1. João XXIII, um mês antes da abertura do Concílio Vaticano II, na radiomensagem de 11 de Setembro de 1962, espantou os próprios católicos com a declaração: “hoje, a Igreja é especialmente a Igreja dos pobres”. Em número, esta afirmação não podia ser mais exacta. Porque terá, então, levantado tanta celeuma? Creio que, passados cinquenta anos, continua a ser estranha. O Papa Francisco acaba de surpreender muita gente, com gestos e atitudes, que já deveriam ser uma prática corrente. É certo que o Vaticano II alterou uma eclesiologia piramidal. Mas não podia mudar a mentalidade e representações que foram cimentadas ao longo de séculos. Ainda hoje, quando se fala de Igreja não pensamos logo em comunidades cristãs. Pensamos em padres e na hierarquia eclesiástica presidida pelo Papa, rodeado por um conjunto cardeais, com sede no Vaticano. Essa não é a imagem mais directa da pobreza. Verdadeira ou falsa, não é apenas a propaganda anticlerical a dizer que a Igreja é rica e está ao serviço dos ricos e poderosos.
A Igreja teve um começo pobre e Jesus Cristo não deixou grande fortuna aos seus discípulos. Ao longo dos tempos, a santidade da Igreja será avaliada pela capacidade de fazer sua a causa dos pobres.
Importa distinguir a pobreza escolhida, da pobreza imposta. Uma é virtude, a outra, uma violência. Há austeridade que é frugalidade, simplicidade de vida. Há programas de austeridade para os outros, que tornam a vida impossível aos pobres e remediados.
Ninguém se faz cristão para ser rico, mas sendo rico, terá mais motivos para ajudar a libertar os que são vítimas da pobreza imposta. A partilha com os mais pobres é virtude. Dado o destino universal dos bens criados, em caso de necessidade urgente, não é roubo apropriar-se daquilo que está na posse de outrem. O direito à propriedade privada, em caso de necessidade, deve ceder diante do direito à vida (Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae II-II q. 65, 7; 2Cor. 8, 9-15).
2. O Cardeal Gerlier referindo-se às tarefas do Concílio, retomou as palavras de João XXIII para dizer: se não as examinarmos e estudarmos, tudo o resto corre o risco de não servir para nada. Dois meses depois da abertura do Vaticano II, o Cardeal Lercaro, já na aula conciliar, referindo-se à mesma questão, afirmou com desencanto: em dois meses de trabalho e investigação verdadeiramente generosa, humilde e fraterna, todos nós sentimos que falta alguma coisa ao Concílio.
Na altura, não lhe ligaram muito. No entanto, vários bispos aperceberam-se de que, uma Igreja voltada para os pobres, ainda estava longe da sensibilidade da maioria. Decidiram reunir-se, confidencialmente, com regularidade e sem sectarismos. Poucos dias antes do encerramento do Concílio, um bom grupo de padres conciliares celebrou a Eucaristia nas catacumbas de santa Domitila.
Rezaram para serem fiéis ao “Espírito de Jesus”. Ao terminar a celebração, assinaram o que foi chamado o Pacto das Catacumbas, que desafiava os irmãos no episcopado a levarem uma vida de pobreza e a serem uma Igreja “serva e pobre”: “Nós, bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, conscientes das deficiências da nossa vida de pobreza segundo o Evangelho, motivados uns pelos outros, […], com humildade e com consciência da nossa fraqueza, mas também com a determinação e a força da graça de Deus, comprometemos ao que segue…”.
Na aula conciliar a causa dos pobres não esteve ausente (LG 8 e GS1), mas como diz Jon Sobrino, de forma comedida.
3. No documento Pobreza da Igreja, Medillin (1968), os bispos latino-americanos assumem o Pacto das Catacumbas. Constatam as queixas dos pobres: “a hierarquia, o clero e os religiosos são ricos e aliados dos ricos”. Embora se confunda, com frequência, a aparência com a realidade, reconhecem que vários factores contribuíram para criar a imagem de uma Igreja institucional rica: os grandes edifícios, as casas de párocos e religiosos, quando são superiores às do bairro em que vivem; carros próprios, por vezes luxuosos; a maneira de se vestir, herdada de épocas passadas.
“No contexto de pobreza e até miséria em que vive a maioria do povo latino-americano, os bispos, sacerdotes e religiosos têm o necessário para a vida e também uma certa segurança, enquanto os pobres carecem do indispensável e se debatem no meio de angústia e incerteza”.
A posteridade de Medillin, com as vicissitudes da Teologia da Libertação e as intervenções paralisantes da Congregação para a Doutrina da Fé, ao tempo do Cardeal Ratzinger, matou muitas esperanças, muitos cristãos e até o Bispo Oscar Romero.
Nas teologias actuais, a Igreja dos pobres não é um tema muito apetecido e o referido Pacto voltou para as catacumbas.
O Papa Francisco retomou os gestos e a linguagem da ressurreição da Igreja dos pobres e para os pobres. Que não se canse e continue a provocar-nos...
Frei Bento Domingues, O.P.
23.06.2013
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