1. A Igreja Católica é um mundo de muitos mundos, em todos os continentes e nas suas diversas culturas, com cerca de 1 bilião e duzentos milhões de membros. O século XXI é muito tempo, mas curto para o seu potencial crescimento. Não é a única figura da transcendência e da humanização do mundo. Não é a única Igreja cristã, mas para ser fiel a si mesma, terá de ser cada vez mais católica, intercultural, acolhedora e dialogante.
Não se poderá tornar a dizer, como no Concílio “geral” realizado em Florença-Ferrara, em 1442: “A Santa Igreja crê firmemente, confessa e proclama que ninguém fora da Igreja Católica - e não apenas os pagãos, mas também os judeus, os heréticos e os cismáticos - pode tomar parte na vida eterna, mas que irá para o fogo eterno”, preparado para o diabo e para os seus anjos (Mt 25. 41), salvo se, antes do fim da sua vida, se tornar seu membro”.
Hoje, serão poucos os católicos que se reconhecem em tal declaração. Durante séculos, muitos a subscreveram sem hesitar e até pegaram em armas para a defender. A mudança foi-se preparando antes e tornou-se radical no Vaticano II: ”aqueles que, ignorando, sem culpa, o Evangelho de Cristo e a sua Igreja, procuram Deus de coração sincero e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também podem alcançar a salvação eterna“ (Lumen Gentium nº 16).
2. Neste Concílio, a Igreja Católica descentrou-se para Cristo, para as outras Igrejas Cristãs, para as outras religiões, para o mundo contemporâneo, sem anátemas ou anexações. João Paulo II sustentou, no início do seu pontificado, que o caminho da Igreja faz-se na caminhada do ser humano, em todas as suas expressões. Pediu perdão pelos pecados e crimes dos seus membros, cometidos ao longo dos séculos.
Numa célebre conferência de preparação do Vaticano II, Yves Congar dizia que a Igreja, a partir do presente, deve ter um olhar para o passado e outro para o futuro (ante et retro oculata). Quem nunca olha para trás, para os antepassados, nunca saberá olhar para a frente, para a sua posteridade.
A nossa experiência do tempo e a nossa existência no tempo estão centradas no presente, não sem alguma ambiguidade. Já na antiguidade greco-latina se dizia: ”só o presente é nosso, não o que foi ultrapassado, nem o que ainda é esperado; um já desapareceu e o outro não temos a certeza que venha a ser”. Falavam assim pela exigência de agir, aqui e agora, combatendo a nostalgia e a antecipação. Nos tempos modernos, com a ideia do progresso, surgiu uma inflação do conhecimento histórico e uma grande atracção pelo género literário da utopia. Era preciso medir os avanços e como avançar para o futuro: conhecer para ultrapassar. Esqueçamos o passado e voltemo-nos para o futuro. De facto, o passado será sempre o futuro do futuro.
A relação da Igreja com o tempo é mais complexa. A tradição tem sido, muitas vezes, confundida com tradições que impediam e impedem reformas fundamentais. São uma permanente tentação restauracionista. Nenhuma Igreja cristã pode, sem traição, deixar de acolher o Novo Testamento. É uma referência incontornável, exposta, no entanto, a regras de interpretação, para não se cair no fundamentalismo.
A ideia de reforma permanente e de tradição não são incompatíveis: há verdadeiras e falsas reformas, como há verdadeiras e falsas tradições e, sobretudo, muita ignorância da história.
A Igreja vive, actua e celebra a Fé no presente. A Eucaristia dominical foi sempre entendida como a Páscoa semanal. Celebra a presença clandestina de Cristo na vida, nos trabalhos, nas lutas de toda a semana e relança um tempo novo em transformação. As únicas relíquias de Cristo são as comunidades cristãs, que não se esgotam na transformação da vida e da sociedade, mas precisam também de belas e verdadeiras liturgias fraternas, onde a vida é transfigurada ou atraiçoada.
3. A Igreja cresce na base, numa rede imensa de comunidades. Este tempo de crise de lideranças das Igrejas, a nível local e de governo central, oferece uma grande oportunidade para a revisão do seu passado e a construção do seu futuro, no século XXI. Não é preciso começar do zero. O Vaticano II foi um começo revolucionário, mas continua, em grande parte, por cumprir e sofreu traições cujas consequências estamos, agora, a sentir amargamente.
Importa, antes de mais, alterar o modo da “nomeação” dos Bispos: eles são das comunidades e para as comunidades, na sua imensa diversidade cultural. Não são nem devem ser gestores nomeados pela administração de uma empresa multinacional. O Papa deveria ser eleito por representantes das conferências episcopais, por delegados dos vários movimentos laicais, das múltiplas congregações religiosas e por outras formas a estudar, para obter o seguinte resultado: o que diz respeito a todos, deve ser tratado por todos.
A liberdade de expressão na Igreja deve ser promovida de forma a incentivar a investigação científica e a criação cultural, responsabilizando as comunidades por um grande espírito de comunhão, na diversidade. A pluralidade é a expressão da diversidade de carismas. A Igreja não pode desejar ser um mundo à parte – não Te peço que os livres do mundo, mas que os livres do mal (Jo 17, 15 ) - uma alternativa, mas tem de trabalhar na transformação da sociedade para que os valores cristãos, laicizados, de liberdade, igualdade e fraternidade, não sejam sistematicamente esvaziados.
Como diz a Carta a Diogneto (século II): “com efeito, os cristãos não se distinguem das outras pessoas nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Estejam onde estiverem, não habitam cidades peculiares, nem falam um dialecto estranho, nem vivem uma vida fora do comum”.
O que será a Igreja Católica do século XXI? Quem poderá saber? Espero que viva em reforma permanente e que, no seu rosto, os seres humanos, todos os seres humanos, descubram e sintam que são amados por um Amor eterno (Lc 10 17-38).
Frei Bento Domingues, O.P.
Nota: Este artigo do Frei Bento foi publicado no último Expresso
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