1. Nada é inocente, nada está
irremediavelmente perdido, tudo precisa de nascer de novo, a começar pelas
palavras da fé cristã e dos seus rituais. A dignidade essencial do ser humano
manifesta-se, precisamente, na capacidade de se interrogar, de se corrigir, de
mudar de rumo, de não se conformar com o mundo tal como se apresenta. A
história do cristianismo está carregada de ambiguidades, de equívocos, de
pecados, mas a conversão faz parte do seu caminho de reencontro com o seu
“código genético”.
É legítimo dizer,
ainda que de modo esquemático, que o cristianismo foi-se afirmando face à
cultura e à religiosidade antigas, seguindo um duplo caminho, nem sempre
linear, como afirma Isidro Lamelas. Em relação ao judaísmo, rompeu com as
práticas rituais e prescrições legais impostas pela religião da Lei, mas não
deixou de assimilar muitos dos seus hábitos litúrgicos e cultuais. A prioridade
da fé sobre as obras, pelo menos na perspectiva de S. Paulo, implicava, segundo
uns, uma ruptura total com a religião de Moisés, enquanto outros preferiam
sublinhar a continuidade entre a fé de Abraão e a nova fé em Cristo. No extremo
da primeira tendência, temos Marcião e os seus seguidores; no outro extremo,
encontramos o judeo-cristianismo persistente, em muitas versões.
No respeitante ao
mundo pagão, também foi duplo o critério seguido. Por um lado, foram rejeitadas
as suas práticas e convicções religiosas, na medida em que não eram
compagináveis com a revelação bíblica. Por isso, os primeiros cristãos foram
acusados de ateísmo. Por outro lado, foi assumida a natural religiosidade pagã
como preparação para acolher a “verdadeira religião”, identificada com o
cristianismo. Enquanto, porém, no paganismo a religião se resume ao culto que,
por sua vez, não se distinguia da cultura (vida social e política), no
cristianismo, a fé precede o culto, sem se confundir com nenhum tipo de cultura
ou sistema religioso[1].
2. O duro e persistente conflito que
opôs o cristianismo ao judaísmo e ao paganismo explica-se pela clara destrinça
que Jesus Cristo e a sua herança vieram estabelecer entre fé e religião.
A fé cristã não
assenta, de facto, nem num Livro sagrado nem na observância da Lei e na
reverência ao “Deus dos Pais”, dos antepassados. A sua referência existencial é
a experiência do encontro com Jesus real reconhecido como Cristo, Filho de Deus
(Abba) e que partilha connosco o seu
Espírito de amor filial ( Rom. 8, 14-17).
Como lembrei no
Domingo passado, é num credo trinitário que renascem, por uma radical
transformação espiritual, os que acedem ao Baptismo cristão: ”Eu te baptizo em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Essa invocação é tão decisiva que,
no começo da Eucaristia, é sempre com ela que marcamos o nosso corpo
celebrante. O desejo de quem preside à Eucaristia retoma as palavras de Paulo
(2Cor.13,13): A graça do Senhor Jesus
Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco!
Compreende-se que
para o Judaísmo e para o Islão, o Cristianismo continue a ser considerado uma
religião politeísta ou, pelo menos, um monoteísmo impuro. No cristianismo de
rito latino, tirando a atracção que a fé trinitária exerce em algumas correntes
místicas, não vai muito além de uma misteriosa fórmula abstracta, de uma
matemática estranha, sem influência real, concretizada apenas no nome ligado a
algumas pessoas, igrejas ou hospitais. A rede de subtilezas dos teólogos parece
o fruto de uma ociosidade mal empregue. O grande filósofo da modernidade, I.
Kant, confessava a inutilidade religiosa e ética do dogma da Trindade.
3. Resta portanto a questão de fundo:
adianta ou não a fé trinitária das igrejas cristãs implicada na Incarnação do
Verbo? Sem ela que perdem os cristãos, as igrejas e a sociedade? Será mesmo
assim tão essencial para viver e entender o sentido da vida?
Segundo o filósofo,
teólogo e politólogo dominicano, Paul Blanquart[2], a
simbólica trinitária é um modelo social e uma forma de pensar e repensar o
mundo e a sociedade. É o modelo da perfeita democracia: na indestructível
unidade de Deus, as pessoas são todas iguais, todas activas, todas diferentes,
sem subordinação e em comunhão. É a existência simultânea do uno e do múltiplo.
Se o ser humano, no
mundo, é criado à imagem de Deus, não é indiferente que esse Deus seja pura
solidão ou uma comunhão de pessoas. Na experiência humana, se insistimos apenas
na unidade, esquecendo as diferenças, temos uma unidade vazia. Se, pelo
contrário, insistirmos nas diferenças, pomos em causa a igualdade. A simbólica
trinitária serve para, no plano mental e na realidade social, promover a máxima
unidade na máxima diversidade. Se nesse modelo, não existe a subordinação das
pessoas, também não existe a vontade de poder de umas sobre as outras, existe a
alegria da comunhão nas diferenças.
Não é por acaso que
Paulo, nas suas cartas, é pela unidade da Igreja na multiplicidade de carismas.
Não existe nenhum carisma para abafar os outros.
Não podemos deixar de
ouvir a voz de Leonardo Boff, que entende a Trindade como a melhor comunidade.
Fica para a próxima.
Frei Bento Domingues,
O. P
09.02.2014
in Público
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