30 junho 2013

Conferências no Lumiar — a Relação

Divulgamos aqui as conferências no Mosteiro de Santa Maria do Lumiar, este ano dedicadas ao tema "A Relação — Um modo quotidiano e profético de viver o Evangelho". Clique nas imagens para aumentar.




Quer assinar está carta a enviar ao Papa Francisco?

Amig@s: como sabem, o Papa Francisco pediu a um grupo de Cardeais, dos quatro cantos do mundo, para se encontrarem com ele, em Outubro, para falarem sobre como reformar o governo na Igreja. Isto é uma coisa que ele não teria feito se o presente sistema monárquico estivesse a funcionar tendo em vista o  bem supremo do Povo de Deus. Claramente não é esse o caso e, por isso, com igual clareza o Papa está aberto a que lhe façam algumas sugestões.
No nosso novo sítio, lançado na 6ª feira, 20 de Junho, ousamos lembrar o Papa Francisco e os seus cardeais de uma ideia que chegou a ser considerada, mas que não foi promulgada, no Concílio Vaticano II, e que raramente foi utilizada na Igreja pós-conciliar: dar voz ao povo de Deus, dar voto e  cidadania, numa Igreja que é demasiadamente clerical.
Como realizar isso? Caminho mais directo: encorajar o povo de cada diocese, em todo o mundo,  a eleger os seus próprios bispos. Esses bispos-servos, (não bispos Lordes), seriam responsáveis perante o povo que os elegeu e, em  devido tempo, estabeleceriam uma Igreja responsável do, por e para o povo de Deus. Nós dizemos tudo isso na Petição: http://www.CatholicChurchReform.com.
O nosso sítio vai ainda mais longe. Nele, pedimos a tod@s @s que concordarem com este objectivo para assinarem esta carta a incitar o Papa e o seu grupo de cardeais-conselheiros a colocar a eleição directa dos bispos, na agenda de Outubro. Planeamos entregar esta carta ao Papa pouco tempo antes do seu encontro com os cardeais. Pode ajudar-nos a recolher um milhão de assinaturas ao assinar a nossa carta ao Papa ao pedir aos/às vossos/vossas amig@s para fazerem o mesmo. Tornámos isso fácil. Veja a carta ao Papa: http://www.CatholicChurchReform.com.
Não pensamos que o Papa Francisco seja pessoa para ignorar um milhão ou mais de assinaturas. Ou mesmo só uma.
Para assinar vá a: http://www.catholicchurchreform.com/letter.html

         Kaiser
ROBERT BLAIR KAISER
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POBREZA ESCANDALOSA E POBREZA VIRTUOSA

     
1. O Papa Francisco não tem precisado das habituais campanhas de marketing destinadas à construção de uma vedeta, para consumo dos meios de comunicação social. Os gestos simples, calorosos e alegres de proximidade surgem como o seu modo de ser. O que lhe importa é deslocar os olhos das pessoas para o mundo dos pobres, excluídos e marginalizados, denunciando as opções económicas e financeiras que aprofundam o abismo entre os muito pobres e a dominação de interesses incontrolados, a nível local e global. Alerta para o carreirismo eclesiástico e o seu aburguesamento, ataca o moralismo hipócrita que, a coberto de preceitos e normas canónicas, oprime a consciência dos fiéis, em vez de os acolher, libertar e responsabilizar. Nota-se, na sua prática, a preocupação de ajudar a Igreja a tornar-se um rosto humano de Deus e a advogada da dignidade divina dos ofendidos. Destaca os que servem a Igreja e a sociedade sem nada pedirem em troca.
Estas atitudes podem tornar-se um incentivo para a reforma da Igreja no seu todo, das cúrias diocesanas e vaticana, assim como das congregações religiosas e movimentos católicos. Não servem para substituir o grande vazio mundial de lideranças humanistas e espirituais, nem para promover o culto da personalidade, a papolatria.
A forma como o papa Francisco acaba de evocar a figura de S. João Baptista mostra que não entende a Igreja como o sol do mundo. A Igreja é apenas a lua. Não é a fonte da Luz, precisa de ser iluminada. Como João Baptista, é a voz da Palavra que escuta e medita, não é a Palavra.            
2. Pertence, por isso, à verdade da Igreja ser radicalmente pobre. Nasce e alimenta-se da graça divina nas expressões da história humana, segundo a diversidade das culturas e tradições religiosas. Nas comunidades cristãs tudo é fruto de um dom para que cultivem a gratuidade nos serviços que prestam à sociedade: recebestes de graça, dai de graça.
As comunidades cristãs não são a salvação, mas sacramento, sinal e instrumento da salvaguarda e da cura da natureza. O alfa, o ómega e o coração do mundo é o Mistério infinito no qual vivemos, nos movemos e existimos. A Igreja existe para nos acordar para o essencial.           
O contributo destes breves meses de pontificado está de acordo com a liturgia do passado domingo: Jesus não recusou o papel profético que o povo reconheceu nele, mas recusou o de Messias. Porque terá sido e por que terá essa recusa um alcance permanente para a Igreja?
O profeta é um clarividente, um lúcido que procura que todos vivam com lucidez. O seu propósito não é ter poder, mas contribuir para que o povo e os governantes não se enganem, não enganem, nem se deixem enganar. Descubram onde está a verdadeira vida. Para o autêntico profeta, a paz é filha do direito, da justiça, da verdade e da sabedoria.
A figura do Messias, pelo contrário, é a de quem resolve, de forma “teocrática”, milagrosa, os problemas económicos, sociais e políticos. O Messias é um caudilho que manipula a opinião pública para conseguir e manter o poder. Os textos evangélicos encaram as tentações messiânicas como diabólicas: não deixam Deus ser Deus, nem os seres humanos responsabilizarem-se pela sua história. Deus é um tapa buracos e os seres humanos paus mandados de forças obscuras.
Jesus só foi reconhecido Cristo (Messias), – aliás um Messias crucificado -, porque venceu a tentação caudilhista. Defendeu a causa dos pobres, denunciou a idolatria do dinheiro e os ricos avarentos, provocou a conversão dos “zaqueus”, dispondo-os a restituir os frutos da corrupção, sem nunca se tornar sectário.     
3. Não se espera que a Igreja seja uma academia, um centro de investigação, um conjunto de faculdades dedicadas ao ensino da economia, das finanças, da gestão e das ciências políticas. Desde o Papa Leão XIII, foi-se constituindo, embora avaliada de formas diferentes, a chamada Doutrina Social da Igreja que, de facto, é a doutrina social dos papas. É desejável que, no seio das comunidades cristãs, muitas pessoas se dediquem, com todo o afinco, a cultivar ciências, artes e sabedorias para produzir e distribuir, da forma mais justa e mais respeitadora da natureza, tudo o que torna a vida humana mais digna de ser vivida. Neste sentido, é normal, que numa Igreja pluralista, surjam pensadores da realidade social de várias orientações, mas que possam confrontar-se e dialogar[I].
Jesus Cristo não deixou à Igreja, em herança, nenhum tratado de ciências sociais. Como quem diz, se delas precisarem, inventem-nas por vossa conta e risco, mas sem a minha assinatura. Deixou-nos, no entanto, indicações preciosas: todas as instituições são para alimentar e dignificar a vida humana; é escandaloso colocar a vida humana ao serviço do dinheiro e das suas instituições.
Mais escandaloso ainda, é continuar a plantar árvores que só podem dar frutos de injustiça e miséria, pobreza escandalosa.
Frei Bento Domingues, O.P.
30.06.2013


[I]  Jeffrey Sachs, O Fim da Pobreza, Casa das Letras, 2005; Coord. Lucy Williams, O Direito Internacional da Pobreza, Sucuru, 2010; Abhijit V. Banerjee e Esther Duflo, Economia dos Pobres, Temas e Debates, 2012; Tim Jackson, Prosperidade sem Crescimento, Tinta da China, 2013.

29 junho 2013

A samaritana Olívia

       
A dona Olívia fazia-me lembrar a samaritana sem nome. Aquela dos cinco maridos com um sexto do qual se comenta não ser dela. Embora se diga que a leitura dessa passagem do evangelho (Jo 4, 1-30) não deve ser literal nem lida no singular, a sua singularidade não deixa de conter muitas verdades de outras tantas realidades. A dona Olívia também teve cinco espécies de maridos, e as línguas que tendem a falar do que já é muito falado, diziam que esses eram só os conhecidos. Em rigor nenhum deles era marido, eram homens com quem viveu e a quem serviu na vida. Tal como o da samaritana, o sexto também não era dela e esse poderá ter sido mais que um. O quinto era um viúvo, ainda primo afastado que não sabia o que fazer para continuar vivo depois de a mulher ter morrido. Com ar de abandonado foi ter com a Olívia que o acolheu a ele, a um frigorífico e a uma máquina de lavar roupa. Em pouco tempo o homem parecia outro. Diziam: até já parece um homem casado. A ela não a elogiavam, nem sequer a mencionavam. Era preferível não o fazerem, pois iriam dizer que não tinha vergonha nenhuma. O quarto, o João padeiro, também tinha ficado viúvo. Tratava-a muito bem, e ela a ele melhor ainda. Entendiam-se e ele, como diziam, era amigo dela. Deixou-lhe uma pequena fortuna, para ela grande, na qual punha a sua segurança para quando fosse mais velha. Mas entregou-a ao cuidado dos filhos e alguns deles encarregaram-se de lhe abrir um caminho de saída, sem regresso, do banco para as suas dívidas. O terceiro homem apareceu na terra como vindo de lado nenhum, talvez de alguma gruta na serra ou das águas do rio. Havia muitas histórias a seu respeito: que tinha fugido a um crime, que abandonou mulher e filhos por não ter com que os sustentar, e os mais complacentes diziam simplesmente que tinha vindo parar ali à procura de trabalho. Vindo de lado nenhum agarrou-se ao lugar e à dona Olívia por alguns anos. Depois, tal como veio assim desapareceu sem deixar sinais de para onde. Os comentários mais benevolentes diziam: deve ter morrido. O segundo era um sapateiro que também tinha vindo em busca de trabalho e ali passou os dias de alguns anos ao lado da dona Olívia. Brilhante no exercício da profissão, dizia que ainda tinha forças para gastar meias solas com ela apesar de ela ser mais nova. Ela precisava de companhia e ele de uma lareira, de cobertores no inverno e de caldo quente. Ou, como diziam, precisava de tudo. O primeiro era mais ilustre. Homem já maduro, tinha um bonito cavalo que o transportava pelos caminhos de Deus e dos homens. Ela, ainda muito jovem, pouco mais que adolescente, já tinha as mãos ásperas do muito trabalho num tempo em que se geria mais a vontade de comer do que a comida. Ele, senhor de muitos bens que lhe davam pelo seu dedicado serviço, sentia debaixo do chapéu um denso peso na cabeça. A Olívia achava que ele era rico e lhe podia satisfazer muitas necessidades. Ele pensava o mesmo dela no que tocava a necessidades. Entre a troca e a partilha tiveram uma filha. Ela era simplesmente Olívia, ele era padre. Ele deixou de sentir na cabeça o peso do celibato, ela deixou de sentir um vazio na boca do estômago. Nem tudo foi assim tão simples, porque a vida é boa e bela segundo a perspectiva de onde se olha para ela. A vida da dona Olívia foi bastante colorida e diversificada, mas nem sempre boa. Nos últimos tempos ouvi-lhe dizer que desde há uns anos o seu verdadeiro marido era Jesus. Foi nesse momento que me veio à mente a Samaritana. Parece que também para ela, Jesus foi de algum modo o sétimo marido. Que dizer de uma e de outra? Eu não digo nada, que poderei dizer? Aí estão os dias e as noites na sua diversidade como juízes daquilo que somos e fazemos. A Samaritana já partiu para a luz eterna há dois mil anos. A dona Olívia partiu há dois meses. Era muito bonita, delicada e transparecia nela a serenidade contida no significado do seu nome. Sorrio quando penso que ao chegar a esse lugar sem lugar, envolto pela graça de Deus, terá ouvido uma voz a chamá-la: anda cá mulher, não há vida mais parecida com a tua que a minha. Que assim seja!
Frei Matias, O.P.
Junho 2013

23 junho 2013

O PACTO DAS CATACUMBAS

         
1. João XXIII, um mês antes da abertura do Concílio Vaticano II, na radiomensagem de 11 de Setembro de 1962, espantou os próprios católicos com a declaração: “hoje, a Igreja é especialmente a Igreja dos pobres”. Em número, esta afirmação não podia ser mais exacta. Porque terá, então, levantado tanta celeuma? Creio que, passados cinquenta anos, continua a ser estranha. O Papa Francisco acaba de surpreender muita gente, com gestos e atitudes, que já deveriam ser uma prática corrente. É certo que o Vaticano II alterou uma eclesiologia piramidal. Mas não podia mudar a mentalidade e representações que foram cimentadas ao longo de séculos. Ainda hoje, quando se fala de Igreja não pensamos logo em comunidades cristãs. Pensamos em padres e na hierarquia eclesiástica presidida pelo Papa, rodeado por um conjunto cardeais, com sede no Vaticano. Essa não é a imagem mais directa da pobreza. Verdadeira ou falsa, não é apenas a propaganda anticlerical a dizer que a Igreja é rica e está ao serviço dos ricos e poderosos.
A Igreja teve um começo pobre e Jesus Cristo não deixou grande fortuna aos seus discípulos. Ao longo dos tempos, a santidade da Igreja será avaliada pela capacidade de fazer sua a causa dos pobres.
Importa distinguir a pobreza escolhida, da pobreza imposta. Uma é virtude, a outra, uma violência. Há austeridade que é frugalidade, simplicidade de vida. Há programas de austeridade para os outros, que tornam a vida impossível aos pobres e remediados.
Ninguém se faz cristão para ser rico, mas sendo rico, terá mais motivos para ajudar a libertar os que são vítimas da pobreza imposta. A partilha com os mais pobres é virtude. Dado o destino universal dos bens criados, em caso de necessidade urgente, não é roubo apropriar-se daquilo que está na posse de outrem. O direito à propriedade privada, em caso de necessidade, deve ceder diante do direito à vida (Cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiae II-II q. 65, 7; 2Cor. 8, 9-15).
2. O Cardeal Gerlier referindo-se às tarefas do Concílio, retomou as palavras de João XXIII para dizer: se não as examinarmos e estudarmos, tudo o resto corre o risco de não servir para nada. Dois meses depois da abertura do Vaticano II, o Cardeal Lercaro, já na aula conciliar, referindo-se à mesma questão, afirmou com desencanto: em dois meses de trabalho e investigação verdadeiramente generosa, humilde e fraterna, todos nós sentimos que falta alguma coisa ao Concílio.
Na altura, não lhe ligaram muito. No entanto, vários bispos aperceberam-se de que, uma Igreja voltada para os pobres, ainda estava longe da sensibilidade da maioria. Decidiram reunir-se, confidencialmente, com regularidade e sem sectarismos. Poucos dias antes do encerramento do Concílio, um bom grupo de padres conciliares celebrou a Eucaristia nas catacumbas de santa Domitila.
Rezaram para serem fiéis ao “Espírito de Jesus”. Ao terminar a celebração, assinaram o que foi chamado o Pacto das Catacumbas, que desafiava os irmãos no episcopado a levarem uma vida de pobreza e a serem uma Igreja “serva e pobre”: Nós, bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, conscientes das deficiências da nossa vida de pobreza segundo o Evangelho, motivados uns pelos outros, […], com humildade e com consciência da nossa fraqueza, mas também com a determinação e a força da graça de Deus, comprometemos ao que segue…”.
Na aula conciliar a causa dos pobres não esteve ausente (LG 8 e GS1), mas como diz Jon Sobrino, de forma comedida.
3. No documento Pobreza da Igreja, Medillin (1968), os bispos latino-americanos assumem o Pacto das Catacumbas. Constatam as queixas dos pobres: “a hierarquia, o clero e os religiosos são ricos e aliados dos ricos”. Embora se confunda, com frequência, a aparência com a realidade, reconhecem que vários factores contribuíram para criar a imagem de uma Igreja institucional rica: os grandes edifícios, as casas de párocos e religiosos, quando são superiores às do bairro em que vivem; carros próprios, por vezes luxuosos; a maneira de se vestir, herdada de épocas passadas.
“No contexto de pobreza e até miséria em que vive a maioria do povo latino-americano, os bispos, sacerdotes e religiosos têm o necessário para a vida e também uma certa segurança, enquanto os pobres carecem do indispensável e se debatem no meio de angústia e incerteza”.
A posteridade de Medillin, com as vicissitudes da Teologia da Libertação e as intervenções paralisantes da Congregação para a Doutrina da Fé, ao tempo do Cardeal Ratzinger, matou muitas esperanças, muitos cristãos e até o Bispo Oscar Romero.
Nas teologias actuais, a Igreja dos pobres não é um tema muito apetecido e o referido Pacto voltou para as catacumbas.
O Papa Francisco retomou os gestos e a linguagem da ressurreição da Igreja dos pobres e para os pobres. Que não se canse e continue a provocar-nos...

Frei Bento Domingues, O.P.
23.06.2013

Trapos e afins

     
Sabemos que tinha uma túnica sem costura que no final da sua vida foi sorteada. Recomendou que não levássemos duas, nem alforges carregados de inutilidades. Calçava sandálias como os amigos aos quais avisou que sacudissem o pó destas quando não fossem bem recebidos. E mais não sabemos…
Supomos que se vestiria como qualquer homem do seu tempo e condição de carpinteiro. De forma adequada àquele clima, às circunstâncias e à época. Provavelmente vestiu a túnica mais bonita para ir ao casamento dos amigos em Caná, pois era dia de festa. De resto não temos memória de grandes ou pequenos problemas de guarda-roupa (acaso existisse nessa altura!)
XXI séculos depois, acumulámos regras e modas diferenciadoras que se vão transformando conforme os ventos da História. Nenhuma no entanto se aproximou sequer da versão simples e prática daquele judeu palestino tão especial que marcou a humanidade mostrando que é possível viver-se de outro modo, mais fraterno e simples.
“O hábito não faz o monge” diz a sabedoria popular. É bem verdade. Não é a forma mas o conteúdo que importa. Porquê então dar tanta importância às diferentes formas de vestir “os uniformes” da estrutura, em vez de nos centrarmos sobre o que é realmente relevante?
Um dos elementos que chamou a atenção, de maneira positiva, dos meios de comunicação social após a eleição do Papa Francisco, foi a simplicidade da sua veste branca comparada com a parafernália de adereços do antecessor; desde a cadeira até à imagem do Papa, quase da cabeça aos pés, tudo se tornou mais simples. E as pessoas acharam isso simpático. É apenas forma, mas pode ser um sinal exterior de uma mudança mais funda no sentido da aproximação da vida real; a roupa é só o efeito visual!
50 Anos depois do Concílio Vaticano II, e das mudanças que dele decorreram, ainda hoje há alguma polémica sobre se os padres e freiras devem ou não usar uma forma de vestir distintiva dos demais. Das sotainas, batinas, ao “clegyman” (fato completo), do cabeção, à cruz na lapela, dos “hábitos” das ordens religiosas, etc.… No que diz respeito às modas eclesiásticas (ainda) masculinas, são expressão de umas quantas variantes do mesmo pre/conceito; que estes homens devem mostrar-se bem diferentes dos restantes, acima deles, mais próximos do divino.
Já ouvi os argumentos mais delirantes a favor de tais distinções de vestes; por exemplo, de que ficam mais protegidos do assédio feminino, ou outro de quase igual teor, se houver um acidente na rua, alguém pode logo identificar e chamar o padre para dar os últimos sacramentos ao moribundo…
Quanto às “freiras com hábito” outro argumento inconsistente é o reverso do anterior para os padres. Assim os homens na rua não se metem com elas e estão por isso mais protegidas. Outro argumento risível é de que se tirarem o hábito vestem-se tão mal que se vê logo que são freiras, e de hábito não ofendem o bom gosto! Ou ainda, toda a gente respeita o “hábito” porque no fundo sabem que elas estão a ajudar o próximo e podem andar por zonas perigosas sem ninguém lhes fazer mal.
Em resumo, podem considerar-se estes argumentos como falácias de que vestes religiosas implicam necessariamente ser-se boa pessoa e por isso mais respeitável do que o resto da humanidade.
Além disso ocultam a diferença entre usar sempre roupa distintiva e usá-la em determinadas circunstâncias quando tal é necessário. Um médico não anda no meio da rua de bata e estetoscópio ao pescoço, um padre não anda paramentado fora da cerimónia religiosa a que preside, um bombeiro, um militar veste a farda quando está de serviço.
Acontece que Jesus Cristo, ele próprio, não mandou ninguém diferenciar-se pela roupa, estatuto social ou afins, mas apenas por uma pequenina grande diferença que é constituída por gestos concretos de amor ao próximo. Para o fazer qualquer roupa serve, desde que seja adequada à circunstância!
A meu ver o exemplo de Cristo remata de forma simples e prática o debate anacrónico sobre trapos, uniformes e afins…
Outra coisa é “roupa (e não só) adequada à circunstância”; o que se aplica de modo particular aos leigos. Ir à missa vestido como quem vai para a vida social do Bairro Alto, ou estar a mandar SMS durante a homilia e/ou a mascar pastilha elástica é tudo menos o adequado à circunstância…Quanto mais não seja são fatores que distraem outras pessoas do que é efetivamente importante.
Sem cair nos excessos pré conciliares de antigamente há um justo meio-termo e não é o que dantes se chamava em linguagem popular “a roupinha de Ver a Deus” ou “a roupa domingueira”.
Há um ponto de equilíbrio de geometria variável (um chavão em moda) dependente do contexto, tempo e lugar; supõe inserção na cultura local e simplicidade e é aplicável a padres, freiras e leigos pois todos são parte do mesmo Povo de Deus na igualdade do Baptismo. Este Papa já mostrou ser possível mudar este aspeto do “visual” e foi bem recebido. Faltamos nós, todos os outros, pois Nós também Somos Igreja.
E como em cada semana há um domingo, podemos começar por preencher certos requisitos; para o espírito, preparar as leituras do dia, para o corpo, escolher uma roupa apresentável e quanto a tecnologias, desligar o telemóvel pois Deus não nos fala por aí! Bom, pelo menos para já, mas há sempre quem espere este tipo de milagres.
AFF     15-6-2013    

22 junho 2013

Comunicado do IMWAC nos primeiros 100 dias de papado do Papa Francisco

International Movement We Are Church – IMWAC
Movimiento Internacional Somos-Iglesia
Movimento Internacional Nós Somos Igreja
Movimento Internazionale Noi siamo Chiesa
Mouvement international Nous sommes Eglise
Internationale Bewegung Wir sind Kirche
Contactos nos países membros: www.imwac.net/413/index.php/contact/contacts

Roma, Innsbruck, Munique, 18 de Junho

PARA DIVULGAÇAO IMEDIATA

O Movimento Nós Somos Igreja: Uma nova oportunidade para o Espírito na Hierarquia da Igreja

O Movimento Internacional Nós Somos Igreja nos primeiros 100 dias de papado do Papa Francisco (21 Junho 2013)

Passados 100 dias desde que o Papa Francisco entrou em funções o Movimento Internacional Nós Somos Igreja (IMWAC) continua à espera de mudanças na liderança da Igreja. “ Damos as boas-vindas a todos os passos dados em direcção a uma maior fidelidade ao Evangelho", diz o Nós Somos Igreja.
O Nós Somos Igreja apela a todas as comunidades católicas para que tenham uma visão nova e crítica da organização que os lidera, assim como do sistema de privilégios medievais que nela predominam.
As grandes crises da Igreja Católica Romana estão longe de ter acabado mas, pelo menos, agora, vemos uma boa oportunidade de a nossa Igreja, uma comunidade global de 1.2 biliões de fiéis, encontrar modos autênticos e convincentes de divulgar o Evangelho de Jesus.
Francisco, Bispo de Roma, demonstrou uma aproximação que não é doutrinária, mas pastoral, que os fiéis há muito aguardavam. Esperamos que os seus gestos simples, mas fortes, de um ministério misericordioso e benevolente, possam mudar a atitude de todo o clero e dos que ainda mantêm formas obsoletas de prática religiosa.
A mudança no estilo de liderança deve ser acompanhada de reformas substanciais de acordo com o Concílio Vaticano II (1962-65), para reverter a restauração dos tempos pré-Vaticano II, dos últimos 50 anos. De outro modo, a frustração e perda de credibilidade, dentro e fora da Igreja Católica Romana, será imensa.
As novas formas de diálogo, a descentralização e gestão colegial, na linha dos ensinamentos do Vaticano II e uma nova visão do papel das mulheres na nossa Igreja são temas essenciais a ser enfrentados neste momento histórico. 
O Movimento Nós Somos Igreja apoia todos os passos para combater o Eurocentrismo e desejamos converter a nossa igreja numa Igreja mais de acordo com o Evangelho: uma Igreja na periferia, uma Igreja pobre e uma Igreja dos Pobres.  A nossa Igreja deve dedicar-se à paz universal e à ecologia baseada na justiça e nos direitos humanos. Para ser credível, deve também respeitar e promover os direitos humanos dentro da Igreja.
Sabemos que este será um longo processo de transformação. Apoiamo-lo e continuaremos a contribuir com os nossos pontos de vista, baseados numa sólida investigação teológica, esperando que lhes seja prestada mais atenção do que anteriormente. Também reconhecemos os importantes contributos de teólogos proféticos e das pessoas que trabalham na pastoral que foram silenciados durante as últimas décadas. Eles devem agora ser totalmente reabilitados.
Contudo, não pretendemos sobrestimar os sinais positivos dados por Francisco, ou subestimar a forte resistência da Cúria, interesses culturais e económicos que têm sido tão poderosos na Igreja há tanto tempo. Estamos cientes das fortes pressões externas exercidas sobre o Papa Francisco.
Apelamos ao Papa Francisco para que seja forte e corajoso e desejamos que tenha todo o apoio que necessita. Esperamos que, neste pontificado, se inicie um processo de transformação da Igreja Católica Romana e de toda a Cristandade para encontrar um papel novo e mais positivo numa comunidade humana global e em rápida mudança.

O Nós Somos Igreja está pronto para apoiar este novo caminho em direcção a uma Igreja do Povo de Deus, verdadeiramente fraterna.

Movimento Internacional Nós Somos Igreja


         O Movimento Internacional Nós Somos Igreja (IMWAC), fundado em Roma em 1996, encontra-se representado em mais de 20 países e reúne grupos reformistas semelhantes de todo o mundo, em todos os continentes.  Nós Somos Igreja é um movimento internacional dentro da Igreja Católica Romana e pretende a sua renovação com base no Concílio Vaticano II.  Nós Somos Igreja iniciou o seu trabalhado em 1995, na Áustria, com um referendo eclesial.

18 junho 2013

UM DEUS IRREMEDIAVELMENTE MASCULINO?

       
1. Consta que, nas “redes sociais”, circulam campanhas para correr com o Papa Francisco. Como João Paulo I não se soube defender das consequências de ter ressuscitado o estilo das atitudes, palavras e gestos de João XXIII, diz-se que o papa Francisco pode sair-se mal com o seu “populismo”, diversamente interpretado. Para uns, não passa de uma táctica para esconder o seu velho conservadorismo; para outros, é o caminho escolhido para ganhar apoios em todo o mundo, dentro e fora da Igreja Católica, para liquidar, de vez, o poder da Cúria Romana. Porque não pôr a hipótese de se tratar, sobretudo, de um modo de ser, de uma característica de personalidade? 
 A acusação mais grave contra este papa não se prende com questões de estilo, mas, sobretudo, de carácter teológico. O Pontífice romano teria falado de Deus, como Pai e Mãe, como Mãe, ou como Rosto materno de Deus.
 Esse género de antropomorfismos estiveram muito em uso em certas comunidades cristãs da América Latina e atraíram o sorriso atrevido de João Paulo I. Não agradou muito aos seus sucessores. Regressou agora, de forma descontraída, mas embateu com as rotinas de uso corrente no âmbito das religiões monoteístas: Deus é masculino, podemos chamar-lhe pai; mãe, nunca! Servir para pai e mãe, um deus unissexo, não fica bem na boca de um papa!
Na tradição da teologia mística do famoso Pseudo-Dionísio, o Areopagita (séc. V-VI), dizer Deus é referir-se à profundidade infinita e inapreensível do mistério. Nenhum nome lhe pode ser verdadeiramente adequado. Ao ser evocado na linguagem simbólica, sabe-se que esta vem dos abismos do silêncio e carrega, em cada afirmação, uma negação para vencer a tentação da idolatria. Quando alguém se fixa em representações de um deus unissexo ou pluri-sexual não se salta para fora dessa prisão. Só é possível chamar a Deus Pai e Mãe ou referir-se ao rosto materno de Deus, quando se vive na raiz da linguagem metafórica. Esta remete para a Realidade que não cabe em nenhum conceito nem se esgota em nenhuma experiência. O cristianismo não pode esquecer as suas raízes: o amor crucificado que não renuncia à pátria da alegria. Às expressões de “espiritualidades apoetadas”, de meladas facilidades, aconselharia uma cura na poesia de Herberto Helder, de Paul Celan, de Angelus Silesius ou na mística do Mestre Eckhart.
  2. As atitudes e as palavras do Papa Francisco não são nem herméticas, nem lamechas. São bem-humoradas. Mostrou-o, mais uma vez, no dia 7 de Junho, na Aula Paulo VI, no encontro onde recebeu delegações dos colégios jesuítas da Itália e da Albânia. O cenário exigia solenidade, exaltação de grupo e aproveitamento apologético. Logo à partida, o Papa, olhando para a assembleia, destruiu um discurso preparado, de cinco páginas, que lhe pareceu completamente inadequado e aborrecido. Limitou-se a fazer um pequeno resumo e optou pelo diálogo. Faziam-lhe perguntas e ele respondia. As perguntas das crianças iam bem preparadas e tocavam na sua opção de ter renunciado ao luxuoso apartamento no Vaticano e a um grande carro. O importante foi a resposta. Não deu uma lição de grande asceta. Fixou-se em algo muito mais simples: não gosta de viver só. Gosta de viver no meio das pessoas. É uma questão de personalidade e contou o que, com humor, respondeu a um professor: por razões de ordem psiquiátrica.
3. No referido encontro, nem só as crianças tinham perguntas: Como adultos das escolas jesuítas, diga-nos algumas palavras sobre como poderá ser jesuítico e evangélico o nosso compromisso, o nosso trabalho, hoje, em Itália e no mundo?” A resposta não podia ser mais directa nem mais incisiva: ”Nós, cristãos, não podemos fazer de Pilatos, lavar as mãos. Temos de nos meter na política porque a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política. Diz-se que a política está muito suja, mas eu pergunto, está suja porquê? Será porque os cristãos não se metem nela com espírito evangélico? É a pergunta que eu faço. É fácil dizer que a culpa é dos outros. Mas eu, o que faço? Isto é um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever cristão”.
Não basta dizer que os cristãos se devem meter na política. Importa reflectir sobre as razões que os movem nessa participação activa. O Papa destaca uma coincidência entre a razão política – a busca do bem comum – e a maior virtude teologal - a caridade. No entanto, tudo pode ser corrompido. Os antigos diziam que o melhor se pode tornar péssimo, optima péssima. Por isso, acrescenta o Papa Francisco: na política, mas com espírito evangélico. Para servir e não para se servir.
A política, hoje, está dominada pela finança e pelos seus jogos, locais e globais. O prestígio, no âmbito político, resulta de uma carreira brilhante no mundo da finança. Santiago Onzoño, da IE Business School, recorda que os grandes professores de finanças, sobretudo os que vivem nos Estados Unidos, estão a descobrir as virtudes da modéstia e da humildade. Estamos perante uma ciência ainda na fase da infância.
Em Portugal, continuam na fase da arrogância, de quem vive no segredo dos mercados, dos seus inescrutáveis desígnios e nos ditam as suas indiscutíveis leis. Ser cristão ou não é igual.

Frei Bento Domingues, O.P.

in Público

16 de Junho 2013
 

15 junho 2013

O SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS MAL PINTADO

      
1. Na passada sexta-feira foi celebrada a festa do Sagrado Coração de Jesus. A origem desta devoção deve-se a Santa Margarida Maria de Alacoque, religiosa da Ordem da Visitação, que manifestou ter recebido extraordinárias revelações pessoais de Jesus Cristo, entre 1673 e 1675.
Depois, a partir de Portugal, a Beata Maria do Divino Coração, condessa de Droste zu Vischering, obteve do Papa Leão XIII, em 1899, a consagração do mundo a esta invocação. Várias congregações religiosas, femininas e masculinas, assim como igrejas, paróquias, basílicas e outros monumentos passaram a ser designados como do Sagrado Coração de Jesus. A devoção das nove primeiras sextas-feiras de cada mês, acompanhada de doze promessas de garantia, teve um grande êxito, em vários países.
Em Lisboa, existe uma igreja paroquial dedicada ao Sagrado Coração de Jesus, obra dos arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas, que recebeu o prémio Valmor em 1975 e é monumento nacional, desde 2010. Apesar de todas as diligências, o Sagrado Coração de Jesus não conseguiu, na altura, encontrar nenhum grande artista que o quisesse pintar ou esculpir. Fui ao Google verificar se teria havido algum esquecimento. Entre as mais de quatrocentas imagens visitadas não encontrei uma que lá pudesse figurar, sem atentar contra a qualidade daquela arquitectura. Aliás, a reprodução de tais imagens é sempre a multiplicação da fealdade. Não é apenas um defeito português, é uma importação. A revista L’ Art Sacré, dos padres dominicanos Marie-Alain Couturier e Pie Régamey, na secção campo contra campo, as imagens do Sagrado Coração de Jesus eram sempre apresentadas como a desfiguração da autêntica arte sacra. Eles apostaram no génio, em artistas como Matisse, Rouault, Léger, Bonnard, Chagall, Braque, Corbusier, entre outros, mas o Coração de Jesus continuou como está no Google.
Porque será que algumas das expressões mais belas do Antigo e do Novo Testamento tenham sido transformadas em insuportáveis figuras que apresentam entre as mãos, sobre o peito, a extracção de um coração ensanguentado, num realismo que é a própria negação do caminho simbólico, caminho da transcendência? Que terá isso a ver com a promessa bíblica evocada no baptismo, “dar-vos–ei um coração novo e infundirei em vós um espírito novo. Arrancarei do vosso peito o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne“? Será a troca de uma pedra da calçada por um naco de carne humana?
Como encontrar nas ditas imagens do “sagrado coração de Jesus” a beleza deste apelo? “ Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.”
Sem sensibilidade para a linguagem simbólica, o pseudo-realismo torna-se grotesco.
2. Os textos da solenidade da sexta-feira passada são, precisamente, a orquestração literária deste apelo. Ezequiel era um profeta, testemunha da situação do povo a que pertencia, um povo no exílio, que se julgava abandonado. Ezequiel era também um grande poeta, alguém que salta para fora das evidências empíricas de uma cultura pastoril. Tem à mão uma realidade partilhada: a dos rebanhos e a dos pastores. Não vai fazer comparações. Vai colocar Deus a falar e a agir como nunca nenhum pastor o tinha feito. As metáforas são indispensáveis, mas podem ser perigosas. Ao servir-se de uma relação de pastor com as suas ovelhas, aplicada aos seres humanos, pode incorrer num equívoco. Ninguém gosta de ser ovelha, seja qual for o senhor. Tomada à letra, essa expressão é degradante, não é de cidadãos. Para não ofender as ovelhas, quando encontramos seres humanos servis, chamamos-lhes carneiros.
A parábola do Bom Pastor (Lc 15,3-7) faz a ponte entre o Antigo e o Novo Testamento, pois a metáfora só vale para o pastor, para aquele que cuida das ovelhas, sem pensar no lucro que lhe dão, mas pelo amor que lhes tem. Usa, por isso, de uma irracionalidade: deixar em perigo noventa e nove, o rebanho todo, para ir atrás de uma desgarrada. Ao extremar as atitudes, até ao absurdo, indica que está a falar de outra coisa que não cabe no registo do razoável, que está fora da lógica dos números. Para Deus cada pessoa é insubstituível. Em todo o lado, noventa e nove são noventa e nove e uma apenas uma. Na lei dos grandes números mais um ou menos um não é relevante.
3. Paulo, na segunda leitura (Rom 5,5b-11), não fala em parábolas, nem constrói grandes teorias psicológicas ou filosóficas sobre o amor. Só lhe interessa mostrar que a lógica do comportamento de Deus em relação a nós, salta para fora do amor razoável. Segue a loucura da sua própria gratuidade. Não tem porquês. É a respiração do seu modo de ser. Não olha para quem merece ou não merece ser amado. É o amor que nos tem que nos pode tornar amáveis, se nele consentirmos. Mas o seu amor é anterior a tudo. Neste ponto coincide com S. João: Deus é amor, o amor que nos amou primeiro.
               
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público
09.06.2013

12 junho 2013

Mulheres como Igreja e na Igreja

        
Voltando ao tema mulheres como Igreja e na Igreja. Vejamos o que nos diz São Mateus que nos leva a propor a plena igualdade das duas faces da humanidade, na sua intensa variedade:
Vejamos:
Mateus 1, 21: ‘Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos seus pecados.’
O povo será salvo dos seus pecados. Nesse povo estão obviamente incluídas as mulheres e os homens. Ambos serão salvos. Estão ao mesmo nível. Se tal não fosse o caso, teria que ser referido.
Mateus 3, 2: ‘ Dizia: ‘Convertei-vos,  porque está próximo o Reino do Céu.’
Quer as mulheres quer os homens devem afastar-se do pecado, devem converter-se ao bem,  e o Reino dos céus a ambos vai acolher.
Mateus 6, 14-15: ‘De facto, se perdoarem aos outros as suas ofensas o Pai Celestial também lhes perdoará a vocês. Mas, se não perdoarem aos outros, o vosso Pai também lhes não perdoará a vocês.’
Quer as mulheres quer os homens devem praticar o perdão, quer as mulheres quer os homens têm que evitar o ódio. Os níveis de exigência com que nos deparamos são iguais para ambos os sexos.
Mateus 22, 36-39: ‘Mestre, qual é o maior mandamento da Lei? Jesus disse-lhe: ‘Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.’
Mulheres e homens têm que amar, amar completamente, perdidamente. Não há distinções – ou seja, quer umas quer outros são capazes de amor e, em última análise, são feitos para o amor, por mais que possam pecar contra o amor. Não há uma bitola para o amor das mulheres e outra para o dos homens, o que seria curial se houvesse qualquer diferença ontológica entre os sexos.
Mateus 23, 37: ‘Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis reunir os teus filhos como a galinha reúne os seus pintainhos sob as asas, e tu não quiseste!’
Mais uma vez, não se introduziu distinção de género na metáfora dos ‘filhos’. A todos abarca, o feminino e o masculino, pois se não o fizesse, mais uma vez teria que ser enunciado. Evoca-se a imagem da galinha, uma representação muito positiva da função maternal atribuída a Deus.
Finalmente, vejamos Mateus 26, 26-28: ‘Enquanto comiam, Jesus tomou o pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: ‘Tomai, comei: Isto é o meu corpo. Em seguida, tomou um cálice, deu graças e entregou-lho, dizendo: ‘Bebei dele todos. Porque este é o meu sangue, sangue da Aliança, que vai ser derramado por muitos, para perdão dos pecados. Eu vos digo: Não beberei mais deste produto da videira, até ao dia em que beber o vinho novo convosco no Reino de meu Pai.’
 Neste quadro os discípulos simbolizam-nos a todos, homens e mulheres, que somos convidados a comer e a beber o corpo de Jesus. O sangue foi derramado para o perdão dos pecados da humanidade. Ou seja, dos nossos pecados.
Ana Vicente
11.06.2013


02 junho 2013

A POSTERIDADE DE JOÃO XXIII

          
1. O Movimento Internacional Nós Somos Igreja-Portugal, no passado Sábado 25 de Maio, promoveu um Encontro-Debate sobre “A revolução de João XXIII”. No próximo dia 3, dia do cinquentenário da sua morte, será  evocado na Celebração da Eucaristia do Convento de S. Domingos às 19.15h.
Na história da Igreja Católica no século XX existe um antes e um depois da revolução de João XXIII. Concretizada na inesperada convocatória do Concílio Vaticano II e no estilo absolutamente original do seu desenrolar durante a primeira sessão.
No dia 11 de outubro de 1962, o Concílio Vaticano II, idealizado pelo Papa João XXIII, "teve os seus trabalhos oficialmente inaugurados, contando com a presença de 2.540 padres conciliares, número este inédito para a História da Igreja: 1060 europeus (dos quais 423 italianos, 144 franceses, 87 espanhóis, 59 polacos, 29 portugueses…), 408 asiáticos, 351 africanos, 416 norte-americanos, 620 latino-americanos e 74 da Oceania". Mas, mesmo assim, "estavam ainda ausentes do Concílio muitos bispos de dioceses que viviam sob regimes autoritários", na sua maioria de ideologia comunista. "O número de participantes variou muito de acordo com as sessões, nunca porém estando abaixo de 80% do total dos padres conciliares".
Pela primeira vez na História, "os peritos [...] foram ouvidos na elaboração dos textos conciliares, trazendo consigo uma imensa riqueza de tradições e culturas". Estes peritos, que não tinham direito a voto, são também chamados de consultores teológicos e tinham uma grande influência no Concílio. Várias dezenas de observadores protestantes e ortodoxos também foram convidados e estiveram presentes nas 4 sessões do Concílio.
Foram tão polémicas e tão comentadas algumas decisões de Paulo VI, de João Paulo II e de Bento XVI que levaram a esquecer o Vaticano II, a própria figura de João XXIII e, sobretudo, a de João Paulo I, que importa revisitar, pois o ruído exterior em torno das estranhas circunstâncias da sua morte, as declarações que fez, aparentemente pouco ortodoxas e a reforma temida da Cúria, tornaram ainda mais breve um Pontificado que durou apenas um mês (26.08 a 28.09.1978). Este Papa do Sorriso parecia-se demasiado com João XXIII. No dia 27 de Agosto, perante uma enorme multidão centrada na Praça de S. Pedro, esclareceu: Não tenho nem a sabedoria de coração do Papa João, nem a preparação e a cultura do Papa Paulo, mas estou no seu lugar e, portanto, disposto a servir a Igreja.
Tinha uma grande experiência pastoral e o seu carisma foi rapidamente associado ao de João XXIII, que não só fugia à diplomacia vaticana, mas se atreveu a declarar: logo que fui eleito papa desatei a ler o anuário pontifício para conhecer a organização da Santa Sé. Fala, sorri, diverte-se (diz amar a virtude do divertimento), parece-se com S. Francisco de Assis. Cita publicamente Júlio Verne a Montaigne e lê um poema de amor francês diante de uns jovens noivos. Na altura da primeira audiência geral, a 6 de Setembro, pede que se reze para que a nossa viatura não tombe num fosso. Recomenda, aos seus ouvintes, que sejam humildes e sempre humildes. NO seu último discurso, a 23 de Setembro, lembra aos Romanos, em S. João de Latrão, que se sirvam das suas pobres forças. Invocou a Deus como Pai e Mãe e queria dar exemplo de um cristianismo que fosse no quotidiano lúcido e sorridente. Também ele, como João XXIII, não era um papa como os outros, mas era a continuação do que havia de mais genuíno no Vaticano II que ele queria tornar popular, isto é, assumido pelo povo e a recriar, em novas situações, numa história que se lembra de muita coisa, mas que se esquece dos pobres. Os que falam do bom Papa João para dizer que era um bem intencionado, um bonzinho que não captava a complexidade da Igreja e do mundo, também quiseram fazer de João Paulo I, do Albino Luciani um santo ingénuo. A única coisa que desejo é que o Papa Francisco se inspire nestes dois predecessores e continue a sua posteridade.
Frei Bento Domingues, O.P.
1 de Junho de 2013

O SEGREDO DA ALEGRIA DE JOÃO XXIII (2)

         
1. É próprio do moralismo destilar maldições sobre as mais autênticas alegrias humanas. Instalou-se, há muitos séculos, em certas correntes do cristianismo e reaparece, periodicamente, como se fosse a sua versão mais genuína pelo seu “desprezo do mundo”. É, na verdade, uma importação estranha à poética pregação de Cristo que respira, em cada gesto e em cada parábola, o gosto da plenitude da vida (Jo 20,30-31).
A evasão gnóstica foi denunciada por S. João ao falar de Cristo como Aquele que ouvimos, vimos com os nossos olhos e nossas mãos apalparam da Palavra da vida (…) E isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa (1 Jo 1, 1-4). A pregação e a intervenção da Igreja só valem na medida em que forem Evangelho, isto é, revelação de que, da parte de Deus, todos somos amados, mas com um encargo: amai-vos uns aos outros (Jo 15, 12-17).
Dir-se-á que qualquer um, em dia sim, poderia escrever algo parecido. Esqueci, nas transcrições referidas, uma frase que perturba essa veleidade: ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Não fica por aqui: sois meus amigos se esta for a vossa prática. Se os bons sentimentos não chegam para a boa literatura, também não são as boas intenções que nos salvam.
2. João XXIII agradeceu sempre a Deus ter nascido com bom feitio, mas nunca se contentou com o seu contagiante bom humor, testemunhado nos fioretti, que sobre ele foram publicados. Recorde-se a resposta que deu a quem lhe perguntou quantas pessoas trabalhavam no Vaticano: mais ou menos metade.
No Resumo das grandes graças feitas a quem tem pouca estima por si próprio, mas recebe as boas inspirações e as aplica com humildade e confiança, podemos ler:
«Primeira Graça: Aceitar com simplicidade e honra o peso do pontificado, com a alegria de poder dizer que nada fiz para o provocar, absolutamente nada; antes, com a preocupação diligente e consciente de não ter chamado a atenção sobre a minha pessoa; muito contente, durante as variações do Conclave, quando via alguma possibilidade de diminuir no meu horizonte e voltar-me para outras pessoas, verdadeiramente digníssimas e venerandas, em minha opinião.
Segunda Graça: Surgirem, no meu espírito, como simples e de execução imediata, algumas ideias, nada complexas, pelo contrário bastante simples, mas de vasto alcance e responsabilidade em relação ao futuro e com sucesso imediato. Exemplos da expressão: colher as boas inspirações do Senhor, “simpliciter et confidenter”!
Sem ter pensado nisso antes, terem saído de mim, numa primeira conversa com o meu Secretário de Estado, a 20 de Janeiro de 1959, palavras sobre o Concílio Ecuménico, o Sínodo Diocesano e a remodelação do Código de Direito Canónico, contrariamente a todas as minhas suposições ou pensamentos sobre este ponto.
O primeiro a ficar surpreendido com esta minha proposta fui eu próprio, sem que alguma vez me tivesse dado indicações a este respeito.
E dizer que tudo, depois, me pareceu tão natural no seu imediato e continuo desenrolar!
Depois de três anos de preparação laboriosa, é certo, mas também feliz e tranquila, eis-me agora nas faldas da Santa Montanha.
Que o Senhor nos ampare para conduzirmos tudo a bom termo».
3. João XXIII poderia dizer, como o poeta: o Concílio aconteceu-me. Numa nota escrita em 1959 pode ler-se: “Este é o mistério da minha vida. Não procureis outra explicação. Repeti sempre a frase de S Gregório Nanzianzeno: voluntas tua pax nostra”.
Ao longo de toda a sua vida, como testemunha o seu Diário, o que procurou, em primeiro lugar, foi cultivar a humildade para estar disponível, livre, para o que Deus quisesse fazer dele. Cada passo nesta direcção era um motivo de alegria. Ele gostava da sua família, gostou da vida no seminário, de ser padre, de ser bispo, de ser papa e de descobrir que tudo foram etapas para chegar ao ponto de sentir que o mundo inteiro era a sua família. Nessa altura, sentiu-se na onda de Deus. Não era uma conquista ideológica ou teológica, mas o fruto de ter amado todos aqueles com quem viveu e a quem foi enviado: Bulgária, Turquia, Grécia, França. Descobriu, não só outras faces da Igreja Católica, mas também a Igreja Ortodoxa, o Islão e o mundo laico. Foi um acolhimento transformador, dele próprio e dos outros. Tornou-se um pontífice, uma pessoa que faz pontes, que põe mundos em contacto.
Ao ler o Diário de João XXIII parece que tudo lhe acontece sem premeditação, mas não sem método: “o esforço vigilante de reduzir tudo, princípios, preocupações, posições, trabalho, ao máximo de simplicidade e de calma; o podar atentamente a minha vida daquilo que apenas é folhagem inútil e gavinha e dirigir-me à verdade, à justiça e à caridade, sobretudo à caridade. Qualquer outro sistema não é mais do que atitude e busca de afirmação pessoal que se trai e se torna embaraçante e ridícula. (…) Deixo aos outros a superabundância da astúcia e da chamada perícia diplomática e continuo a contentar-me com a minha bonomia e simplicidade de sentimentos, de palavra e de trato. O resultado final é sempre favorável a quem permanece fiel à doutrina e aos exemplos do Senhor”.
Frei Bento Domingues, O. P.
02.06.2013
in Público