1. No dia 11 de Dezembro
de 2013, a Revista Time elegeu o Papa Francisco como a pessoa do ano. É
raro que um novo protagonista consiga tanta atenção no palco do mundo e em tão
pouco tempo. Cativou milhões que tinham perdido a esperança na Igreja. Nancy
Gibbs, directora da Time, sintetizou as razões substanciais da escolha feita:
“em nove meses, ele soube colocar-se no centro das discussões essenciais da
nossa época: a riqueza e a pobreza, a equidade e a justiça, a transparência, a
modernidade, a globalização, o papel da mulher, a natureza do casamento, as
tentações do poder”.
Tentei, na Revista 2 do Público
(22.12.2013), fazer um balanço desses nove meses. Não o renego nem julgo que
haja mudanças de rumo. Pelo contrário. No entanto, o percurso é cada vez mais
surpreendente e, para o mundo conservador, dentro e fora da Igreja, há sempre
medo do dia seguinte. É o sentido desta reflexão.
Quando Jorge Mario Bergoglio, de
76 anos, aceitou ser Bispo de Roma, Papa da Igreja Católica Romana, não estava
garantido o sucesso do caminho que escolheu. A renúncia de Bento XVI, mas
querendo ficar por perto, era mais do que ambígua. Esteve muito tempo na Cúria,
com imensas ocasiões para actuar e deixou apodrecer a situação até ao
impossível. Ficar por perto, para quê? Não se entende, mas também não adianta
levantar suposições inverificáveis ou fazer processos de intenção.
O Papa Francisco sabia que a
primeira coisa que lhe era pedida pela opinião pública era uma operação de
limpeza da Cúria pontifícia. O mais urgente seria varrer a casa: pôr a andar os
que não queriam ou já não podiam mudar e formar um governo novo. Tinha-se
tornado insuportável, para qualquer católico decente, ver a insistência dos
meios de comunicação em narrativas de tenebrosos escândalos financeiros da
banca do Vaticano e as revoadas de padres e até de bispos acusados de
pedofilia. Consta que as indeminizações exigidas a certas dioceses deixaram-nas
na absoluta penúria. Era evidente que as carradas de publicações moralistas,
revestidas de pinceladas teológicas e de unção espiritualista, assinadas pelos
papas, tinham perdido qualquer encanto. As periódicas campanhas temáticas,
distribuídas pelas dioceses, tinham esgotado a sua precária eficácia. As
viagens dos papas eram caras e entendidas como fuga às reformas de fundo,
sempre adiadas.
Que fazer então?
2. O Papa tomou algumas
decisões, mas não caiu na tentação de governar por decretos. Era preciso mudar
tudo, a começar por ele próprio e do modo mais rápido e simples. Foi o que fez
logo na primeira saudação, à janela do Vaticano e nunca mais parou: “Dado que
sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa
conversão do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer aberto às
sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao
significado que Jesus Cristo lhe deu e às necessidades actuais da
evangelização” (Evangelli Gaudium, n. 32).
Nos meios conservadores, há
muitas vozes contra as suas movimentações e declarações: este papa está a
estragar a Igreja e a minar a sua doutrina mais segura; é tão descontraído a
falar das coisas mais sérias que não parece o supremo guardião das certezas,
mas um semeador de dúvidas; não sendo economista, atreve-se a dizer que esta
economia de exclusão e de desigualdade mata; atacou o capitalismo como uma nova
tirania; os alertas contra a corrupção, dentro e fora do Vaticano, colocaram-no
na mira das máfias.
Em termos de balanço provisório
destes dez meses de Papa, convém não perder de vista a história. A Igreja
Católica Romana, mediante a ousadia inesperada e descontraída do velho Papa
João XXIII, tinha começado uma grande revolução religiosa, no mundo
contemporâneo. Ao convocar o Concílio Vaticano II, apontou um caminho que
devolvia a palavra à Igreja, não identificada com a hierarquia, mas com o povo
da graça de Deus, no qual, todos são sujeitos, em comunhão, na vida da Igreja.
Para as gerações mais novas,
sejam leigos ou clérigos, a memória actuante desse acontecimento dos anos 60 do
século passado (1962-1965), perdeu-se. Mesmo os que o acompanharam e seguiram
com entusiasmo acabaram por ter a sensação de que tudo aquilo tinha sido num
belo sonho sem futuro. Eram os “vencidos do catolicismo” do poema de Ruy Belo e
dos comentários de João Bénard da Costa. Para os que consideraram o Vaticano II
como um desastre para a Igreja, o importante era esquecer esse concílio.
Tanto os que se sentiram
defraudados, como os que consideravam que o Concílio tinha sido uma má ideia,
as reacções pró e contra não tiveram a mesma intensidade e as mesmas manifestações,
em todos os grupos. No entanto, a mentalidade restauracionista do pós-concilio
tentou agir de forma global: nomear bispos conservadores para todo o lado,
sobretudo para a América Latina, publicar um novo Direito Canónico e um
Catecismo Católico que os equipasse para recorrer à doutrina, sã e segura, e às
boas orientações pastorais.
Importante também era eliminar as
correntes teológicas – da Europa Central, Estados Unidos, América Latina, Ásia
e África – que pudessem questionar essa normalização. No terreno, ficou quase
só a Teologia do cardeal Ratzinger e dos que a repetiam. Ele era o teólogo da
Congregação para a Doutrina da Fé e, depois, o próprio Papa.
Enquanto tudo se passava no campo
teológico e na administração eclesiástica, os ecos públicos desse mal-estar
eram sempre limitados. Tudo mudou, quando os meios de comunicação começaram a
encher-se de casos terríveis de pedofilia e da lavagem de dinheiro, como já
referimos. Aí já não era possível alimentar hipocrisias. Os que procuraram
fazer esquecer o que o Vaticano II tinha de mais inovador e pensavam recuperar
o prestígio da Igreja, mediante operações restauracionistas ou de movimentos de
santidade privilegiada, ficaram sem qualquer estratégia. João Paulo II
deixou-se imolar pelo sacrifício e Bento XVI chegou à conclusão que não tinha
saídas para nada. Entretanto, o cristianismo, em vários países da América
Latina, enchia as Igrejas Pentecostais.
No passado dia 4 de Dezembro,
prosseguiram os trabalhos da segunda série de reuniões do Conselho dos
cardeais, instituído pelo Papa Francisco a 30 de Setembro, para o coadjuvar no
governo da Igreja universal e para estudar um projecto de revisão da constituição
apostólica Pastor bonus sobre a Cúria romana. Declarou que o importante
é uma Igreja mais misericordiosa, pobre e missionária.
Muitas vezes, decretos e
comissões servem para adiar o inadiável. Este Papa começou por assumir e
continua a incarnar aquilo que propõe aos outros membros da Igreja. Para ele, a
Igreja não é a hierarquia. Esta é apenas um conjunto de serviços instituídos
para escutar, animar e orientar as comunidades cristãs. Mas a hierarquia, antes
de ensinar, tem de aprender. As comunidades cristãs têm de viver na
transformação do mundo, a partir dos excluídos, dos pobres, de todas as
periferias.
O Papa Francisco está, pela sua
prática e pelas suas declarações, a ajudar os católicos, as outras igrejas, as
outras religiões, os agnósticos e os ateus a olhar o mundo, não a partir dos
multimilionários e dos movimentos da Bolsa, mas a partir dos frutos de miséria
gerados pela idolatria do dinheiro, do lucro a qualquer preço. Para pronunciar
a muito glosada expressão, “esta economia mata”, não precisa de nenhum curso
nas mais famosas faculdades de economia e gestão, católicas ou não. Basta ter
os olhos abertos. Se ele não tomasse atitudes, não abordasse a questão do
desemprego e da situação dos idosos e das crianças pobres, não fazia a ruptura
com o mundo das estatísticas, o mundo dos números que abstraem das pessoas. Se
fosse mais um fanático das redes e da Internet, teria apenas um contacto
virtual com os pobres, sem cheiros e sem incómodos. Com este tipo de
intervenções, M. Bergoglio criou um problema que não sei como o irá resolver:
não se cansa de manifestar a sua radical discordância com a economia que mata,
mas por outro lado, consta que, em algumas instituições universitárias da
igreja, a orientação do ensino da economia, da finança, da gestão e da
política, preparam os alunos para esse homicídio.
4. Escolheu as más
companhias dos que certa doutrina da Igreja do passado, sem misericórdia, tinha
classificado como pecadores ou, pelo menos, em situação irregular, impróprios
para se aproximarem da comunhão sacramental. Atacou as obsessões do moralismo
incapaz de escutar os homossexuais, as uniões de facto, os divorciados
recasados. Para ele não vale tudo, mas o que não vale, de modo nenhum, é uma
Igreja que não sabe acolher, não se deixa interrogar, uma Igreja sem a
inteligência do coração e sem luta pela justiça social.
Algumas pessoas escandalizam-se
com o lugar que ele dá às crianças e aos adolescentes “problemáticos”. A
verdade é que deixou que uma criança de seis anos ocupasse a Sede Apostólica,
que um bebé lhe tirasse o solidéu e já chegou a colocar este boné sagrado na
cabeça de uma miúda.
Há dois mil anos, os apóstolos
aborreciam-se ao verem as crianças seduzidas por Jesus e procuravam afastá-las.
Agora, dizem que o Papa está a profanar as vestes sagradas. O Papa sabe que as
crianças são, diariamente, vítimas de exploração e de maus-tratos, sobretudo,
as crianças e os adolescentes que vivem na rua: 120 milhões no mundo inteiro e
30 milhões só na África.
A Capela Sistina é conhecida,
venerada e visitada pela sua extraordinária beleza. Aí reúnem-se os cardeais
para escolher o futuro bispo de Roma, o papa. Mais importante do que eleger um
papa é celebrar um baptismo, a transformação cristã da vida. O Papa Francisco
resolveu estabelecer a verdadeira hierarquia no Vaticano. Para celebrar o
Baptismo de Jesus, contado nos Evangelhos, baptizou o filho de uma mãe solteira
e a filha de um casal, casado apenas pelo civil, nessa Capela (12.01.2014). Não
é muito usual. Perante varias mães, pais e 32 crianças, chamou a atenção para a
nova orquestra: “Hoje o coro vai cantar, mas o coro mais belo é o das crianças.
Algumas delas irão chorar porque têm fome ou porque não estão confortáveis.
Estejam à vontade, mamãs: se elas tiverem fome, dêem-lhes de comer, aqui elas
são as pessoas mais importantes”. Este Papa já tinha afirmado que as mães não
deviam ter problemas em dar de mamar aos seus filhos, durante as cerimónias
papais.
Dir-se-á que, nestes dez meses,
ainda não teve tempo para se dedicar às mulheres, as mais excluídas na
orientação da Igreja, apesar de terem sido elas as enviadas pelo Ressuscitado
para evangelizarem os Apóstolos e de, por enquanto, ainda serem a grande
maioria. Herdou um terreno minado pela Carta Apostólica, de João Paulo II, Ordinatio
Sacerdotalis (22.05.1994). As teólogas feministas e os movimentos de
mulheres cristãs certamente o irão ajudar a superar esta dificuldade, que nem é
das maiores.
Dirigindo-se à Comissão Teológica
Internacional (06.12.2013), em vez de lhes recomendar cautela e ortodoxia,
incitou os teólogos a serem pioneiros do diálogo da Igreja com as culturas; a
situarem-se como profetas nas fronteiras e não ficando para trás, na caserna.
O magistério e os teólogos devem estar atentos às expressões autênticas do sensus
fidelium.
A sensibilidade cristã dos fiéis
não é só dos homens. As mulheres são sempre as esquecidas. O jornal L’ Osservatore
Romano acaba de lançar um suplemento sobre Mulheres, Igreja e Mundo,
de circulação mensal, de quatro páginas a cores. Mais vale tarde do que nunca.
Não se pode esquecer a forma como
respondeu às perguntas dos Superiores Maiores das Congregações Religiosas.
Destacou a importância da qualidade e do estilo da formação dos jovens
religiosos. Em todas as ocasiões denuncia o clericalismo, com expressões tais
que levam alguns a julgar que pertence a uma organização anticlerical! O Papa
perdeu a devoção aos monsenhores. Pobres daqueles que já se julgavam na calha.
Nesse Encontro, a convicção mais
abrangente é esta: as grandes mudanças da história acontecem quando a realidade
é vista, não a partir do centro, mas da periferia. Trata-se, para o Papa, de
uma questão hermenêutica: a realidade não se compreende a partir de um centro
equidistante de tudo. Para a entender bem, é preciso mover-se da posição central
da tranquilidade, da zona de conforto, para as zonas agitadas das periferias.
Este é o melhor caminho para escapar ao centralismo e às focagens ideológicas
(Cf. http://www.laciviltacattolica.it/;
tradução em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/526950-qdespertem-o-mundoq-o-).
Bergoglio quer abrir ao mundo, um
futuro novo, mesmo a partir do Vaticano. Quem não gosta das suas inovações, irá
sempre encontrar algum precedente para desvalorizar estes atrevimentos. O que
importa é subverter a desordem estabelecida, que se tinha transformado numa
ordem sagrada.
O Papa mandou uma carta aos
futuros cardeais: “O cardinalato não significa uma promoção nem uma honra nem
uma condecoração, é simplesmente um serviço que exige ampliar o olhar e alargar
o coração”.
Anunciou uma viagem à chamada
Terra Santa, nas pegadas de Paulo VI (1963). Não é o desafio religioso e
político mais fácil que tem pela frente. Que contributo de justiça e paz poderá
oferecer a uma região minada por todas as contradições do mundo?
Frei Bento Domingues
in Seara Nova
Lisboa, 19 de Janeiro de 2014
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