Alguém me fala de outro alguém, numa esquina da cidade, em casual conversa. Esse outro alguém, uma rapariga que eu não conheço, é-me descrita como muito aberta de espírito, apreciadora de prazeres carnais e comerciais, “apesar de” pertencer à Opus Dei. O tom da conversa não é religioso, mas absolutamente laico. Espera-se de mim que reaja com crítica ao alinhamento conservador, eu que sou uma heterodoxa em relação a regras estabelecidas ou uma rebelde em matéria de obediência e que costumo ter o coração ao pé da boca, em matéria de opinião. Mais uma vez invoco as muitas moradas da casa de Deus e digo que há os conservadores e os progressistas, os tradicionais e os reformistas, enquanto elogio o bom gosto dos gostos da rapariga, que assim demonstra continuar viva de corpo e alma, em vez de se deixar ficar reclusa numa jaula de preconceitos, proibições, pecados possíveis, como se poderia esperar. Nesta altura em que o espaço da rua oferece casuais encontros, e cada vez menos se convive no espaço da casa por convite formal, a cidade obriga-nos ao reencontrar casual, ao sorriso do cumprimento, às frases de circunstância que, afinal, nos fazem perceber os outros e nos levam a pensar sobre o mundo, naqueles passos de solitária caminhada, em que o espírito corre à solta sem se deixar parar.
Chego a casa sem esquecer a conversa e muito, muito teria que dissertar ou escrever sobre o que me passou pela cabeça. Corro às minhas mais recentes leituras de sábios e pensadores e académicos sobre ser católico e cristão, sobre a Igreja, sobre a vivência religiosa e a espiritualidade, sobre a desumanização, sobre o fanatismo religioso, sobre a intolerância, sobre os medos deste tempo que vivemos. A leitura estimula a concentração, a imaginação, acorda o entendimento. Para responder a muitas perguntas (Que pertença é a minha? Que fidelidade, que cumprimento? Que caridade sendo amor, que compaixão? Como, a tempo inteiro?) – descubro então a fórmula de José Mattoso, professor catedrático jubilado, especialista em Idade Média, autor da coletânea de ensaios “Levantar o Céu - Os Labirintos da Sabedoria”(ed. Temas e debates/Círculo de Leitores), que viveu anos de experiência monástica. Em comentário sobre os resultados da sondagem sobre Identidades Religiosas, a propósito da diminuição de católicos e do aumento de grupos religiosos diversos em Portugal, em entrevista a António Marujo no Público, diz: “Que estratégia a Igreja deveria seguir para não perder o lugar que chegou a alcançar? Penso que é sobretudo na vivência do evangelho na autenticidade da vida cristã.” Vou a seguir recortar a opinião de Alfredo Teixeira, sociólogo, coordenador desta mesma Sondagem, sobre a transformação das sociedades cristãs. Este fenómeno “não é o da não-crença, é o da reconstrução individual do religioso,” diz também ao jornalista António Marujo, usando a sua expressão científica para explicar que “a experiência, as crenças, os símbolos deixam de estar amarrados a um determinado contexto institucional e comunitário e passam a ser recompostos a partir da experiência individual.” Continuo a desfiar as minhas perplexidades e, no pensamento do Professor José Mattoso, encontro a flexibilidade das diferenças: “As ideologias traçam uma série de regras e se as regras são absolutas tornam-se como o homem que se submete à lei e não a lei para o homem e, se são instituições permissivas, não atingem os objetivos. Na Idade Média as regras fundamentais eram apresentadas em toda a sua exigência, mas a prática era muito mais maleável e não considerava que houvesse casos sem solução.” E hoje mesmo, leio a entrevista do Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Conselho Pontifício da Cultura a António Marujo, no Público. Sinto a universalidade do Evangelho, nas duas frases que aqui transcrevo: “O cristianismo é descobrir o eterno no tempo. Descobrir a importância do instante, do tempo que se vive, mesmo para construir-se a si mesmo.” Assim, ao longo dos dias, vou perguntando, sem parar. A fé não tem o descanso das certezas, mas o desassossego do mistério. Absoluto mistério, Deus Nosso Senhor.
Leonor Xavier
Chego a casa sem esquecer a conversa e muito, muito teria que dissertar ou escrever sobre o que me passou pela cabeça. Corro às minhas mais recentes leituras de sábios e pensadores e académicos sobre ser católico e cristão, sobre a Igreja, sobre a vivência religiosa e a espiritualidade, sobre a desumanização, sobre o fanatismo religioso, sobre a intolerância, sobre os medos deste tempo que vivemos. A leitura estimula a concentração, a imaginação, acorda o entendimento. Para responder a muitas perguntas (Que pertença é a minha? Que fidelidade, que cumprimento? Que caridade sendo amor, que compaixão? Como, a tempo inteiro?) – descubro então a fórmula de José Mattoso, professor catedrático jubilado, especialista em Idade Média, autor da coletânea de ensaios “Levantar o Céu - Os Labirintos da Sabedoria”(ed. Temas e debates/Círculo de Leitores), que viveu anos de experiência monástica. Em comentário sobre os resultados da sondagem sobre Identidades Religiosas, a propósito da diminuição de católicos e do aumento de grupos religiosos diversos em Portugal, em entrevista a António Marujo no Público, diz: “Que estratégia a Igreja deveria seguir para não perder o lugar que chegou a alcançar? Penso que é sobretudo na vivência do evangelho na autenticidade da vida cristã.” Vou a seguir recortar a opinião de Alfredo Teixeira, sociólogo, coordenador desta mesma Sondagem, sobre a transformação das sociedades cristãs. Este fenómeno “não é o da não-crença, é o da reconstrução individual do religioso,” diz também ao jornalista António Marujo, usando a sua expressão científica para explicar que “a experiência, as crenças, os símbolos deixam de estar amarrados a um determinado contexto institucional e comunitário e passam a ser recompostos a partir da experiência individual.” Continuo a desfiar as minhas perplexidades e, no pensamento do Professor José Mattoso, encontro a flexibilidade das diferenças: “As ideologias traçam uma série de regras e se as regras são absolutas tornam-se como o homem que se submete à lei e não a lei para o homem e, se são instituições permissivas, não atingem os objetivos. Na Idade Média as regras fundamentais eram apresentadas em toda a sua exigência, mas a prática era muito mais maleável e não considerava que houvesse casos sem solução.” E hoje mesmo, leio a entrevista do Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Conselho Pontifício da Cultura a António Marujo, no Público. Sinto a universalidade do Evangelho, nas duas frases que aqui transcrevo: “O cristianismo é descobrir o eterno no tempo. Descobrir a importância do instante, do tempo que se vive, mesmo para construir-se a si mesmo.” Assim, ao longo dos dias, vou perguntando, sem parar. A fé não tem o descanso das certezas, mas o desassossego do mistério. Absoluto mistério, Deus Nosso Senhor.
Leonor Xavier
26 de Maio de 2012