28 abril 2013

UM PAÍS NÃO É UM CONVENTO

1. A palavra reforma evoca muitas significações para além da mais corrente, isto é, a quantia - ora de fome, ora milionária - atribuída a pessoas aposentadas. A desejada reforma da Cúria vaticana é de outro género. Neste sentido, designa as medidas adoptadas para que uma instituição degradada volte à sua forma primordial. Nas épocas de decadência das Ordens Religiosas, por exemplo, a ideia de reforma era o sonho de um novo começo, através de um retorno à fonte do projecto inicial. Voltava-se às antigas observâncias, por vezes de forma anacrónica, mas com a intenção de encontrar o espírito fundacional. O regresso às primeiras expressões da pobreza era sempre a marca de uma reforma autêntica. Ao perderem o despertador da austeridade voluntária, as instituições religiosas fingiam ver na progressiva abundância dos seus bens, um sinal de bênção divina.
Fora da escolha livre e alegre do caminho da pobreza, a “vida religiosa” torna-se uma caricatura do Evangelho, uma prisão. Há critérios para avaliar a autenticidade das reformas na Igreja no seu conjunto ou nas Ordens Religiosas, pois como escreveu Yves Congar, existem verdadeiras e falsas reformas.
Reformar não consiste em reproduzir materialmente o passado. O “aggiornamento” é um modo de criatividade no seio das contradições da actualidade. Reproduzir a letra, sem o impulso do espírito, é a morte de qualquer reforma. João XXIII percebeu isto como ninguém, num contexto histórico assustador. Treinou-se, ao longo de toda a vida, nas situações mais diversas, a nunca esquecer que era apenas um aldeão, Angelo Giuseppe Roncalli, de Sotto Il Monte, de uma família pobre que nunca ganhou nada com ele ser padre, bispo, cardeal ou papa. 
A pobreza voluntária, a “dama pobreza” de S. Francisco de Assis, só tem sentido como afirmação de liberdade. Quem se faz pobre ou se mantém pobre, por vontade própria, diz a si mesmo e aos outros que não são as coisas, nem o desejo de possuir que mandam na sua vida. As austeridades são apenas instrumentos para moderar a desagregação dos apetites e aprender a hierarquizar os desejos. O culto da austeridade pela austeridade é uma doença. A escolha de uma vida moderada é uma sabedoria. Como dizia Sto Agostinho, mais vale precisar de pouco do que possuir muito.
2. Noutro registo muito diferente, em alguns países, foi imposto, como castigo, um regime de austeridade cada vez mais violento. Teve um momento de expressão estético-medicinal, cortar nas gorduras do Estado e das organizações, mediante um rigoroso programa de emagrecimento. Estas receitas tentavam corrigir erros – despesas sem sustentação - com outros maiores, paralisando e insultando as populações.
        Onde foram aplicadas, essas medidas cegas arruinaram a vida dos povos e impediram as reformas virtuosas, as produtivas. A obsessão pela austeridade nos decisores políticos não era inevitável. Foi uma opção. Quem o diz é o Nobel da Economia, Paul Krugman. Neste momento, são as próprias teorias económicas e financeiras que propuseram este caminho aos países, sobretudo aos preguiçosos do sul da Europa, que revelaram a sua debilidade. Nem o Excel foi poupado.
 Com a ideia fixa de que não havia alternativa, Portugal contraiu uma doença degenerativa, a “espiral da recessão”. O próprio presidente da Comissão Europeia perdeu a confiança nos “conselheiros tecnocratas” que, “nos dizem qual o melhor modelo, mas que quando perguntamos como o implementar, dizem que isso já não é com eles. Isto não pode acontecer a nível europeu” (Cf. Expresso on line 22.04).
A política de austeridade não atingiu apenas os seus limites. Lançou no desemprego milhões de pessoas. Não se devia poder brincar com o destino colectivo dos povos. A reforma da política de um país ou da UE não é a reforma espiritual de um convento. Pobreza voluntária é uma escolha virtuosa. Empobrecimento e miséria impostos por políticas erradas é crime, segundo a doutrina social da Igreja, cujo primado é o “bem comum”, ao serviço da dignidade das pessoas.
3. Os portugueses desempregados foram internamente humilhados e ofendidos como um povo de lamechas: quem não estava bem que emigrasse. De repente, Portugal era uma empresa na qual os que tinham trabalho deviam trabalhar mais horas e reformar-se mais tarde. Os outros eram dispensados, com a obrigação de não produzirem nada e procurarem viver de esmolas.
      Durante muito tempo, as lideranças da Igreja Católica tentaram mostrar que se estava a construir uma Europa esquecida das suas raízes cristãs. Com razão. Mas também elas se esqueceram de colocar os seus “cientistas sociais” a conceber e a trabalhar na construção de uma Europa possível, de pequenos passos, em bases sólidas, para que as ideologias e instrumentos mundiais da ganância não dominassem as suas políticas em regime de globalizada especulação financeira.
Nenhuma congregação faz votos de enriquecimento, mas acabam sempre por enriquecer. Não seria melhor adaptarem-se aos tempos modernos e desenvolver grandes empreendimentos, em nome de boas causas, católicas ou não católicas, na linha da religião da prosperidade, bênção divina?
Valha-nos Deus, ninguém tem culpa de que Jesus não tivesse jeito nenhum para o negócio. 
Frei Bento Domingues 
in Público

25 abril 2013

ASSOCIAÇÃO REDE DE CUIDADORES

COMUNICADO À IMPRENSA


      Em face das notícias ontem veiculadas sobre o arquivamento, por parte do Ministério Público, de casos de abuso sexual envolvendo pelo menos cinco sacerdotes na Diocese de Lisboa, a Associação Rede de Cuidadores, que tomou a iniciativa de participar, em tempo oportuno, àquela entidade, informações por si recebidas sobre aquele tema, vem dar nota da sua posição:
1.   A Rede de Cuidadores é uma associação não-governamental sem fins lucrativos, direcionada para a prevenção de maus tratos a crianças e adolescentes, seja qual for a origem dos eventuais agentes, mormente quando há suspeitas de abusos sexuais.
2.   Quando considera existirem suspeitas fundadas, dá nota do que conhece aos órgãos competentes titulares da ação penal em Portugal.
3.   No caso em referência resultou que, da investigação efetuada, o Ministério Público concluiu que o decurso do tempo impediu o procedimento criminal por, à luz da legislação aplicável, terem já prescrito os alegados crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, parte deles visando menores.
4.   Como se deduz de uma leitura atenta do comunicado, o Ministério Público não afirma que os alegados crimes não tenham ocorrido mas que, por o Código Penal em vigor na data apurada como sendo a da efetivação dos citados comportamentos criminosos, só aceitar a sua denúncia pelas vítimas, ou seus legítimos representantes, até 6 meses após completarem os 16 anos de idade, os mesmos foram arquivados.
5.   Estranha-se por isso (e lamenta-se) que o porta-voz da Conferência Episcopal se congratule com o arquivamento por pessoas concretas terem sido ilibadas apenas... porque a lei aplicável era mais permissiva do que a atualmente em vigor.
6.   Tanto quanto ao mundo dos leigos é permitido saber, não é esta a posição expressa no Direito Canónico, onde não existem prazos de prescrição para crimes desta natureza.
7.   Considera assim a REDE que o citado porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa está a ter uma posição descuidada face aos grandiosos desígnios espirituais e sociais que, por missão, à Igreja cabem, nomeadamente quanto à busca da verdade e do aperfeiçoamento dos seres humanos.
8.   Espera pois a REDE que pelo facto de, em face do arquivamento, formalmente não terem existido os abusos que aos órgãos próprios relatou, que a Igreja Católica Portuguesa, perante os relatos que lhe têm chegado, por várias vias e datas, tenha a coragem de acionar o que a este propósito determina a Lei Canónica, além de tomar os devidos cuidados para evitar situações análogas (tendencialmente reincidentes, em todo o mundo), perpetradas pelos mesmos ou outros sujeitos.
9.   Entretanto a Rede de Cuidadores continuará a trabalhar atenta às instituições onde estes fenómenos estão naturalmente facilitados e continua a recordar aos dirigentes da Igreja Católica Portuguesa que enfiar a cabeça na areia nunca resolve quaisquer problemas humanos. Só a verdade é libertadora.
Lisboa, 23 Abril 2013
O Presidente da Rede de Cuidadores
                                          Álvaro Andrade de Carvalho

21 abril 2013

Dois ouvidos e uma boca

1. Há mudança de clima no interior da Igreja Católica e na sua relação com a grande diversidade de mundos em que vive. Pelo menos, assim parece. Foram celebrados os 50 anos do Vaticano II, está a ser revisitada a Encíclica Pacem in Terris e não vai ser ocultado o sentido da consternação mundial pela morte do Papa João XXIII (3.06.1963). A este respeito, conta a grande filósofa de origem judaica, Hannah Arendt, que a sua criada, estando ele já no leito de morte, lhe diz: ”Minha senhora, este papa era um verdadeiro cristão, mas como pôde um verdadeiro cristão sentar-se no trono de S. Pedro? Ninguém se terá apercebido de quem ele era?”
Para os lefebvristas estas datas serão sempre para esquecer ou combater. Para os que se identificam com elas, já não têm de as celebrar com nostalgia. Sentem que o longo inverno está a passar e que é possível retomar o caminho. Os mais cautelosos avisam que uma andorinha não faz a Primavera e os mais novos não sabem do que os mais velhos andam a falar. Talvez acabem por descobrir.
Para já e para novos e velhos, aconteça o que acontecer no futuro, o Papa Francisco começou bem. Os gestos, as atitudes e as palavras do Papa já indicaram que é possível virar uma página triste na história eclesiástica, precisamente a página de interregno entre o Concílio e as urgências da hora actual. Ao trazer as margens para o centro da Igreja, ele situou-se no coração do mundo contemporâneo. A conversa da Igreja corre sempre muito mal quando é a de eclesiásticos entretidos com eclesiásticos, sejam seminaristas, estudantes de teologia, párocos, cónegos, monsenhores e bispos preocupados com as suas carreiras e avaliando a cotação das suas clientelas. Essas sacristias nunca poderão entender o horizonte do mundo como espaço da Igreja.
Não se pode esquecer que na celebração do baptismo existe o ritual da sagrada unção dos ouvidos e da boca. Lembra à nova criatura e a quantos a acompanham que temos dois ouvidos para escutar as vozes e as mensagens de Deus que nos chegam de dentro e de fora, de todos os mundos, por mais estranhos que se apresentem. Só temos, porém, uma boca. Significa que só vale a pena falar de doutrinas e normas depois de muito escutar e observar, com bondade. O povo de Deus é constituído por aqueles que só Deus conhece e pelas mulheres e homens que, celebrando o baptismo, escutam o que Ele diz à Igreja através de todos os seres humanos, crentes, agnósticos ou ateus.
2. Não vai longe o tempo em que se começou a descobrir a importância da inculturação da fé cristã no seu duplo movimento: o que ela recebe das diferentes culturas e a graça do Evangelho que oferece para as fecundar. É um diálogo existencial, por obras, atitudes e palavras. O Papa Francisco, pela sua prática mais recente, parece querer retomar esse antigo percurso, muitas vezes esquecido.
Encontramos, com efeito, na Eucaristia deste IV Domingo da Páscoa, Paulo e Barnabé, duas grandes figuras dos Actos dos Apóstolos, a começarem a apresentação do testemunho Jesus Cristo nos dias e lugares que, enquanto judeus, lhes eram mais familiares: nas Sinagogas aos Sábados. Sob o ponto de vista físico, religioso e cultural estavam em casa. Passava-se tudo em família e com êxito. Parecia que estavam todos no mesmo comprimento de onda (Act.13, 13-43). Na semana seguinte, verificaram com amargura que tinha acabado o encanto, a primavera da receptividade à nova mensagem.
Paulo e Barnabé não se deram por vencidos. Onde outros poderiam ver uma derrota, eles descobriram uma nova oportunidade, que sublinharam, aliás, com ironia: “era primeiro a vós que devíamos anunciar a palavra de Deus. Como a rejeitais e não vos julgais dignos da vida eterna, nós nos voltamos para os gentios”.
Sob o ponto de vista bíblico, não era uma traição. Frei Francolino Gonçalves[1], professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Pontifícia Bíblica, nos seus estudos sobre o Antigo Testamento (AT), chegou à conclusão que, no seu conjunto, é o resultado da fusão de duas religiões de Iavé muito diferentes. Começaram até por ser concorrentes e acabaram por se fundir, dando lugar a uma síntese. De facto, a religião que estamos mais habituados a ler no AT funda-se na história das relações entre Iavé e Israel, mas essa é a mais recente. A mais antiga funda-se na obra criadora de Iavé e, por isso, tem o universo como horizonte e nada tem de nacionalista. É radicalmente universalista, dirige-se a todo e qualquer ser humano que a descobre e manifesta na observação do cosmos, da natureza e da cultura. Pode ser um bom caminho para um diálogo inter-religioso.
3. Já passou um mês sobre a data da eleição de J. M. Bergoglio. Não passou o tempo dos sorrisos, mas são precisas decisões, reformas, especialmente da Cúria. Já escolheu 8 cardeais para as estudar. Nos dias 1, 2 e 3 de Outubro, terão a primeira reunião. A sua diversidade continental mostra que o centro da Igreja já não é a Europa, nem mesmo o Ocidente. Espera-se que, até Outubro, estejam de ouvidos bem abertos para escutar as vozes que têm sido e continuam a ser caladas.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público


[1] Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, Deus de Amor e de Salvação, ISTA, nº 22 - 2009, pp. 107-152.

As cicatrizes da Etelvina

Ainda não conhecia ninguém com este nome e já gostava dele. Há muito tempo. Quando um dia me cruzei no acaso da vida com a Etelvina, começámos por saber que os dois tínhamos ouvido várias vezes a canção do Sérgio Godinho com o nome dela. Mas se a vida é um espaço infinito com uma infinita diversidade de estrelas, há muita gente a quem toca ser cometa errante. Depois de meia eternidade a Etelvina voltou a passar por aqui. Tal como a da canção, a sua vida raras vezes teve tréguas. Não é que isso seja invulgar, mas com a Etelvina também foi assim. Após algumas narrativas das suas voltas e revoltas, apercebi-me de que trazia muitas cicatrizes dos embates com outros habitantes do espaço astral. Cicatrizes da vida, diz-se. Sim, cicatrizes da vida, mas de uma vida que nunca se resignou a morrer ou a ficar na morte. Cicatrizes que provam ser o mesmo aquele que desce aos infernos e aquele que emerge de novo para a vida. Neste caso, aquela, a Etelvina. Pensei então: quando voltar para casa vou ler outra vez a narrativa do encontro de Jesus com Tomé (Jo 24, 29). Embora sabendo que cicatrizes e chagas não são a mesma coisa, fui verificar com mais atenção o desafio feito à racionalidade daquele apóstolo. As chagas e as cicatrizes são a prova de um combate talvez perdido mas não derrotado. E são a prova de que há uma vida que não morre, ou que de modo nenhum pode ficar na morte. Há quem diga que as cicatrizes da alma são mais difíceis de ver. Não são. As da Etelvina estavam quase à vista por detrás de um véu que cobria o seu rosto de serenidade e transparência. Já não eram cicatrizes de sofrimento, eram marcas de uma saída vitoriosa de maus-tratos em casa, desconsideração na sociedade, descriminação no trabalho. E, no meio disso, um longo episódio de profunda tristeza. Também tinha algumas marcas no corpo sobre as quais não me atrevi a perguntar nada. Aliás, não tinha que perguntar nada de nada. Bastava-me ver que ela agora era uma mulher ressuscitada, com uma paz interior, uma compreensão das dificuldades dos outros, um olhar benevolente sobre a vida que só pode ser próprio de quem se ergueu das profundezas do sofrimento. Tive a sorte de não passar pela descrença de Tomé, de não me ter sido dito para meter as mãos nas chagas, de não ter que ver para crer ou, talvez melhor, de crer para ver. Mas o sentimento final é semelhante. A Etelvina não é a mesma, mas é a mesma Etelvina. Já não é uma só pessoa, uma única mulher, mas muitas mulheres e muitas pessoas numa mulher única. Não deveria ser preciso passar pelo sofrimento ou por tantos sofrimentos para se ressuscitar, mas é extraordinário, admirável e necessário que se ressuscite de uma descida à escuridão do mal e da morte. De uma morte para a vida ou de uma vida morta. Por isso, Etelvina, adeus até um dia destes. De vez em quando irei bater à tua janela para ver através dela os campos da eternidade.
Frei Matias, O.P.

17 abril 2013

Uma oração em cada dedo

Uma oração em cada dedo
CONVITE À ORAÇÃO DO BISPO BERGOGLIO (PAPA FRANCISCO)
1. O Polegar é o mais próximo de nós.
Então comecemos a rezar por aqueles que nos são mais próximos. São os mais facilmente lembrados. Rezar pelos nossos entes queridos é uma doce obrigação!


2. O dedo seguinte é o indicador.
Rezemos por aqueles que ensinam, instruem e curam. Isto inclui mestres, professores, médicos e padres, pois necessitam de apoio e sabedoria para indicar a direção correta a outros. Tenhamo-los sempre presentes nas nossas orações.


3. O próximo dedo é o mais alto.
Lembremo-nos dos nossos líderes. Rezemos pelo presidente, governantes, deputados, e também pelos empresários e gestores. São pessoas que dirigem os destinos da nossa nação, influenciam a opinião pública, e para isso precisam da orientação de Deus.


4. O quarto dedo é o dedo anelar.
Embora muitos fiquem surpreendidos, é o nosso dedo mais fraco, como pode dizer qualquer professor de piano. Deve lembrar-nos de rezar pelos mais fracos, com muitos problemas ou prostrados pela doença pois precisam da nossa oração dia e noite. Nunca é demais rezar por eles. Lembremo-nos também de rezar pelos que são casados.


5. E finalmente o nosso dedo mindinho.
É o dedo menor de todos, e que corresponde à forma como cada um deve ver-se a si diante de Deus e dos outros. A Bíblia diz; "os últimos serão os primeiros". O nosso dedo mindinho deve lembrar-nos de rezarmos por nós-mesmos. Quando estivermos a rezar pelos outros quatro grupos, as nossas próprias necessidades estarão na perspetiva correta, e então poderemos rezar melhor pelas nossas necessidades pessoais.
_______________________________________________________________________
Adaptação sobre versão brasileira e revisão de AFF.
AFF 15-04-2013
NOTA do NSI-PT: Não foi possível incluir as imagens das mãos juntas e dos dedos

14 abril 2013

Tradição


Retomando o tema das Mulheres como Igreja e na Igreja: Olhemos agora para o segundo pilar em que assenta a proposta da total igualdade de mulheres e homens: a Tradição. Tradição significa a passagem, a rota, a transmissão, dos ensinamentos e da memória,  que são passados de geração em geração – com tudo o que tal implica de mutação e mudança, tanto quanto diz respeito ao corpus dos ensinamentos e à memória propriamente ditos, como à interpretação que deles fazemos. Acresce que a tradição não termina no nosso tempo pessoal e histórico. A tradição tem futuro. Invocar a tradição para perpetuar já nem sequer um estatuto de desigualdade para as mulheres na Igreja mas um estatuto de subordinação, apresenta-se como uma leitura muito errónea da tradição que nos leva a outras tradições há muito repudiadas pela instituição-Igreja, quando antes eram aceites, encorajadas, e assumidas, como seja a escravatura ou a perseguição tenaz de crentes de outras religiões.  Voltando às criaturas mulheres, essa mesma tradição deu valor a algumas mulheres, começando por Maria de Nazaré, pelo que as contradições no discurso oficial da Igreja institucional são tão gritantes como absurdas. A história da santidade de tantas mulheres, a história de mulheres fundadoras ou renovadoras de ordens religiosas, é tão rica e vasta na tradição e história da Igreja-instituição, e é a parte tão integrante dessa mesma tradição, que se torna impossível compreender o estatuto minoritário atribuído às mulheres. Quem tem transmitido a fé, de geração em geração? Quem tem sempre estado na primeira linha do trabalho missionário?  Se as mulheres são tão excepcionais e especiais, como tantas vezes nos é dito pela instituição, porque então ocupamos um lugar ‘exterior’, um lugar à parte, um lugar não-visível nos processos de decisão?
O conhecimento de que dispomos actualmente, baseado na sociologia, antropologia e psicologia (a ciência é mais um dom de Deus) permite-nos afirmar que os papéis e as funções, as qualidades e os defeitos que geralmente atribuímos aos homens e às mulheres mais não são do que uma construção social e, nessa medida, um constante processo de mudança e transformação. As ideias aceites acerca do que é próprio do feminino e do masculino, para além das diferenças biológicas que se relacionam com o imenso dom de Deus que constitui a sexualidade e a reprodução, nada devem à natureza e tudo à cultura. É por isso que se torna falacioso considerar que tradição é igual a ‘sempre foi assim e por isso assim deve ficar’ e utilizá-la para justificar a exclusão das mulheres do sacramento da ordem, por exemplo. Uma outra teóloga, Rosemary Radford Ruether, escreveu o seguinte:
 
Se as mulheres não podem representar Cristo, como é que Cristo pode representar as mulheres? Ou, dito de outra maneira, se as mulheres não podem ser ordenadas, então também não podem ser baptizadas. O que tudo isto significa é que a Igreja está a ser desafiada de uma nova forma para tornar coerentes a sua teologia, para pôr em sintonia a sua antropologia, a sua cristologia, a sua soteriologia. Se as mulheres são consideradas iguais em natureza e em graça, já não há base para declarar que não podem representar Cristo sacramentalmente.[1]

Ana Vicente

Abril 2013


[1] Rosemary Radford Ruether, ‘Women’s Differences and Equal Rights in the Church’, Concilium, Londres, 1996, p.15.

Pegada teológica

"Por favor, sejamos guardiões da criação, do desígnio de Deus inscrito na natureza, guardiões do outro, do meio ambiente; não deixemos que os sinais de destruição e de morte acompanhem o caminho deste nosso mundo".

As palavras sábias e simples deste pedido do Papa Francisco, neste primeiro tempo de seu pontificado ecoam como um programa de conversão para toda a Igreja, isto é para cada um dos cristãos.

Este apelo não é propriamente uma grande novidade, pois a criação foi confiada à humanidade desde sempre, como refere a cosmogonia bíblica do Génesis. Cuidar do mundo e de tudo o que nele habita, incluindo a natureza e todas as formas de vida é o destino dos descendentes do mítico casal Adão e Eva. O cuidado pela família humana que, com Caim e Abel se revelou marcado pelo pecado da falta de fraternidade e por isso de amor, é uma chamada de atenção para os obstáculos internos ou externos que estruturam também a dimensão antropológica destes seres criados à imagem e semelhança do Criador e mesmo assim por vezes tão pouco semelhantes a Ele.

A degradação do meio ambiente, os problemas ecológicos de um desenvolvimento não sustentado mas predador dos recursos postos à disposição da humanidade, que uma pequena parte delapida perante a impotência da maioria dos seres humanos, revelam que sabemos cuidar muito pouco. Mesmo as pessoas que se preocupam com o problema sabem que a pegada ecológica daqueles que, como nós vivem apesar de tudo na parte rica do mundo, implicaria dois ou três planetas Terra se toda a gente vivesse deste modo. É pois insustentável o modelo de desenvolvimento que supostamente traz progresso e felicidade. De facto, trata-se de uma estrutura de pecado. Há que encontrar outras formas de tratar o meio ambiente, com respeito e partilha, ou seja devemos encontrar o modo de sermos guardiões que Francisco, tal como o de Assis, nos pede. Temos pois de rever muita coisa quanto à dimensão de cuidado com a natureza no nosso viver.

A própria criação é um sinal do amor de Deus e do cuidado com o Seu Povo; todos nós. Não há qualquer laivo de panteísmo nesta admiração e na busca do divino no mundo criado, apenas há a capacidade de nos maravilharmos com a beleza, a harmonia que de algum modo são “o maná do deserto” que temos à disposição cada dia. Se a humanidade deixa uma pegada ecológica devastadora no mundo, Deus deixa-nos uma pegada teológica criadora e sustentadora, revelando um cuidado perene pelos seus filhos que são a humanidade inteira. Aqueles que se reconhecem cristãos, rezam como Jesus ensinou; “O pão nosso de cada dia nos dai hoje…”.

Temos o pão quotidiano dado a todos via natureza, falta-nos a sabedoria para o distribuir equitativamente. Talvez por isso a prece que se segue nesta oração é “Perdoai-nos as nossa ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. A primeira das ofensas é esta dificuldade de nos sentirmos irmãos e agirmos solidariamente em consequência. Por outro lado, se Deus nos perdoar apenas na medida em que perdoamos aos outros, ficaremos sempre em défice na balança da santidade. Assim os gestos de cuidarmos uns dos outros são a marca do amor de Deus, e a caridade quer dizer, o amor, como diz S. Paulo não passará nunca.

A ética do cuidado é um ponto comum entre crentes e não crentes, um princípio também para um diálogo inter-religioso e ecuménico, aspetos a que o Papa Francisco mostrou ser sensível.

Recupera igualmente a tradição da doutrina social da Igreja que parece esquecida por alguns sectores cristãos mais adeptos de soluções politicamente liberais. Liga-se ainda diretamente ao legado de uma certa forma de ser cristão e de procurar as mediações políticas adequadas que Maria de Lourdes Pintasilgo mostrou ser possível viver.

AFF

Páscoa 31-03-2013

O SER HUMANO NÃO TEM CURA

1. Hoje, na Europa, já não temos religião cristã suficiente para a culpar de todos os nossos males. A repetida e gasta retórica da “morte de Deus” também já não assusta nem seduz. Decretou-se, em nome da autonomia da razão, que o ser humano, ser de relações múltiplas, deve viajar sozinho e por sua conta e risco.

Acentuou-se, desde o humanismo dos séculos XV e XVI, a viragem antropológica que atingiu na modernidade, com o proclamado acesso do ser humano à idade adulta (I. Kant), uma confiança muito celebrada e algo exagerada na ideologia do imparável “progresso”, entretanto sob acusação. Foram as próprias ciências humanas que acabaram por humilhar o “narcisismo do homem”, na expressão de S. Freud. A cosmologia mostrou a sua condição periférica e a biologia fez dele apenas o resultado da evolução da vida; para a sociologia, não vai além do resultado das condições sociais e para a psicologia, são as pulsões inconscientes que o comandam. É, afinal, a vaidade de pouca coisa.

Além do mais, o ser humano, embora tenha chegado muito tarde ao palco do mundo, pelos crimes que junta às suas grandes realizações, não pode esperar ser o último a desaparecer. Ao mostrar-se mais apressado em criar problemas a si mesmo e à natureza do que em curar a sua persistente vontade de dominação destruidora, sobretudo pela sua falta de sabedoria, parece uma espécie sem remédio. Ao consentir na transmutação de todos os valores, afunda-se no niilismo, na “morte do homem” e pensa numa saída pela porta do “pós-humano”. O recurso da falta de sentido da boa medida é o delírio, às vezes, perigoso.
            
2.Vivemos hoje, a muitos níveis, num clima paradoxal. Crescem, por um lado, universidades, centros de investigação científica partilhada e redes culturais que, todos os dias, nos revelam imagens maravilhosas dos êxitos das tecnociências. Por outro, guerras e ameaças de guerra multiplicam as  tragédias e misérias. As ameaças nucleares, reais ou fictícias, ajudam a encobrir a vergonhosa expansão de negócios das armas.

Quando se pensava que a Europa tinha optado definitivamente pela rota da cooperação e da paz, deparamos com o regresso da desconfiança, de velhos ressentimentos, com o retorno aos nacionalismos fatais, à desagregação que anunciam o caos, se nada de substancial for feito a tempo. A propaganda, os caminhos e os processos que levaram à União Europeia fizeram sonhar com o paraíso.

Imaginar, pensar e construir um projecto de integração tão espantoso e tão difícil exigia lucidez e sabedoria política para integrar, sem esmagar povos de histórias e culturas tão diferentes, e não apenas saídas de burocracias míopes. A moeda única não pode, só por si, gerar automaticamente o “espírito europeu”. 

Sem a criação contínua da Europa, como empreendimento de sabedoria, de ética e beleza, todos passarão a colocar na balança apenas o que cada país tem a ganhar ou perder em euros. Ao esquecer no sótão da sua construção o horizonte e a alma da paz que a suscitou, a Europa perde--se na hegemonia dos interesses de uma Alemanha com pouco respeito pela memória das vítimas da sua loucura colectiva. Não muito longínqua.

Tive a consolação de ler, na semana passada, um texto luminoso de Maria João Rodrigues, “Que mensagem para a Europa?” (Público,10.04). Não é, apenas, um contributo para a unidade dos europeus. É também uma serena e integradora mensagem para que a nossa política governamental não dispense os portugueses. Por outro lado, o poder europeu e a troika podem exigir de nós rigor, mas sem nos esmagar. No artigo referido, competência é irmã da sabedoria.
       
3. É velha, revelha e mítica, a alternância entre projectos megalómanos e a depressão. A divina exaltação do ser humano (Gn 1, 1-31) acabou num desastre de tais dimensões que o próprio Deus já não sabia o que fazer. “O Senhor reconheceu que a maldade dos homens era grande na Terra, que todos os seus pensamentos e desejos pendiam sempre para o mal. O Senhor arrependeu-se de ter criado o Homem sobre a Terra, e o seu coração sofreu amargamente. O Senhor disse: eliminarei da face da Terra o Homem que Eu criei e, juntamente com o Homem, os animais domésticos, os répteis e as aves dos céus, pois estou arrependido de os ter feito” (Gn 6, 5-8). Arrependido, mas não desesperado. Tinha uma estratégia alternativa, pois Noé era agradável aos olhos do Senhor (Gn 6, 9). Com a arca começou outra história e renovou-se a Aliança.

A Bíblia tem duas narrativas da criação. São narrativas poéticas que não pretendem explicar o mundo, mas sugerir, de forma muito bela, o seu sentido. A ciência, pelo contrário, fala de processos naturais. Apresenta a evolução como fruto de adaptações e mutações, não sendo fruto do azar, mas da selecção natural.

Só quem não consegue distinguir poesia e ciência pode ver contradições onde, de facto, não existem.

O grande conflito que atravessa todo o AT é teológico. O ser humano não é Deus nem seu rival, é criatura. Precisa de sabedoria, do sentido da boa medida, na relação com a natureza e com os outros, para não cair na loucura. A ordem para não comer da “Árvore da Vida”, é para não comer da árvore do veneno. É dizer que não vale tudo. O ser humano tem cura, se tiver juízo.

Frei Bento Domingues, O.P.

14 de Abril de 2013
in Público

07 abril 2013

A RESSURREIÇÃO CONTINUA

1. Desde a sua eleição, a 13 de Março 2013, o Papa Francisco alterou as espectativa sobre a renovação da Igreja. Do Vaticano, nos últimos anos,  só chegavam más notícias. Bento XVI, em vez de varrer a Cúria, trabalhava na sua obra teológica, depois de  ter silenciado a dos outros.
Se não for travado e não for uma táctica, o caminho do Papa Francisco pode trazer boas surpresas. A começar pelo próprio nome. Não passa  pela cabeça a ninguém que a figura de S. Francisco de Assis possa abençoar aquela Cúria,  as suas intrigas palacianas  e as supostas lavagens de dinheiro. O nome de um poeta anarquista e maltrapilho para nome de Papa romano roça o surrealismo. 
Não foi apenas a displicência em relação a vestes, sapatos e cerimoniais consagrados que  ressuscitou a intuição de João XXIII e João Paulo I. Foram iniciativas concretas, a partir da periferia, que indicaram que não se estava apenas  a procurar uma Igreja pobre para os pobres, mas que a igreja não existe para si mesma. O seu lugar é fora de portas.
A 5ª Feira Santa, consagrada a exaltar a instituição da Eucaristia e a ordenação sacerdotal, excluia a presença de mulheres. O próprio lava-pés, reproduzindo, de forma fundamentalista, a referência aos 12 apóstolos, canonizava uma interpretação clerical e não  exprimia a radicalidade do gesto de Jesus. A tranferência desta celebração da Basílica para o centro de correcção juvenil Casal del Marmo, a norte de Roma, onde se encontram detidos 46 jovens, estrangeiros, muçulmanos e ateus, é verdadeiramente pascal: no simbólico número doze há duas mulheres entre os apóstolos. É a destruição de um mito.
2. Goste-se ou não, as celebrações da Páscoa obrigam os cristãos a confrontarem-se com um fenómeno insólito, que sempre procuraram disfarçar. As narrativas da Ressurreição foram todas escritas por homens, atribuídas a Mateus, Marcos, Lucas e João. Era de supor que o maior destaque fosse dado aos apóstolos, mas não é. São as mulheres que recebem o encargo de os evangelizar, de lhes anunciar o que há de mais importante no Evangelho, a ressurreição.
Este é o facto. Não basta dizer que Cristo assim quis e pronto. Seria o elogio da arbitrariedade. Ele devia ter as suas razões para agir deste modo. Quais poderiam ser? 
Foi Jesus que escolheu e chamou os seus discípulos. Acabou por descobrir que eles não O entendiam, nem estavam interessados no seu projecto. No Evangelho de S. Marcos, a grande discussão que os animava, no âmbito da tomada do poder, centrava-se na distribuição de lugares. (Mc 4, 34 par.). Dois deles encheram-se de coragem e colocaram ao Mestre as suas exigências: quando triunfares, como rei messiânico, nós queremos os dois primeiros lugares. Esta pressa produziu uma grande indignação nos outros. Depois de uma reunião, receberam todos a mesma resposta: aquele que quiser ser o primeiro, de entre vós, seja o servo de todos (Mc 10, 35-45). 
Alimentaram sempre a esperança de que Jesus acabaria por perceber que esse rumo só o podia levar ao desastre. Pedro tentou, até à última, mostrar-lhe que tinha mesmo de mudar.
Os apóstolos, quando viram o Mestre derrotado na cruz, aperceberam-se de que tinham andado enganados. Acabara-se o tempo das ilusões e cada um voltou à sua vida. Já tinham perdido muito tempo.
3. Segundo os quatro Evangelhos, as mulheres nunca foram chamadas para o discipulado. Seguiram Jesus, por sua própria iniciativa, descobrindo que por ali corria a vida verdadeira e liberta. Nunca pediram nada em troca do muito que fizeram a Jesus e ao seu movimento. Andavam e serviam por puro amor (Lc 7-8).
A mulher, por ser mulher, na sociedade em que Jesus nasceu e foi educado, não contava - “não contando mulheres e crianças” - e, no casamento, estava dependente da vontade do marido. O estatuto da mulher dependia do homem (Mt 19).
Seria anacrónico dizer que Jesus era um feminista e inscrevê-lO num movimento nascido nos finais do século XIX. A questão não é essa. Apesar da missão que lhes foi confiada nas narrativas da ressurreição, teima-se em negar às mulheres, por serem mulheres, qualquer papel na Igreja, privilegiando sempre os homens. Não é muito difícil perceber porquê.
Aquilo que Jesus exigia aos discípulos, a disponibilidade para o serviço, não o conseguiu, como vimos. Com aquelas mulheres Jesus nunca teve esse problema. As que O seguiram nunca Lhe faltaram. Nunca pediram nem esperaram nada em troca. Não foram, apenas, testemunhas do seu percurso até Calvário. Não O largaram mesmo no sepulcro, quando tudo parecia perdido. Deixaram-se seduzir e isso lhes bastou. Jesus e o seu projecto passaram a fazer parte das suas vidas, para sempre.
É fácil de perceber que era com mulheres desta têmpera que o Ressuscitado poderia contar para converter os discípulos ao caminho do serviço gratuito. Mesmo depois da ressurreição, o que continuava a interessar os Apóstolos era o poder. Foram directos ao assunto. Jesus não se deixou impressionar, colocou este caso nas mãos do Pai e do Espírito Santo e uma nuvem o ocultou (Act 1, 6).
Frei Bento Domingues
in Público