1. A
ressurreição do obviamente humano e cristão, nos gestos e nas palavras do Papa
Francisco, depois dos artificiosos muros levantados, nas últimas décadas, por
condenações e propaganda - ocultando crimes financeiros e comportamentos
pedófilos - tornou-se a mais pacífica, profunda e surpreendente revolução do
nosso tempo. Este processo exemplar tem uma história.
Não esqueçamos que o
anúncio do Vaticano II aconteceu de modo totalmente inesperado. João XXIII, sem
consultar ninguém, desarrumou séculos de “tridentinismo”. O desenvolvimento do
Magistério pontifício, depois do concílio de Trento (1543-1563), acentuado no
séc. XIX e prolongado na primeira metade do séc. XX, atingiu, com Pio XII, o
paroxismo. A centralização romana multiplicou intervenções repressivas,
alimentadas por delacções e processos tenebrosamente secretos. Por outro lado,
depois da declaração da “infalibilidade papal” no Vaticano I (1869-1870),
embora muito circunscrita, tudo o que vinha de Roma passou a ter uma auréola
sagrada: era indiscutível.
2. A
turbulência desencadeada antes, durante e depois do Vaticano II só se
compreende tendo em conta esse longo e complexo tempo eclesial de resistência,
criatividade e repressão. Ninguém de bom senso poderia supor que tudo se
resolveria com a aplicação de documentos conciliares ao conjunto da Igreja
situada em universos geográficos, culturais, religiosos, económicos e políticos
tão diversos.
A reforma desejada, na linha aberta por João XXIII,
foi sistematicamente adiada em vários domínios e, mais do que isso, contrariada.
Os processos instaurados pela Congregação para a Doutrina da Fé ao pensamento
cristão mais inovador pareciam querer restaurar um tempo de má memória. A debandada de padres,
religiosos, religiosas e militantes católicos foi uma tristeza. Quando se
falava da necessidade de um novo concílio, a resposta disponível era sempre a
mesma: ainda não foi posto em prática o Vaticano II como se vai entrar na
aventura de um terceiro?
O próprio “Ano da Fé” serviu para abafar os
questionamentos que o cinquentenário do Concílio poderia levantar. Optou-se por
fazer dele um assunto de arquivo, em vez de uma provocação para o século XXI.
Bento XVI mostrou-se incapaz de reformar a Cúria -
a que pertenceu durante muitos anos – e de convocar um novo Concílio. Preferiu
demitir-se e provocar um conclave electivo, tornando possível outro caminho.
3. Nestes
últimos anos, foram muitos os grupos e movimentos, de homens e mulheres, de
religiosos, religiosas, de padres, de teólogos, teólogas que manifestaram a
urgência de reformas na Igreja, em diversos sectores de vida, organização,
ministérios e actividades. A divulgação das notícias, das análises e das propostas,
a nível local e geral, alargou e aprofundou a consciência eclesial de muitos
cristãos. Parece que essas iniciativas não encontraram muito eco na Cúria
romana e nos últimos Papas. Por vezes serviram, até, para levantar, nas
paróquias e nas dioceses, a suspeita de que se tratava de pessoas e grupos
pouco católicos, de reduzido amor à Igreja, de falta de respeito pelos seus
pastores e indignos de se reunirem nos espaços das congregações religiosas e
das paróquias. Nenhum desses movimentos teve muito tempo para conferir o que
este Papa estava a concretizar ou não, ao nível das reformas desejadas e
formuladas. O próprio Papa não teve de esperar pela realização de algumas
propostas e medidas que preconizou. Em seis
meses de pontificado não aconteceu nada de extraordinário e aconteceu tudo o
que é essencial. O Papa Francisco manifestou, por atitudes, gestos e palavras
que deseja ser um homem cristão ao serviço de uma Igreja de todos – todos somos
Igreja - que sirva o mundo a partir dos mais pobres e excluídos. Não fez um
tratado acerca do que deve ser um papa, um bispo, um padre, um cristão no mundo
de hoje. Começou por ser isso tudo, à vista de toda a gente.
Teve, com certeza, de se converter ao longo da vida
– ainda se confessa, com verdade, um pecador – para matar as tentações de
carreirismo eclesiástico e tornar-se um pároco simples que considera o mundo
todo, de crentes e não crentes, como a sua paróquia. Perdeu a pose episcopal,
cardinalícia, papal. As pessoas começaram a considera-lo da sua família, um amigo
lá de casa. Um amigo incómodo que
levanta questões aos instalados no dinheiro e no poder.
Foi à Sardenha dizer que o mundo tem um falso
centro, o ídolo Dinheiro, que instala a cultura do descarte: descartam-se os
idosos e os jovens, uns porque não podem trabalhar e outros porque não têm
trabalho, condição da dignidade, pois significa levar pão para casa e amar.
Deus colocou, no centro do mundo, a mulher e o
homem, a família humana. Para denunciar, de modo eficaz, o actual centro
idolátrico do mundo, é preciso não ser ingénuo. Bastará a astúcia da serpente e
a bondade da pomba?
Continuaremos a conversar com o amigo lá de casa.
Frei Bento Domingues, O.P.
29.09.2013
in Público