1. Consta que, nas “redes sociais”, circulam campanhas para correr com o Papa Francisco. Como João Paulo I não se soube defender das consequências de ter ressuscitado o estilo das atitudes, palavras e gestos de João XXIII, diz-se que o papa Francisco pode sair-se mal com o seu “populismo”, diversamente interpretado. Para uns, não passa de uma táctica para esconder o seu velho conservadorismo; para outros, é o caminho escolhido para ganhar apoios em todo o mundo, dentro e fora da Igreja Católica, para liquidar, de vez, o poder da Cúria Romana. Porque não pôr a hipótese de se tratar, sobretudo, de um modo de ser, de uma característica de personalidade?
A acusação mais grave contra este papa não se prende com questões de estilo, mas, sobretudo, de carácter teológico. O Pontífice romano teria falado de Deus, como Pai e Mãe, como Mãe, ou como Rosto materno de Deus.
Esse género de antropomorfismos estiveram muito em uso em certas comunidades cristãs da América Latina e atraíram o sorriso atrevido de João Paulo I. Não agradou muito aos seus sucessores. Regressou agora, de forma descontraída, mas embateu com as rotinas de uso corrente no âmbito das religiões monoteístas: Deus é masculino, podemos chamar-lhe pai; mãe, nunca! Servir para pai e mãe, um deus unissexo, não fica bem na boca de um papa!
Na tradição da teologia mística do famoso Pseudo-Dionísio, o Areopagita (séc. V-VI), dizer Deus é referir-se à profundidade infinita e inapreensível do mistério. Nenhum nome lhe pode ser verdadeiramente adequado. Ao ser evocado na linguagem simbólica, sabe-se que esta vem dos abismos do silêncio e carrega, em cada afirmação, uma negação para vencer a tentação da idolatria. Quando alguém se fixa em representações de um deus unissexo ou pluri-sexual não se salta para fora dessa prisão. Só é possível chamar a Deus Pai e Mãe ou referir-se ao rosto materno de Deus, quando se vive na raiz da linguagem metafórica. Esta remete para a Realidade que não cabe em nenhum conceito nem se esgota em nenhuma experiência. O cristianismo não pode esquecer as suas raízes: o amor crucificado que não renuncia à pátria da alegria. Às expressões de “espiritualidades apoetadas”, de meladas facilidades, aconselharia uma cura na poesia de Herberto Helder, de Paul Celan, de Angelus Silesius ou na mística do Mestre Eckhart.
2. As atitudes e as palavras do Papa Francisco não são nem herméticas, nem lamechas. São bem-humoradas. Mostrou-o, mais uma vez, no dia 7 de Junho, na Aula Paulo VI, no encontro onde recebeu delegações dos colégios jesuítas da Itália e da Albânia. O cenário exigia solenidade, exaltação de grupo e aproveitamento apologético. Logo à partida, o Papa, olhando para a assembleia, destruiu um discurso preparado, de cinco páginas, que lhe pareceu completamente inadequado e aborrecido. Limitou-se a fazer um pequeno resumo e optou pelo diálogo. Faziam-lhe perguntas e ele respondia. As perguntas das crianças iam bem preparadas e tocavam na sua opção de ter renunciado ao luxuoso apartamento no Vaticano e a um grande carro. O importante foi a resposta. Não deu uma lição de grande asceta. Fixou-se em algo muito mais simples: não gosta de viver só. Gosta de viver no meio das pessoas. É uma questão de personalidade e contou o que, com humor, respondeu a um professor: por razões de ordem psiquiátrica.
3. No referido encontro, nem só as crianças tinham perguntas: “Como adultos das escolas jesuítas, diga-nos algumas palavras sobre como poderá ser jesuítico e evangélico o nosso compromisso, o nosso trabalho, hoje, em Itália e no mundo?” A resposta não podia ser mais directa nem mais incisiva: ”Nós, cristãos, não podemos fazer de Pilatos, lavar as mãos. Temos de nos meter na política porque a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política. Diz-se que a política está muito suja, mas eu pergunto, está suja porquê? Será porque os cristãos não se metem nela com espírito evangélico? É a pergunta que eu faço. É fácil dizer que a culpa é dos outros. Mas eu, o que faço? Isto é um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever cristão”.
Não basta dizer que os cristãos se devem meter na política. Importa reflectir sobre as razões que os movem nessa participação activa. O Papa destaca uma coincidência entre a razão política – a busca do bem comum – e a maior virtude teologal - a caridade. No entanto, tudo pode ser corrompido. Os antigos diziam que o melhor se pode tornar péssimo, optima péssima. Por isso, acrescenta o Papa Francisco: na política, mas com espírito evangélico. Para servir e não para se servir.
A política, hoje, está dominada pela finança e pelos seus jogos, locais e globais. O prestígio, no âmbito político, resulta de uma carreira brilhante no mundo da finança. Santiago Onzoño, da IE Business School, recorda que os grandes professores de finanças, sobretudo os que vivem nos Estados Unidos, estão a descobrir as virtudes da modéstia e da humildade. Estamos perante uma ciência ainda na fase da infância.
Em Portugal, continuam na fase da arrogância, de quem vive no segredo dos mercados, dos seus inescrutáveis desígnios e nos ditam as suas indiscutíveis leis. Ser cristão ou não é igual.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público
16 de Junho 2013
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