27 janeiro 2013

ANO DA FÉ. UM DECRETO, PARA QUÊ? (3)

1. No passado Domingo, referi alguns dos movimentos que, durante a primeira metade do século XX, não aceitaram um destino previsível: a uma religião exterior ao tecer do mundo, sucederia um mundo fechado a qualquer transcendência.  
Esses movimentos recusaram as alianças da Igreja com os poderes de dominação que a divorciavam de Cristo, dos pobres, do mundo operário e dos novos percursos culturais de surpreendentes e estranhas linguagens filosóficas, científicas, poéticas, musicais, artísticas. Eles desejavam-na mais leve, mais disponível, sem fixações doutrinais ou rituais que a impedissem de caminhar no interior misterioso de Deus e do mundo. Para ser fiel à sua condição de peregrina do Absoluto, bastavam-lhe provisórios recursos de viagem.
Com erros e acertos, procuravam que a Igreja fosse vivida e entendida, na diversidade de carismas e serviços do povo cristão, como voz de Cristo num mundo dilacerado por duas terríveis guerras mundiais. A repressão exercida sobre as expressões dos mais audazes criou uma atmosfera irrespirável, em vários sectores católicos. Perdia-se a esperança de que ela se tornasse um espaço de liberdade. Temos muitas narrativas dessa situação.
2. João XXIII, com os olhos postos nesse mundo em transformação, apostou no aggiornamento da Igreja. Este termo, usado para expressar uma das intenções fundamentais do Vaticano II, é muito mais do que uma operação de marketing ou um truque, como se este Papa procurasse uma imagem modernaça para um catolicismo envelhecido. Entretanto, já circulava outra expressão de sinal oposto, “voltar às fontes”. Acabaram ambas conjugadas com os enigmáticos “sinais dos tempos”. A aproximação destas metáforas é um bom caminho para perceber a importância incontornável da iniciativa deste Concílio, sem cair na sua sacralização.
Quando se proclama o texto do Evangelho, na Eucaristia, começa-se sempre por dizer “naquele tempo”, como se fosse necessário manter a comunidade cristã colada ao passado. Se isso fosse verdade, o Evangelho seria uma boa notícia, não para nós, mas para “aquele tempo”. O paradoxo desta linguagem não é inocente nem passadista. Mantém o contraste de uma tensão essencial ao tempo cristão da fé.
 Por um lado, não temos de resolver os problemas do primeiro século da era cristã, sejam de ordem teológica, religiosa ou social, como certa investigação exegética poderia sugerir. Pelas pessoas de há dois mil anos, a única coisa que poderíamos fazer seria rezar pelo seu eterno descanso. O passado não é o objecto da evangelização.
 Se a Eucaristia exige a sua proclamação é, precisamente, porque o considera a melhor notícia para as pessoas do mundo de hoje. Com uma condição incontornável: que seja a partir dos problemas concretos das comunidades de hoje, nas linguagens que reconheçam as suas interrogações mais profundas e urgentes. A Eucaristia é de vivos e para vivos e só tem sentido se Cristo está actuante e pode vivificar a fé, a esperança e o amor da comunidade.
Então porque continuar a repetir e a insistir em dizer sempre “naquele tempo”?
O cristianismo nasceu não nas nuvens do mito, mas na história. O Verbo de Deus fez-se fragilidade humana. É nessa fonte, sempre fecunda, que precisamos hoje de beber. É nessa fonte que beberam todas as pessoas que, ao longo dos séculos, consentiram em deixar transformar a sua vida e trabalharam na transformação do seu tempo. Esta é a tradição viva, muito diferente de um museu da santidade.
3. Não podemos deixar de nos congratular com muitas iniciativas e publicações para celebrar, estudar e avaliar a herança do Concílio Vaticano II[i]. Esperemos que não seja para o arrumar de vez.
Dir-se-á que ainda não há distância suficiente para interrogar e avaliar o período pós-conciliar que, segundo alguns observadores, misturou a primavera com o inverno, de que falava Karl Rahner. Mais delicada ainda será a apreciação das medidas da Congregação da Doutrina da Fé que atingiram os mais inovadores teólogos e movimentos teológicos e pastorais, nos diversos continentes, sobretudo nas décadas de oitenta e noventa, medidas que, aliás, ainda não estão cansadas.
A distância, em temos históricos, é de facto curta. A Igreja dispõe de academias para avaliações históricas de carácter científico. Mas a vida e as instituições da Igreja não se situam todas a nível académico.
Diante dos gravíssimos problemas actuais da sociedade e da Igreja, nota-se um tal retraimento e timidez, que é legítimo perguntar: não estarão as comunidades cristãs a serem vítimas de um longo período no qual a sua voz não contou para nada? Quando, agora, nos interrogamos sobre a sua falta de empenhamento militante, talvez esqueçamos uma resposta antiga: ninguém nos convocou, ninguém quis ouvir a nossa voz, compartilhar as nossas dúvidas e interrogações, tomar a sério a nossa situação pouco canónica e pouco alinhada com a opinião dominante. Deixaram-nos em autogestão…
A preocupação do Ano da Fé talvez não seja para aqueles que só procuram paz e sossego.  
A fé cristã não é um calmante. É a certeza de que sem obras está morta (Tiago, 2-4).

Frei Bento Domingues. o.p.
in Público
 

[i]  Cf. Communio, nº 3 – Setembro; Didaskalia, vol. XLII, 2

21 janeiro 2013

A pregação desconseguida

Três dúzias de mulheres e uma de homens formavam a assembleia. Quase todos tossiam num ritmo alternado e em vários tons, a fazer lembrar um diálogo nocturno entre os diversos habitantes de uma floresta. O pregador animou-se com um livro da Bíblia para tocar as consciências sobre várias relações familiares e sociais. Disse mesmo que esse livro, nos tempos antigos em que foi escrito, era utilizado na escola para educar as crianças. Começou por falar exactamente da relação que os filhos devem ter com os pais: de atenção, obediência e reverência. Porém a assembleia era quase toda constituída por avós e bisavós. Os seus filhos, muitos deles já pais e avós também, nesse momento estavam quase todos muito longe, a maioria na condição de emigrantes, e os que viviam perto ficaram um pouco mais tempo na cama nessa estranha terça-feira com missa obrigatória. Depois falou dos jovens e do seu relacionamento e convívio com os mais velhos: de respeito, consideração e aceitação. Mas também não havia jovens naquela assembleia. Uns dois ou três, já maduros, tiveram a sorte de, nesse momento, estarem a pensar na azeitona que ainda tinham para apanhar, não sentindo assim o fardo de uma geração inteira a pesar nos seus ombros. Falou ainda da relação entre os esposos, mas o êxito também não podia ser grande. A maioria das mulheres e grande parte dos homens são viúvas e viúvos, e para os que ainda não são a vida é embalada dia a dia numa paz de almas sonolentas. Por fim falou das relações das pessoas no convívio social, nos divertimentos e nos negócios. Mas quase ninguém naquela assembleia teve e já dificilmente poderá ter negócios. Todos vivem de pequenas reformas convencidos de que são grandes, tal é a sua medida do dinheiro. Quanto a divertimentos, quais e como e onde? Convívio é o que algumas vezes desejam, mas onde está quem os possa visitar, ouvir ou dar-lhes atenção? Depois de quase meia hora a ouvirem o pregador num ambiente arrepiado de frio, não esboçaram qualquer expressão negativa ou de censura. Afinal já todos são mais ou menos surdos e os que ainda ouvem alguma coisa não percebem bem aquela linguagem que tranquilamente aceitam ser português. Se algum tivesse ouvido o nome do livro evocado teria dito à saída que se chama Bem-Será. Não estaria longe do conteúdo apresentado pelo pregador, mas o seu nome é Ben-Sirá (ou Eclesiástico). Ao rematar, o pregador revelava um ar satisfeito, talvez por sentir que desempenhou bem a sua função. A assembleia tinha o semblante próprio de quem cumpre um dever para depois se sentir bem com o dever cumprido. Mais umas voltas e reviravoltas num sobe e desce de joelhos emperrados e lentos, algumas inclinações de costas curvas e ombros empenados, gestos mais lentos que o adequado ao ritmo da cerimónia, e eis que se aproxima o fim. Depois de uma hora fria e pesada, e de penitente recolhimento, o padre despede os fiéis desejando-lhes que vão na paz do Senhor. Já no adro verifica-se que transportam realmente alguma paz, mas parece ser a mesma de todos os dias, que tem origem sobretudo nos males de que padecem e na muita solidão. Poucos se referiram ao que se tinha passado, só uma senhora perguntou em voz baixa: o padre que disse hoje? Eu não percebi nada! Terá cascado em alguém? Mas nem daí veio matéria para tornar o acontecimento mais picante e, assim, mais quente. Como diria aquela amiga angolana em que estou a pensar, o rapaz começou bem na bola mas depois desconseguiu. Entretanto o pequeno carro arrancou a caminho de outra freguesia. Tive de explicar que não senhor, que o senhor padre não reza muitas missas por causa do dinheiro, é um esforço que lhe é pedido para que mais gente possa ter missa. Para mim mesmo pensei que se poupasse vinte minutos em cada uma, ao fim do dia teria uma hora grande bem conseguida.
Mas ao despertar deste breve pensamento, dei-me conta de que estava a ficar sozinho. As coxas, surdas e aleijadas partiram numa lenta mas decidida corrida de cinquenta metros em bengala, em direcção ao tendeiro que às vezes acampa nesse espaço mágico entre as portas da igreja e as portas das casas. Aí, sim, houve risos, falas atropeladas, exclamações de uma alegria feliz. No meio daquela algazarra só tive um pensamento: a tenda do Senhor, de que tanto se fala na Bíblia, nem sempre é lugar de alegria, mas a tenda do senhor João, com as suas saias e camisas, batas e camisolas, chinelos de várias cores, é sempre um lugar de festa que, neste caso, espantou o frio de uma missa seca com pregação desconseguida.
Deus é Pai!
Frei Matias, O.P.
2013.01.21

20 janeiro 2013

ANO DA FÉ. UM DECRETO, PARA QUÊ? (2)

1. Em 1953, numa curta viagem de camioneta, sentou-se, ao meu lado, um padre de outra congregação religiosa. Sobre as características e as imagens de marca das invocadas na conversa, adiantou: “em humildade ninguém nos supera”. Não estava a fazer humor. Fiquei tão alérgico ao elogio da humildade como às disputas entre arrogantes. Nada, no entanto, mais inspirador do que uma pessoa humilde.
Esteve, em Portugal, Frei Bruno Cadoré. Nasceu em 1954, formou-se em medicina, entrou nos Dominicanos, foi director do Centro de Ética Médica do Instituto Católico de Lille e, depois de ter sido Provincial em França, foi eleito, em 2010, Mestre Geral da Ordem.
Não interessa explicitar aqui o que foi o seu brilhante e inspirador percurso profissional e dominicano, pois ele próprio nunca se lhe refere. É como se não tivesse existido.
Veio para visitar a família dominicana portuguesa, na diversidade dos seus ramos e revelou um estilo que não é muito habitual nos eclesiásticos.  
Na primeira reunião com a comunidade a que pertenço, procurou ouvir-nos acerca da situação da Igreja em Portugal, da Diocese em que estamos inseridos, do papel das ordens e congregações religiosas, masculinas e femininas, segundo o carisma de cada uma. Passou, depois, ao encontro fraterno, com cada um, individualmente, não para falar, mas para escutar. Durante meia hora ouviu-me, sem dizer uma palavra, despediu-se, sem me fazer qualquer recomendação. É evidente que debateu, com os órgãos das instituições da Província Dominicana Portuguesa, as questões com que ela está confrontada. Fez, também, a visita às monjas dominicanas, fundadas, no século XIII, por S. Domingos. Ainda antes do ramo masculino, eram elas a Santa Pregação. Encontrou-se também com as outras religiosas e com os leigos dominicanos.
Se Cristo veio, não para condenar, mas para manifestar o amor de Deus pelo mundo, como se poderá chamar evangelização, nova ou antiga, às obras, palavras e atitudes que não sejam escuta humilde dessa amizade divina?
O método de Frei Bruno - muito ouvir antes de falar - foi praticado e exposto na Paróquia de S. Domingos de Benfica, ao apresentar a tradução da obra clássica sobre A Pregação, de Humberto de Romans, e as Actas do Colóquio sobre a Restauração da Província Dominicana em Portugal.
2. É antiga a convicção de que o silêncio é o pai dos Pregadores e que a graça da pregação é secundada pelo estudo e pela contemplação. A fórmula dominicana foi cunhada muito cedo e já fazia parte do ensino de Tomás de Aquino: contemplar e dar testemunho da realidade contemplada. Era, desde a antiguidade, conhecida e exaltada a superioridade da vida contemplativa em relação à vida activa. Em benefício da sua própria causa, o santo doutor observou: a vida activa, que nasce da abundância da contemplação, vale mais do que a pura contemplação. Iluminar é melhor do que ser, apenas, luz. Foi este, aliás, o estilo da vida escolhida por Jesus.
A resposta é brilhante. Na prática, continuava a rivalidade entre o tempo consagrado ao principal e o tempo gasto com realidades temporais, inferiores. O tempo gasto na actividade esvaziava os ganhos da contemplação. A oração de S. Domingos, testemunhada pelos seus contemporâneos, estava sempre povoada pelas alegrias e tristezas do quotidiano. O trabalho apostólico não o dispersava nem o esvaziava.
Na sua conferência, Frei Bruno Cadoré saltou fora do esquema de falsas oposições. A fonte e o alimento da contemplação não se restringem ao quadro conventual ou às celebrações litúrgicas. A Igreja - e nela o dominicano -, não se pode apresentar ao povo cristão, aos membros das outras religiões, aos agnósticos e aos ateus como quem está na posse da verdade, dos bons princípios, dos bons caminhos e das boas soluções. Essa arrogância impede o caminho humilde da escuta, do estudo e do diálogo com todos os mundos em que se encontra, ou aos quais se dirige: a bondade e a verdade, servidas ou traídas, estão disseminadas em todos os estilos de vida e em todas as dimensões da existência. A Igreja, sem crescer e amadurecer nesse convívio, não pode partilhar nada, está fora de jogo. Esquece que Deus se insinua, de muitos modos, na vida das pessoas, expressa na diversidade de problemáticas e linguagens das sociedades, nas suas diferentes épocas e culturas. Os processos não são lineares e nunca nada está garantido.  
3. Em vários países, sob o ponto de vista cristão, o século XX foi prodigiosamente fecundo, apesar de duas guerras mundiais. Basta pensar nos movimentos bíblico, litúrgico, missionário, ecuménico, social, na redescoberta da teologia patrística e medieval, nos novos modelos e paradigmas de teologia - das realidades terrestres, do trabalho, da matéria, da evolução, da conjugalidade -, assim como nas formas de evangelização da pura presença, nos meios mais afastados das instituições da Igreja. Foi uma história exaltante de muitas esperanças e desilusões continuadas, pela repressão que se abateu sobre vários destes movimentos.
O Vaticano II, iniciativa de um papa que tinha os olhos postos no mundo em transformação e no aggiornamento da Igreja, recuperou e alargou a geografia da esperança.
Como e porquê se perdeu este impulso?

Frei Bento Domingues. o.p.
in Público

17 janeiro 2013

Depressão geral

Quando quase tudo corre mal, no país e no mundo, com a crise económica a acentuar-se, o sistema financeiro que se esboroa, o desemprego a crescer, os jovens a dependerem das famílias porque não há primeiros empregos e, ou ficam a arrastarem-se por cá ou vão procurar trabalho noutras terras… Os impostos a subirem e as prestações sociais a serem cada vez mais instáveis, perguntamo-nos se aquilo que tomamos como adquirido, direitos conquistados, são alguma coisa de estável em que vale a pena apostar ou confiar.
O pessimismo tomou conta de nós, deixamos de esperar “os amanhãs que cantam”, com um final feliz para o sentido da História e, acabrunhados já esperamos ouvir cada dia piores notícias do que na véspera porque pressentimos que o futuro não trará nada de bom.
A confiança de que há progresso na História humana, que esse progresso é bom para a humanidade e para o planeta num ecossistema coerente, deixou de existir. Esperamos a implosão do planeta, o degelo das calotes polares, uma seca persistente como horizonte de fatalidade se continuarmos neste estilo de desenvolvimento predador da maior parte dos recursos disponíveis de que só uma pequena minoria da humanidade beneficia enquanto a maioria vive das migalhas do banquete dos ricos.
Ora este cenário é sem dúvida uma bomba relógio para manifestações de violência entre povos, entre religiões, entre culturas. As raízes do terrorismo e dos vários fundamentalismos penetram neste ambiente de injustiça global para o qual nenhuma ideologia ou sistema político encontrou solução. A democracia, na sua frágil ambição de concertar diferentes perspetivas num debate alargado que se legitima em processos eleitorais, fica ameaçada de colapso face à possível emergência de soluções “messiânicas” que suspendem a liberdade nas suas diversas modalidades e se ancoram na necessidade subjectiva de segurança e estabilidade que tanto os indivíduos como os povos anseiam.
Em Portugal temos o velho mito do Sebastianismo, no qual delegámos ao longo da História a esperança que alguém vai aparecer como salvador da Pátria e dar um rumo ao desnorte que nos aflige. Durante as últimas décadas esperamos que a CEE, depois EU, nos ajudasse. Agora perdemos as ilusões; o sistema comunitário tem o nome simpático de “comunidade” e de “união” mas na realidade o seu funcionamento não é igualitário. A moeda comum, serve  como traço de união, mas o que um cidadão alemão compra com 100€ é bem diferente do que o que um português pode comprar. O salário mínimo em cada um dos países tem diferenças verdadeiramente chocantes. O fosso entre ricos e pobres, entre trabalhadores e desempregados, entre jovens e idosos, é cada vez mais acentuado. As nossas sociedades ocidentais (des) gastaram os valores da Revolução Francesa, temos pouca igualdade, liberdade e fraternidade, e o Estado Providência, protector e seguro, é quase apenas uma recordação do século XX.
Que fazer perante uma situação que se configura como um beco sem saída? As soluções ensaiadas historicamente já não são aplicáveis, austeridade a todo o custo asfixia a economia, o pano está velho é escusado remendá-lo e colocar-lhe novos bocados. O tecido rasga-se! Neste caso saltamos da metáfora têxtil, ainda que evangélica, para o tecido social que nos envolve.
Já ouvi gente dizer que, perante a falta de perspetivas de uma velhice confortável, com uma pensão de reforma decente, preferia ter um ataque cardíaco já, o que lhe pouparia muitos aborrecimentos e seria muito mais barato para o sistema da segurança social, contrariando a taxa de longevidade crescente.
Não está na tradição cristã o suicídio, pelo que provavelmente este desabafo é um desejo indireto de pedir a Deus o encurtamento da vida e uma boa e rápida morte. Morrer na paz de Deus e “deixar de ter chatices”! Parece uma saída airosa…
Só que Deus não costuma atender a estes pedidos de fuga ao mundo e à sua complexidade. Deixa-nos a responsabilidade de arranjar o pão nosso de cada dia, para nós e para os irmãos.
Suspeito que uma versão pouco ortodoxa do Purgatório seja isso mesmo, assumir as “chatices da vida” que não são vividas post mortem mas sim no dia-a-dia de qualquer ser humano que se preocupa minimamente com o estado a que chegámos como humanidade e com as pessoas concretas que mais sofrem, na certeza do desejo de fraternidade de sermos filhos de Deus.
Cabe-nos pois manter a chama viva e confiar, como diz o povo, que “Deus não dorme!”…Nós é que estamos a viver uma espécie de pesadelo e que já é tempo de começarmos a acordar.
Como o Império Romano se desmoronou face às invasões bárbaras, num processo lento e inexorável, assim o nosso modelo de desenvolvimento sobre o qual depositámos as nossas expectativas, se degrada e afunda no abismo…
Confiar que podemos fazer mais e melhor e que, se a Criação nos foi confiada, temos que ser capazes de encontrar soluções, de inovar, sem medo das mudanças necessárias. Claro que isto é provavelmente um pio desabafo, mas alguém tem melhor solução? É que realmente todos precisam do pão nosso de cada dia!
Se acreditarmos que o Espírito sopra onde quer, teremos a certeza de que não estamos abandonados e procuraremos os sinais da Sua presença entre nós. O Reino é uma promessa mas já está entre nós. Por vezes a nossa depressão coletiva impede-nos de olhar e ver as sementes de um mundo novo que nasce penosamente do velho que está a cair aos bocados.
Confiar e estarmos atentos para resolver os problemas de cada dia é a chave de leitura do difícil presente em que estamos mergulhados e ao qual não adianta tentar escapar.
“Ajuda-te que Deus te ajudará,” resume esta atitude em termos de sabedoria popular. Tirando a dimensão individual do provérbio e colocando o acento no Próximo, saberemos então procurar uma saída que não seja embater teimosamente no beco onde nos encontramos.

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13 janeiro 2013

ANO DA FÉ. UM DECRETO, PARA QUÊ? (1)

1. Enquanto não chegar o fim do mundo, depois de um ano, há sempre outro. Para não o enfrentar como uma aposta no vazio, é corrente consagrá-lo a um desejo, em forma de projecto. Diz-se que, perante a crise que atravessa o país, na conjuntura internacional em que temos de nos mover, é difícil configurar um caminho, com previsões que não se confundam com adivinhas ao sabor dos palpites de optimistas ou pessimistas e segundo os interesses que cada um tenta defender.
A verdade é que uns já decretaram que Portugal não tem solução, nem dentro nem fora do Euro e que o melhor é a liquidação total, a preço de saldo. A própria ideia de país independente seria uma ficção e neste tempo, comandado pela transformação e globalização dos negócios, é uma crença ridícula. Outros continuam a falar da urgência de uma política patriótica, quando a pátria de cada um é aquela para onde se consegue imigrar. Seja como for, os velhos vão continuar a morrer e se os nascimentos continuarem a diminuir, a sorte do país é previsível. Não será preciso dar-se ao trabalho de “repensar Portugal”, como desejava o Pe. Manuel Antunes.
 Diz-se isto como se poderia dizer outra coisa qualquer. Quando tudo passou para a ordem do inevitável, já nada tem sentido. O próprio sofrimento das vítimas da história da crise não conta para nada.
       A incapacidade de questionar, em profundidade, esta versão trituradora da máquina capitalista é a vergonha do nosso tempo. O Papa relembrou-o, muito recentemente, mas os economistas, os gestores, os banqueiros, os ministros que se confessam cristãos preferem espiritualidades de chá de tília religiosa, a ouvir o clamor dos pobres e dos empobrecidos e questionar teorias que mostram a sua inadequação, pelos frutos que produzem. As teorias são para os seres humanos, não estes para teorias, onde as pessoas estão sempre a mais.
       2. As interrogações são inevitáveis: tanta ciência económica e financeira, ensinada nas Universidades Católicas, não será capaz de imaginar contributos para alternativas concretas, técnica e politicamente viáveis? A Banca é para salvar as pessoas ou serão estas, as exploradas, que devem salvar os interesses da Banca, mediante decisões governamentais? Não será possível desconstruir configurações políticas que, nos seus efeitos, resultam em grandes negócios para uns e em castigo para a maioria da população? Estaremos numa civilização esgotada a transitar de continente para continente, enquanto sistema de exploração, sem tentar curar as suas raízes?
 Os chamados regimes democráticos fazem tudo para não se distinguirem das ditaduras. O fascínio pela China é interessante.
Com isto tudo, não creio que se possam extrair dos Evangelhos ciências ou políticas confessionais, em concorrência com ciências e políticas laicas, nem aceito que se diga que quanta mais ciências menos religião. Há grandes cientistas e políticos crentes, agnósticos e ateus.
Francisco José Ayala, um dos maiores representantes do neo-darwinismo, tem uma posição que me parece muito sensata: não vejo razão para pensar que as descobertas científicas sejam incompatíveis com a fé religiosa. A ciência procura descobrir e explicar os processos da natureza: o movimento dos planetas, a composição da matéria e do espaço, a origem e a função dos organismos. A religião trata do significado e propósito do universo e da vida, das relações apropriadas entre os humanos e o seu Criador, dos valores morais que inspiram e guiam a vida humana. A ciência nada tem a dizer sobre estas matérias, nem é assunto da religião dar explicações científicas, para os fenómenos que têm lugar na natureza.
3. Daqui não se pode concluir que os cristãos possam ser indiferentes ao que se passa na sociedade. Não dispõem de uma mensagem, descida do céu, para os levar para o céu, sem se importarem com o que se passa na terra. Se a Bíblia fosse, apenas, revelação divina escrita por autores inspirados, não teria de dar contas de nada nem a ninguém, era puro ditado sobrenatural. Esta é a posição do fundamentalismo mais ignorante. Nessa perspectiva, a Bíblia poderia ser decorada, mas nunca estudada. Não é esse o pensamento católico actual. O documento A Interpretação da Bíblia na Igreja (1993) liberta a investigação de qualquer constrangimento. A Bíblia não remete para si mesma: aponta para o mistério de Deus e para o mistério do mundo. Deus não estava calado antes da Bíblia, nem emudeceu depois do último parágrafo da Sagrada Escritura. É preciso aprender a escutá-lo na experiência de cada um, nos acontecimentos da sociedade e em todas as tentativas para decifrar o sentido da vida.
Logo após o Vaticano II, E. Shillebeeckx, para lhe ser fiel, desenvolveu a perspectiva do mundo como “lugar teológico”: a história humana, em todas as suas manifestações, é o espaço e o tempo da contínua revelação de Deus, acolhida ou traída, a decifrar em cada conjuntura cultural.
O Ano da Fé não foi decretado para dizer que a Igreja tem a resposta pronta para tudo. É porque a não tem que, na humildade, tem de partir para a escuta de todos os mundos. Quais serão esses mundos?
Frei Bento Domingues, O.P.
         in Público

06 janeiro 2013

PRESÉPIO ABERTO

1. A imagem “presépio aberto” começa por ser enigmática, vai-se tornando sugestiva e acaba por ser mais pertinente e fecunda do que outra muito publicitada, “pátio dos gentios”. Tem especiais virtualidades para sugerir o espírito e o alcance deste domingo da Epifania.
Foi colhida por Agustina Bessa-Luís numa carta do grande romancista judeu, Franz Kafka (1883-1924), dirigida à sua irmã, a propósito das dificuldades que ela sentia com um filho de 10 anos.
Agustina recriou essa imagem numa conferência, no Goethe Institut do Porto, saltando fora das habituais preferências temáticas sobre a obra do grande escritor de Praga, “apresentando-o como um investigador prodigioso dos problemas da educação.
Agustina destaca algo que poderia passar por uma banalidade sociológica: Kafka faz notar à sua irmã a diferença entre o equilíbrio familiar de pobres e de abastados. O mundo e a vida de trabalho estão presentes na casa do pobre e a atmosfera tóxica da pressão familiar não se produz. A criança do pobre é uma parte do mundo e como tal reconhecida. Não digo reconhecida como privilegiada, mas como igual na partilha dos sofrimentos e dos prazeres. Kafka dá como exemplo o nascimento de Cristo num presépio aberto onde o mundo é imediatamente presente na figura dos Reis Magos e dos pastores, enquanto o quadro familiar fechado do Homem afortunado tende para o desequilíbrio do próprio amor.
Pode-se estranhar que seja um judeu a recomendar esta imagem. De facto, o próprio Kafka e a sua obra são um presépio aberto, um facto messiânico de nascimento em que o mundo está presente: todos nós o podemos abordar, visitar, amar.
A banalização ou a ocultação dos presépios escondem as teologias das construções literárias do presépio dos evangelhos de S. Mateus e de S. Lucas. Reflectem, ambos, um debate interno ao próprio judaísmo. As primeiras gerações dos discípulos de Jesus eram formadas por mulheres e homens judeus que desejavam abrir por dentro o próprio judaísmo. O presépio reflecte o que se passou na vida adulta de Jesus e na construção das comunidades com a presença do mundo pagão.
Jesus não nasce na cidade de Jerusalém, centro do poder político e religioso. Os pastores representam, precisamente, os que não frequentavam o culto oficial e são os primeiros a chegar ao presépio. Os Magos passam por Jerusalém, mas não ficam lá. A estrela desloca-os para a periferia, significando que se trata não de um fenómeno astronómico, mas teológico. Se os judeus da religião ortodoxa não reconhecem Jesus, os Magos, pagãos, procuram-no. Jesus, com Maria e José, depois da viagem pelo Egipto não vão morar no templo. Vão trabalhar para Nazaré, no meio de toda a gente. O presépio realiza, em miniatura, o que foi a revelação de Jesus na sua vida adulta: Deus anda à solta e faz a sua morada, o seu templo, onde menos se espera e faz família com quem não é da família.
2. Quando todas as indicações levavam a crer que em 2012 continuariam os artifícios de esquecimento do Vaticano II, realizado há cinquenta anos, pequenas iniciativas foram capazes de desencadear um movimento não apenas de recuperação da memória, mas esboçar um confronto com as questões actuais das igrejas, das religiões, do ateísmo, do mundo e tornar urgente a reconfiguração do futuro, num universo cada vez mais globalizado.
Não se esqueça que L’ Osservatore Romano, no dia seguinte ao anúncio do Concílio, feito por João XXIII, ocultou essa notícia, a mais importante no campo religioso do século XX e quando já ocupava a primeira página da imprensa mundial. Foi um boicote falhado, mas indicava que o presépio do mundo em mudança, com as suas alegrias e tristezas, não fazia parte da Cúria Vaticana.
Foi a paciência e a constância do santo João XXIII que conseguiu alterar esse clima para que a palavra aggiornamento fosse compreendida como a palavra de ordem da missão da Igreja nas sociedades contemporâneas, trabalhando na destruição dos muros que obrigavam sempre a pensar nos outros como inimigos, como incapazes de mudar.
Dir-se-á que não resolveu tudo, que apesar do trabalho dos padres conciliares ficou muita coisa adiada e que outros tentaram esquecer, desvirtuar e desfazer. A história humana da fé é de pequenos passos, não é uma viagem de TGV.
3. A imagem de presépio aberto, não se deve confundir com um presépio fixo, com aberturas de entrada e saída, para receber visitas. O presépio, apontado pelas figuras tradicionais, é feito por todos os que procuram a paz, baseada na verdade, na liberdade, no amor e na justiça, como lembrou João XXIII, há cinquenta anos, na Pacem in Terris.
Bento XVI diz o que é preciso recusar: a mentalidade subjacente ao capitalismo financeiro desregrado; as ideologias do liberalismo radical e da tecnocracia; a convicção de que o crescimento económico se deve conseguir mesmo à custa da erosão da função social do Estado e das redes de solidariedade da sociedade civil, bem como dos direitos e deveres sociais. Falta-nos construir o presépio de Cristo no qual todos os seres humanos, na diversidade de todos os povos, culturas e religiões possam dizer: somos um só mundo.

Frei Bento Domingues, O.P.
in Público

01 janeiro 2013

BOM E MAU DESASSOSSEGO

1. Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, é um dos heterónimos criados por Fernando Pessoa. Compôs o Livro do Desassossego, a sua cobardia: Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação da vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.
A vida é um desassossego, também, por uma boa razão. É muito desagradável olhar para alguém muito satisfeito com ele próprio e com a sua obra. Fica-se com a impressão de que já morreu e finge que está vivo. O desassossego significa que uma pessoa ainda não está acabada, ainda tem futuro, está a fazer-se. Uma Igreja sossegada, convencida de que é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo, precisaria de alguém que lhe lembrasse que parou antes de tempo.
Reuniu-se, no ano passado, em Sínodo, para abordar a temática da Nova Evangelização. Não faltou quem dissesse que foi quase um Concílio. Foram abordadas algumas questões importantes, mas não sabemos o que daí vai resultar. Essa, porém, não é a questão mais importante. Sínodo ou Concílio é uma reunião de delegados que não receberam delegação da Igreja, do conjunto dos católicos. Ficar-se sossegado com este método é adiar uma reforma urgente, por mais desassossego que provoque no mundo católico. Quando, no Sínodo, se afirmou que é preciso mudar a situação das mulheres na Igreja, alguém perguntou o que pensam elas, de forma verdadeiramente representativa, do estatuto que lhes é reconhecido ou negado? Quanto à situação eclesial dos divorciados casados em segundas núpcias, considerá-los simplesmente como pecadores - e que, por isso, não podem comungar -, ou dizer que não se trata propriamente de pecado, mas de uma situação incompatível com a nova aliança significada na Eucaristia, não se toca na pergunta essencial: Que pensam os divorciados recasados do estatuto que lhes é atribuído? Será que o verdadeiro sentido da Fé (sensus fidei) se tornou um exclusivo da hierarquia? Não pertence ele ao NÓS - sujeito de toda a Igreja - e que a expressão Nós Somos Igreja reproduz com exactidão?
2. Dadas as conquistas sociais, culturais e políticas que as mulheres já conseguiram, diferenciadas segundo os países e continentes, existe a tentação de não olhar de frente os crimes que continuam a cometer-se contra a parte maior da humanidade. Direitos e deveres implicam igualdade social de mulheres e homens. A hierarquia católica e as autoridades de outras confissões religiosas não podem reclamar essa igualdade na sociedade civil e negá-la no campo religioso, incapacitando-as de se tornarem as grandes impulsionadoras, a nível local e mundial, de mudanças inadiáveis.
Não se pode dizer que os crimes contra as Mulheres – violência física, psicológica e social, tráfego de mulheres, comércio de prostituição – não suscitem movimentos de indignação e de intervenção. Os níveis de conscientização dos direitos das Mulheres cresceram um pouco por toda a parte, resultado das suas lutas. Quando se olha, porém, para casos como os que a imprensa relata todos os dias – muito poucos em comparação com o que realmente se passa – e dos acontecimentos monstruosos como os que, ultimamente, ocorreram na Índia e não só, podemo-nos aperceber do que falta fazer. Quase tudo.
Quando surgem pedidos de abaixo assinados, quando as organizações de mulheres intervêm publicamente, solicitando adesões e divulgação, os homens não podem reagir como se fossem “questões de género”. São questões do género humano, questões de mulheres e de homens, seja qual fôr o credo religioso, cultural ou político.
As representações da boa relação entre homens e mulheres aprendem-se no berço, na escola, no namoro, na conjugalidade e até à morte. É a vida concreta, em todas as idades e situações, que se deve tornar o caminho de relações de mútua ajuda, libertas e libertadoras.
Desassossegar a situação actual é o melhor caminho para o bom sossego no futuro. Que 2013 nos dê uma paz desassossegada.
Frei Bento Domingues, O.P.
1 de Janeiro de 2013