramado em prol da multidão, e A Boa Nova Para Toda A Gente, da Sociedade Bíblica, publicada em Lisboa em 1978 (Novo Testamento), com a aprovação de D. António, bispo do Porto, presidente da Comissão Episcopal da Doutrina da Fé, e cuja versão é: derramdo em favor da humanidade. Claro que isto não são versões mas interpretações. S. Jerónimo quando, no século IV, traduziu a Bíblia do hebraico e do grego para o latim, foi filologicamente (e acentuo: filologicamente) fiel ao original, vertendo: qui pro multis effundetur. E da Vulgata Latina terá passado para o Missal Romano. Mas, bem ou mal? Mal, porque não se trata apenas de uma questão filológica, mas também, e sobretudo, semântica. Ou, por outras palavras: o que é que aquele texto grego quer dizer: muitos ou todos?
Estou convencido de que quer dizer todos e pelas seguintes razões:

1. A tradição cristã em voga no tempo tanto da redacção dos Evangelhos segundo Marcos e Mateus, como no tempo de S. Jerónimo, era a de que o Senhor Jesus de Nazaré era o Messias. Na Sua Paixão e Morte realizara o predito pelo Segundo Isaías (século VI a.C.) sobre o Servo de Yahwéh: “Por isso ser-lhe-á dada uma multidão como herança, há-de receber muita gente como despojos, porque ele próprio entregou a sua vida à morte, e foi contado entre os pecadores, tomando sobre si os pecados de muitos (rabbim, no hebraico) e sofreu pelos pecados (Is.53,12). Quem não lê esta parte da “profecia” repercutida na fórmula consecratória do vinho em Mateus (21,22)[7]?
Ademais, é e bom que se diga em abono da ciência bíblica, as narrativas da Ceia de Despedida nos Sinópticos não correspondem por inteiro ao que, historicamente, então se terá verificado, não repugnando, por isso, que constituam criações da primitiva Comunidade Cristã face à prática cada vez mais generalizada de se reunirem os fiéis discípulos do Senhor Jesus em comunitárias e fraternas refeições a que, pouco a pouco, se foi dando carácter sagrado.

2. Em segundo lugar, o plural do adjectivo grego polús, pollê, polú (muito) é usado, tanto no grego clássico[8]
como no grego bíblico do Novo Testamento no sentido da totalidade, de todos. Assim, por exemplo, quando Paulo escreve aos Romanos: Se pela falta de um só homem (ei gàr tôi toỹ enòs (um) paraptốmati) todos morreram (hoi polloi apéthanon), com muito mais razão a graça de Deus, aquela graça oferecida por meio de um só homem (enós anthôpoy), Jesus Cristo, foi a todos (eis toys polloys) concedida em abundância (Rm.5,15). Aqui, não há dúvida, o sentido do adjectivo grego é o de totalidade (todos) e não apenas de pluralidade (muitos). E, mais abaixo, volta Paulo a usar polys, pollê, poly no mesmo sentido de totalidade: De facto, tal como pela desobediência de um só homem (toỹ enòs anthôpoy), todos (hoi polloi) se tornaram pecadores… (Rm.5,19).

3. Finalmente, o argumento da analogia da fé. Como é que que esta opção pelo muitos (sangue derramado por muitos), em vez de todos, se compagina com as afirmações bíblicas (e não é agora caso de tomar em mãos o tema, que isso nos levaria longe) da universalidade da salvação messiânica[9]?


Conclusão
Filologicamente, é possível a tradução: derramado por muitos. Semântica e exegeticamente, não. Por isso, está certo e bem traduzir-se: derramado por todos, na fórmula consecratória do vinho.

A. Cunha de Oliveira, 2012.05.05



[1] Esta Primeira Carta de Paulo aos Coríntios terá sido escrita uns vinte e poucos anos após a morte do Senhor Jesus.
[2] Como bem se fica sabendo pelo uso do plural por Lucas em Act.16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,1-28.
[3]Cl.4,14; Flm.24; 2Tm.4,11.
[4] Estou seguindo a versão portuguesa da Nova Bíblia dos Capuchinhos (1ª edição, 1989).
[5] Genitivo do plural do adjectivo polys, pollê, polú (do sâncrito: púruh, com sentido de plenitude), que significa: muito, numeroso, e similares.
[6] Os ingleses traduzem: for many, e os alemães für viele.
[7] Sobre tudo isto, nem palavra no IV Evangelho, que terá sido composto depois do ano 90, ou seja, bem mais de meio século após a morte do Senhor Jesus.
[8] Veja-se Lorenzo Rocci, no seu monumental Vocabulário Greco-Italiano, 1534.
[9] Por desfastio, leia-se, entre outras, qualquer das seguintes citações: Lc.3,6; Jo.3,17;4,42;12,47; Act.4,12;28,28; Rm.11,11; 1Tm.2,4;4,10; Tt.2,11; 1Jo.4,14.

06 maio 2012

Jesus, Mulheres e Igreja

Os discursos e documentos papais reproduzem a mesma diferenciação hierarquizante entre homens e mulheres existente na cultura ocidental, herdada da filosofia e reproduzida no pensamento do Magistério dos Papas, ainda que, ao longo segunda metade do século XX – por força da força do Concílio Vaticano II – essa reiteração da diferenciação se tenha mitigado, através do recurso à linguagem da “complementaridade”. Proponho-vos, pois, que façamos um pequeno percurso por alguns documentos, sobretudo do Papa João Paulo II (ainda que também haja referências esporádicas a textos de outros Papas), para vermos mais claramente os passos dados nesta mitigação. Se invoco textos sobretudo de João Paulo II é porque ele foi o primeiro a escrever um documento só sobre a problemática “da mulher” (e não das mulheres!) – a Mulieris dignititatem.
João Paulo II desenvolveu uma teologia que ele designava por “teologia do corpo”
[i] e que, no seu dizer, pretendia constituir uma reflexão sobre a igualdade e a identidade masculina e feminina. Essa teologia afirmava que “a sua homogeneidade [do homem e da mulher] diz respeito, sobretudo, ao corpo, à estrutura somática”[ii]. São iguais, porque ambos criados por Deus. A diversidade sexual marca a identidade masculina e a identidade feminina. A mulher reconhece-se como mulher diante do homem e o homem reconhece-se como homem diante da mulher. Portanto, este ser do corpo e da alma um para o outro constitui o significado último da masculinidade e da feminilidade (isto é, da existência sexuada).
A afirmação da igualdade fundamental do ser humano diante de Deus é sempre acompanhada pela afirmação da diferença entre o homem e a mulher. A reflexão acerca da essência da mulher, ou acerca da sua natureza situa-se neste contexto. A natureza humana reflecte a imagem de Deus, portanto, não se deixa determinar pela sociedade, ou pelas circunstâncias históricas
[iii]. Sendo assim, é eterna, porque Deus é eterno, e está inscrita no coração do ser humano, porque este é criação divina[iv], já dizia Leão XIII.
Contrariar a natureza humana é contrariar o plano de Deus acerca do ser humano. Esta vontade deve ser cumprida em todos os níveis da vida humana, quer seja na vida social, quer seja na vida familiar, ou pessoal.
As afirmações dos documentos papais acerca da natureza da mulher inserem-se neste contexto global. A sua preocupação é encontrar a sua especificidade, tal como ela é ditada pela natureza. O discurso acerca da natureza humana implicará sempre estas duas vertentes: a afirmação da igualdade do homem e da mulher, ambos possuidores da mesma natureza, e a diferença entre ambos, a qual determina a sua desigualdade. O elemento constitutivo da feminilidade é a maternidade. A mulher identifica-se pela “disposição natural” que o seu organismo tem de servir a geração e o nascimento do ser humano
[v], segundo João Paulo II. Sendo assim, a complementaridade parece revelar-se, antes de mais, fisicamente. A vontade de Deus é que a mulher seja aquela na qual a ordem do amor do mundo criado das pessoas encontra um terreno para deitar a sua primeira raiz[vi], metáfora – diga-se de passagem – com uma longa história de misoginia. Conclui-se da quase total ausência de reflexão sobre o significado das características masculinas para o ser homem, a associação mais directa da definição de mulher às suas determinações físicas.
A natureza biológica da mulher parece ser extrapolada para a sua natureza espiritual. Os textos traçam o retrato espiritual feminino a partir da condição de mãe: a mulher possui o amor à vida, o sentimento de protecção do berço. Ela conhece o mistério da vida
[vii], como diz o Concílio. Ela tem a missão de “colocar bálsamo nas feridas abertas da humanidade”, dizia Pio XII[viii]. E, uma vez que a lei da natureza é eterna, estas características da mulher constituem a sua “essência perene”[ix], segundo João Paulo II, ou a sua “verdade”[x]. Segundo Pio XII. Estas características da mulher são “imutáveis e não se desactualizam”[xi], uma vez que constituem o plano de Deus para as mulheres[xii]. Aliás, à objecção de que muito daquilo que é atribuído à natureza da mulher pode ser produto cultural e histórico, Paulo VI respondia que “a história e a natureza estão estreitamente ligadas uma à outra”[xiii].
Neste contexto, os textos do Magistério revelam sempre o temor de que os movimentos de emancipação da mulher, no caso de lutarem por uma igualdade entre o homem e a mulher que procura mudar “aquilo que a natureza exige do homem e aquilo que a natureza exige da mulher
[xiv]“, desrespeitem esta ordem estabelecida pelo Criador. A posição dos documentos papais ou de dicastérios da Santa Sé relativamente aos movimentos feministas vem na sequência da dupla afirmação, aliás já mencionada, da igualdade e da diferença entre o homem e a mulher.
A questão da maternidade prende-se directamente com a problemática da natureza da mulher. Ela constitui a sua essência, a revelação do significado da feminilidade. E esta é determinada biologicamente. João Paulo II afirma que, dada a sua condição de mãe, a mulher possui “uma sensibilidade subtil, um sentido da realidade concreta e um amor atencioso para com aquilo que está em crescimento e que, por isso, precisa de cuidado especial”
[xv].
Este tipo de descrições revela também uma tendência para idealizar a figura da mulher como uma mãe perfeita. Além disso, a mulher é definida apenas pelo seu papel relativamente a um outro: a criança. O facto de se fazer uma idealização desse seu papel parece esvaziar ainda mais a mulher duma identidade e duma existência concretas. O sujeito da reflexão acerca da identidade feminina é sempre um outro em função do qual se coloca a sua própria existência. Esta redução da mulher à sua função é agravada nos textos em causa pelo facto de não se encontrar uma reflexão igualmente desenvolvida acerca do papel do homem enquanto pai.
João Paulo II afirma mesmo que “o ser genitores - ainda que seja comum aos dois - realiza-se muito mais na mulher, especialmente no período pré-natal.” Portanto, o homem “encontra-se sempre 'fora' do processo da gestação e do nascimento da criança”. Ainda que a educação dos filhos seja da competência tanto do pai como da mãe, a contribuição materna “é decisiva”
[xvi]. A maternidade é, portanto, a chave de interpretação do significado da existência das mulheres. Sendo assim, ela constitui também o seu papel social fundamental.
Esta identificação do papel social da mulher com a maternidade torna-se mais evidente se atendermos à forma como os textos encaram o seu trabalho profissional. Muitos acentuam a dificuldade que este pode causar para o cumprimento daquilo que é específico da mulher, isto é, a maternidade
[xvii]. Do mesmo modo, uma das reticências colocadas aos movimentos de emancipação fundamenta-se, precisamente, no receio de que estes transtornem a vocação fundamental da mulher à maternidade[xviii].
Na perspectiva dos documentos em causa, o contributo essencial da mulher para a sociedade situa-se, portanto, na esfera privada, uma vez que consiste na maternidade. Os textos consultados atribuem predominantemente aos homens as funções públicas e às mulheres os papéis relacionados directamente com a manutenção do lar e da família. Elas são o garante da estabilidade do domínio privado. Nas palavras de Pio XII, o lar é “o campo e o ninho da actividade da esposa”
[xix]. O papel ideal para a mulher é o de mãe, com a sua correspondente confinação ao domínio do privado. Os termos em que os textos colocam a questão reflectem, pois, a distribuição de papéis sociais no Ocidente, segundo a qual à mulher pertence o domínio privado (da casa, da família) e ao homem, o domínio público, social[xx]. Sendo assim, o ideal de mulher como mãe coincide com a ordem social vigente.
Os textos papais também comparam a Igreja com a família. Pio XI afirma que a tarefa da família coincide com a da Igreja: Deus comunica a ambas a fecundidade, a transmissão da vida, da educação e da autoridade, “princípio de toda a ordem”
[xxi].
Quando se estabelece o paralelo entre a autoridade na família e a autoridade na Igreja, compara-se o papel da hierarquia com o do pai. Assim, João Paulo II afirma que “os padres e os diáconos estão para a família como um pai, um irmão, um pastor e um mestre”
[xxii]. Portanto, tanto na Igreja, como na família, a autoridade encontra-se na linha paterna.
Esta mesma ideia parece confirmar-se se atendermos, de novo, aos termos em que os textos falam de S. José como patrono da Igreja. Numa passagem de um documento de Leão XIII podemos encontrar o seguinte raciocínio: Jesus devia obediência a José, enquanto pai humano, como é próprio de toda a relação entre pai e filho. José era o protector, o tutor e o defensor natural da família divina. Ora, a sagrada família, “que José orienta com pleno poder paterno”, é o embrião da Igreja: Maria é a mãe de todos os crentes e Jesus é o primogénito de todos os cristãos. S. José goza de autoridade paterna sobre a Igreja
[xxiii].
Podemos, então, concluir que o paralelo estabelecido entre a estrutura familiar e a estrutura eclesial reflecte uma concepção da distribuição de papéis entre a mulher e o homem que exclui a primeira das funções relacionadas com a autoridade.

Ora esta é esta precisamente a lógica reproduzida na Declaração sobre a questão da admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial (Inter insigniores)
[xxiv], emanada da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé no dia 15 de Outubro de 1976 (curiosamente, dia da Festa de Santa Teresa d’Ávila) e repetida até à saciedade por todas as declarações posteriores sobre um assunto cada vez mais difícil de calar e de ignorar (não há argumentos “recentes” sobre o assunto, ao contrário do que poderia parecer a algumas figuras com responsabilidade… Os argumentos têm sido sempre os mesmos de há 35 anos a esta parte…).
Se nos debruçamos sobre este tema da ordenação das mulheres não é por considerarmos que ele constitui a única chaga no que diz concerne ao respeito pelos direitos humanos das mulheres dentro da Igreja. É sobretudo porque neste tema se torna presente de uma forma translúcida a lógica de uma antropologia mitigadamente desigualitária. Desta vez, a argumentação gira em torno da centralidade da masculinidade de Jesus para o exercício do ministério. Devo à Fernanda Henriques a compreensão (durante o trabalho conjunto para a elaboração deste texto) de que a questão não está só na insistência explicitada no documento na impossibilidade de mulheres representarem um homem – Jesus Cristo – no altar, pelo facto de serem mulheres e existir uma “dissemelhança” delas com Jesus – homem. A questão também estará – ainda que não seja explicitada – no facto de Jesus ter exercido um ministério público, de os ministérios ordenados serem públicos e de, como tal, estarem vedados às mulheres, uma vez que a estas se lhes atribui, ancestralmente, o domínio privado ou sucedâneos do domínio privado (veja-se a tendência para reproduzir a lógica da maternidade em referências ao papel das mulheres na educação e no cuidar, por exemplo). A lógica final do documento Inter insigniores coloca esta desigualdade, mais uma vez, no próprio plano de Deus.
Mas debrucemo-nos mais detalhadamente sobre o texto. Começaremos por constatar que a Declaração se inicia citando João XXIII, que na sua Encíclica Pacem in Terris considerou precisamente como um dos sinais mais característicos da nossa época “o facto de as mulheres estarem a entrar na vida pública, quiçá mais depressa nos povos que professam a fé cristã e mais lentamente, mas também em grande escala, nos países com outras civilizações e tradições”. Menciona-se também a existência de formas de discriminação que devem ser superadas, por serem contrárias ao plano de Deus. Refere-se, em seguida, a existência de muitas mulheres no apostolado e a relevância de muitas mulheres ao longo da história da Igreja. Poder-se-ia dizer que esta introdução contraria a tese da interdição do exercício do ministério ordenado devido ao carácter público de este último. Simplesmente, não deverá perder-se de vista que a atribuição do espaço público aos homens, ao longo dos tempos, também esteve sempre associada ao facto de ser este o espaço de exercício do poder configurador da ordem social. E deve ter-se igualmente presente que o documento irá utilizar a linguagem do “oficial” e do “oficioso”, aplicando a primeira aos homens e a segunda às mulheres, como veremos.
Onde faz, então, o documento radicar a proibição do acesso das mulheres ao ministério ordenado? Antes de mais, invocando a tradição, com uma frase lapidar: “A Igreja nunca admitiu que as mulheres pudessem receber validamente a ordenação sacerdotal ou episcopal
”. Se tal aconteceu foi em seitas heréticas, como, por exemplos, as gnósticas. Essa exclusão deve-se ao desejo de a Igreja permanecer fiel ao seu fundador, segundo prossegue o documento. Portanto, a exclusão das mulheres do ministério ordenado constitui um sinal de fidelidade a Jesus Cristo e aos Apóstolos. O documento avança o segundo argumento, ligado a este primeiro: Jesus Cristo nunca chamou nenhuma mulher a fazer parte dos Doze”. É certo que, durante o seu ministério, se faz acompanhar de mulheres e é certo que são elas as primeiras testemunhas da ressurreição, mas não são as testemunhas oficiais: elas são é “encarregadas por Jesus de levar a primeira mensagem pascal aos Onze, para os preparar para serem os testemunhos oficiais da ressurreição”. Portanto, “oficialmente”, Jesus ressuscitado apareceu aos homens e oficiosamente, às mulheres. E não foi à sua Mãe (aliás, proclamada Mãe de Deus!) que Jesus “confiou as chaves do reino dos céus”, mas sim a Pedro.
Terceiro argumento: a prática dos apóstolos. É certo que Maria ocupa um ligar privilegiado no Cenáculo, mas não foi chamada a integrar o colégio dos Doze. Judas foi substituído por Matias. O documento refere ainda as comunidades paulinas, no mundo greco-romano, e conclui que, apesar de no mundo helénico haver cultos pagãos confiados a sacerdotisas e apesar de haver mulheres “colaboradoras” de Paulo, esta colaboração nunca chegou ao ponto de lhes ser entregue o “anúncio oficial e público [sublinho: público!] da mensagem”.
Poderá a Igreja mudar de atitude face a esta questão? Não – quarto argumento – porque a atitude de Jesus e dos apóstolos tem um valor permanente. As prescrições de Paulo relativas à obrigação da mulher cobrir a cabeça são culturais. Mas a proibição de falar na assembleia “é de outro tipo”: elas podem profetizar, mas não podem ter a “função oficial de ensinar na assembleia”. E isto devido ao “plano divino da criação”: o texto refere Gen 2,18-24 (isto é, o relato da criação da mulher como “auxiliar” do homem) sem explicar a relação que estabelece entre a interdição das mulheres ensinarem na assembleia e os versículos da criação.
É certo que, segundo se diz, a Igreja tem consciência de “possuir certo poder de intervenção” sobre os sacramentos (todos sabemos a evolução por que passaram os sacramentos, por exemplo, da penitência). Mas, e cito do documento: “em última análise é a Igreja que, através da voz do seu Magistério, assegura em campos tão variados o discernimento acerca do que pode mudar e do que deve permanecer imutável. Quando ela crê não poder aceitar certas mudanças, é porque se sente vinculada pela conduta de Cristo.” Por isso, surge, agora o argumento da autoridade: “Esta prática da Igreja reveste, pois, um carácter normativo: na prática de não conferir senão a homens a ordenação sacerdotal há uma tradição constante no tempo, universal no Oriente e no Ocidente, vigilante em reprimir imediatamente os abusos; esta norma, que se apoia no exemplo de Cristo, é seguida porque se considera conforme ao plano de Deus para a sua Igreja”. Isto é, o plano de Deus para a sua Igreja passa pela exclusão das mulheres do acesso ao ministério ordenado.
Mas a declaração dá mais um passo: não basta referir a autoridade da Igreja como “seguidora fiel” do exemplo de Cristo, é preciso inserir a própria masculinidade do ministério no mistério de Cristo, isto é, é preciso “teologizar” a exclusão do feminino, fazendo referência à “semelhança natural” que deve existir entre Cristo e o seu ministro, Cristo que “foi e continua a ser homem”. É certo que ele é o primogénito de uma humanidade constituída por homens e mulheres, mas “a encarnação do Verbo fez-se segundo o sexo masculino”. E este facto é “inseparável da economia da salvação”, aliás, “está em harmonia com o conjunto do plano de Deus, tal como Deus mesmo o revelou e cujo centro é o mistério da Aliança”. Portanto, está inscrito no plano de Deus que as mulheres não podem ser consideradas “semelhantes a Cristo”. Está inscrito no plano de Deus que não podem ter acesso ao ministério ordenado. Está inscrito no plano de Deus que Cristo é esposo e chefe da Igreja e que este papel só pode ser realizado por um homem. É certo que o sacerdote representa a Igreja, que é o Corpo de Cristo, mas representa a sua cabeça, que é Cristo, e Cristo, é homem.
Ora se o ministério sacerdotal se insere no mistério da Igreja e se esta é obra do Espírito Santo, não se pode mencionar os direitos humanos ao falar desta questão: em Gálatas 3,28, diz-se que, em Cristo, não há homem, nem mulher. “Mas o texto não se refere em absoluto aos ministérios: ele afirma somente [sublinhado meu] a vocação universal à filiação divina que é a mesma em todos”. Portanto, a filiação divina que é a mesma em todos não chega para fundamentar o ministério ordenado.
O documenta termina dizendo que as mulheres que desejam o ministério estão, certamente, ”inspiradas pela vontade de servir a Cristo e à sua Igreja”. Acrescenta-se – aliás, estranhamente – que isto “não é surpreendente num momento em que as mulheres tomam consciência das discriminações de que foram objecto” (digo “estranhamente”, porque a argumentação anterior nega a possibilidade de invocar, sequer, a palavra “discriminação” quando se fala do ministério ordenado exclusivamente masculino). Mas, este “não faz parte dos direitos da pessoa, depende do mistério de Cristo e da Igreja”. Meditar na igualdade de todos pelo baptismo significa aceitar que isto quer dizer que a Igreja é “um corpo diferenciado, no qual cada um tem a sua função”.
A última frase do documento constitui uma recomendação às mulheres: “A Igreja faz votos para que as mulheres cristãs tomem plena consciência da grandeza da sua missão: o seu papel é capital hoje em dia, tanto para a renovação e a humanização da sociedade como para descobrir, de novo, por parte dos crentes, o verdadeiro rosto da Igreja”. Portanto, o verdadeiro rosto da Igreja é o da fidelidade a uma representação masculinizada da salvação, que legitima a conclusão de Mary Daly: “if God is male, than male is God”.
Já li este documento várias vezes. Da primeira vez que o li, fiquei entre atónita e indignada. Agora, quanto mais o leio e quanto mais vejo a realidade à minha volta, mais me convenço do seguinte: afinal, nós, mulheres não somos menos importantes – provavelmente, somos “o mais importante de tudo”. Caso contrário, como compreender que, para nos excluir do altar e da pregação, para nos invisibilizar dos lugares públicos de anúncio “oficial” do Evangelho, se aceite divinizar a masculinidade de Jesus? Somos assim tão ameaçadoras?
[i] Cf. João Paulo II, Audiência Geral, 12.09.1979, in: OR 210 (14 Setembro 1979) 2.
[ii] Cf. João Paulo II, Audiência Geral, 7.11.1979, in: OR 256 (8 Novembro 1979) 1.
[iii] Cf. DH 4812.
[iv] Cf. Leão XIII., Enc. “Libertas praestantissimum” (1888), in: DH 3247; Sacrosanctum Concilium Oecumenicum Vaticanum II, Declaratio de libertate religiosa. Dignitatis humanae, n.3, in: AAS 58 (1966) 931-932; Declaração da Sagrada Concregação para a Doutrina da Fé acerca de algumas questões de ética sexual “Persona humana” (1975), in: DH 4580.
[v] Cf. João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.18, in: AAS 80 (1988) 1695.
[vi] Cf. João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.29, in: AAS 80 (1988) 1721-1722.
[vii] Cf. Concilium Oecumenicum Vaticanum II, Nuntii ab E.mis Patribus Cardinalibus lecti et a Summo Pontifice iis traditi qui variarum socialum ordinum personam gerebant. Aux femmes, in: AAS 58 (1966) 14.
[viii] Pio XII., Audiência às participantes no Congresso feminino Internacional da Acção Católica, 15.04.1939, in: OR 90 (15 Abril 1939) 1.
[ix] João Paulo II, Christifideles laici, n.50, in: AAS 81 (1989) 490.
[x] Cf. Pio XII., Audiência Geral, 24.02.1942, in: OR 47 (26 Fevereiro 1942) 1: “(...) uma verdade antiga e sempre nova, radicada na própria situação física da vida da mulher.
[xi] João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.30, in: AAS 80 (1988) 1726.
[xii] Cf. João Paulo II, Ad episcopos Civitatum Foederatarum Americae Septemtrionalis missus, in: AAS 81 (1989) 1165.
[xiii] Paulo VI, Carta ao Presidente da 59ª. Sessão da Semana Social da França, Sr. Alain Barrière, in: OR 153 (5 Julho 1972) 1.
[xiv] Sacra Congregatio Pro Doctrina Fidei; Declaratio De abortu procurato, n. 15, in: AAS 66 (1974) 740. Cf. ainda: Pio XI, Casti connubii, in: AAS 22 (1930) 549, 567-568; Pio XII., Ad Delegatas Unionis internationalis Sodalitatum mulierum catholicarum ob communem Conventum Romae coadunatas, in: AAS 39 (1947) 480-488; Mulieribus peregrinationis causa ad sanctuarium lauretanum B. Mariae Virginis e tota Italia coadunatis, ad fausta anniversaria Summi Pontificis Pii XII pie celebranda, in: AAS 48 (1956) 779-786; Paulo VI, Octogesima Adveniens, n.13, in: AAS 63 (1971) 410; João Paulo II, Laborem Exercens, n.19, in: AAS 73 (1981) 627-628; Christifideles laici, n.50, in: AAS 81 (1989) 490; Ad episcopos Civitatum Foederatarum Americae Septemtrionalis missus, in: AAS 81 (1989) 1165; Ad eos qui conventui consociationum “Pro vita” ab omnibus nationibus interfuerunt coram admissos, in: AAS 84 (1992) 1061-1065; Mulieris dignitatem, n.10, in: AAS 80 (1988) 1674-1677; Joseph Ratzinger, Apertura del Consistoro Straordinario, in: Osservatore Romano, 5/04/1991.
[xv] João Paulo II, Discurso ao Centro Feminino Italiano, 7.12.1979, in: OR 282 (8 Dezembro 1979) 3.
[xvi] Cf. João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.18, in: AAS 80 (1988) 1696, 1697.
[xvii] Cf. Leão XIII., Litterae Encyclicae Rerum novarum, in: Acta Sanctae Sedis 23 (1890/91) 661; DH 3735; Pio XII, Mulieribus peregrinationis causa ad Sanctuarium lauretanum B. Mariae Virginis e tota Italia coadunatis, ad fausta anniversaria Summi Pontificis Pii XII pie celebranda, in: AAS 48 (1956) 779-786; DH 3963; João Paulo II, Laborem Exercens, n.19, in: AAS 73 (1981) 625-629; Christifideles laici, n.50-51, in: AAS 81 (1989) 489-496.
[xviii] Cf. nota n.36.
[xix] Pio XII., Audiência Geral, 24.02.1942, in: OR 47 (26 Fevereiro 1942) 1.
[xx] Cf. Philippe Aries / Georges Duby (dir.), História da vida privada, 5 vol., Lisboa, 1989-1991, especialmente vol.1, 77-81 e vol.5, 10-11; Georges Duby / Michelle Perrot (dir.), Histoire des femmes en Occident, 5 vol., Paris, 1990-1992.
[xxi] Cf. Pio XI, Enc. “Divini illius magistri” (1929), in: DH 3690.
[xxii] João Paulo II, Familiaris Consortio, n.73, in: AAS 74 (1982) 171.
[xxiii] Cf. Leão XIII, Enc. “Quamquam pluries” (1889), in: DH 3262 e 3263.
[xxiv]SACRA CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI, Declaratio circa quaestionem admissionis mulierum ad sacerdotium ministeriale. Inter insigniores, in: AAS 69 (1979) 98-116.
Teresa Toldy

2012.04.14
Texto da intervenção da teóloga Teresa Toldy na Conferência Jesus, Mulheres e Igreja, organizada pelo NSI-PT

03 maio 2012

We are all american nuns

No dia 28 de Abril, NICHOLAS D. KRISTOF escreveu um artigo no New York Times intitulado: “We are all nuns” (somos todos freiras) (http://www.nytimes.com/2012/04/29/opinion/sunday/kristof-we-are-all-nuns.html)

Nesse artigo, que se refere à nomeação de um bispo pelo Vaticano (como é sabido) para “meter na ordem religiosas americanas”, Nicholas Kristof elogia o trabalho das religiosas americanas que encontrou não só em contextos académicos, mas também em lugares onde ninguém quereria estar – junto de populações em sofrimento, correndo riscos de vida.

É um artigo que vale a pena ler.

Hoje, quero associar-me também eu a esta afirmação, eu, que sou casada, com um filho, que não sou freira, quero dizer: “sou uma freira americana”. “Somos todas e todos freiras americanas” aquelas e aqueles que não calamos o desgosto por uma atitude do Vaticano que reduz mulheres adultas ao nível de crianças.

Quem já leu alguma coisa sobre o desenvolvimento do raciocínio moral, sabe que os psicólogos descrevem vários níveis e estádios do mesmo. O primeiro estádio, das crianças mais pequenas, é aquele em que as crianças orientam o seu comportamento pelo medo do castigo resultante da desobediência à pessoa que tem autoridade sobre elas. O estádio de desenvolvimento do raciocínio moral de um adulto é aquele em que se concilia o cuidar dos outros com o desejo de justiça: esse é o estádio de quem desenvolveu um raciocínio autónomo, baseado em convicções interiorizadas.

“Somos todas e todos freiras americanas”: adultas e adultos. A nossa razão cristã não nos dita a moral infantil do medo de desobedecer à autoridade, mas sim a liberdade das filhas e dos filhos de Deus.

Teresa Martinho Toldy