Admirei Bento XVI e fiquei contente, desde a primeira hora, com a sua eleição. Talvez porque os contactos de proximidade que tivera antes me mostrassem um homem humilde, superior, sereno, lúcido, atento. Encontrei-o em três sínodos dos bispos, na visita regulamentar dos bispos à Congregação a que presidia, no seu andar discreto, atravessando cada manhã a Praça de S. Padro a caminho do seu trabalho. Apesar da fama pouco abonatória que o seu múnus lhe acarretara, a minha dor pelas decisões que nem sempre consegui entender atenuava-se com o conhecimento da pessoa, do seu currículo de teólogo, da lucidez dos seus escritos, das suas intervenções nos sínodos e, por fim, do rigor dos seus juízos, exigidos pela unidade e defesa da fé.
Ao ser eleito, sabendo que ele conhecia bem a Cúria Romana, tive esperança de que viria por ele, finalmente, a sua urgente reforma. Sabia que a clareza do seu pensamento e a vasta cultura de que era portador, dariam caminho à Igreja, necessitada de luz orientadora e governo maleável, então a contas com um mundo perturbado, um laicismo exacerbado, as muitas mazelas próprias, públicas e ocultas. Vi como ele soube dar atenção ao essencial do Evangelho, à vastidão da cultura emergente, como denunciou o carreirismo clerical romano. Assumiu, com humildade, o grave problema da pedofilia. Não teve receio de mostrar o valor profético de Lutero, um proscrito de muitos séculos. Foi corajoso ao enfrentar perigos e ameaças em terreno onde não eram palavras vãs. Fez viagens de que, pela idade e pelo rigor dos programas, se podia dispensar, incarnando, de modo vigoroso, o seu dever de pastor universal. Falou claro aos bispos ao partilhar com eles as dificuldades da evangelização, e foi sempre muito cordial com eles nos seus encontros públicos e privados. Mostrou atenção ao sofrimento das pessoas pelas dificuldades morais sentidas ante problemas que se generalizavam. Sentiu-se interpelado por situações na Igreja que o punham a ele mesmo na ribalta e em contradição com situações de bispos, que lhe mereciam o maior respeito. Soube interpretar o Vaticano II com sabedoria e mostrou que, nos seus documentos, está a fonte da renovação necessária. No seu estilo, mostrou grande amor à Igreja e à sua missão no mundo. Respeitou chefes religiosos e políticos, sem deixar dúvidas sobre a seriedade e a verdade das suas palavras e gestos.
Apesar de tudo, inesperadamente, decidiu deixar, com total liberdade, o governo da Igreja, alegando o que estava à vista: idade avançada, saúde com limitações, cansaço insuperável, exigências do bem da Igreja. Deixou problemas em aberto, talvez porque, no seu pensamento, não havia ainda chegado a hora do enfrentamento.
Este gesto é um sinal a exigir discernimento. Muitos, mesmo estranhos à vida da Igreja que não à sua missão na história, o vêm lendo com perspicácia que falta, talvez, a alguma gente de dentro. Conhecendo Bento XVI, não é difícil admitir quanto terá sofrido com a situação da Cúria Romana, a estrutura criada para apoio ao Papa no governo da Igreja. Fez algumas reformas significativas, mas sentiu-se impotente ante os conflitos, manobras e até traições, que se foram levantando a seus olhos, a ponto de tolher o seu caminho. Fala-se de favorecimentos e corrução no Vaticano e há sempre algum fundamento neste falar livre. A reforma da Cúria não se faz sem o Papa e a colaboração séria dos que aí trabalham. Esta colaboração parece ainda faltar.
O trabalho da Igreja onde está implantada depende muito dos bispos e o Papa pôde ver, nas suas viagens apostólicas e nos grupos que chegavam a Roma, o trabalho insano que estes realizam em toda a parte. E, se não fazem mais, para além das suas limitações naturais, é porque encontram as dificuldades de um centralismo romano controlador que, à revelia do Vaticano II, cada dia cresce e bloqueia iniciativas, sem consultas prévias. O Colégio Apostólico, essencial à missão da Igreja e ao seu dia a dia, vai-se desvalorizando. As Conferências Episcopais nunca foram queridas, nem amadas, pelos poderosos da Cúria Romana e, nos seus países, salvo exceções meritórias, mais somam bispos que esforços organizados de evangelização e de presença eclesial na sociedade.
Mas, o Papa não poderia ter enfrentado esta situação, se na realidade ela lhe era dificultadora da sua missão? Se reconheceu a sua impotência, é porque nem sempre conhecer o caminho se tem capacidade para o percorrer. O poder inconcebível da Cúria Romana e a sua ferrugem de séculos não se apalancam facilmente. Mas é preciso enfrentar a situação, e desde já. A impotência confessada de Bento XVI, assim o exige.
A Igreja tem de se interrogar, a todos os níveis, sobre o significado deste gesto tão interpelador, como incómodo. Não pode, porém, deixar de se confrontar com as grandes preocupações de Bento XVI: o conhecimento aprofundado e o seguimento total de Jesus Cristo, o Senhor e Mestre; a verdade vivida e testemunhada a todo o custo; a evangelização, a pedir um novo fôlego; a prática da caridade, lei prioritária e insubstituível dos cristãos e comunidades; o espírito de serviço ao Povo de Deus e desprendimento de privilégios da hierarquia, uma premência de todos os dias; o diálogo com o mundo e a cultura emergente, uma exigência sem hiatos; a presença fraterna junto dos que mais sofrem, um dever; a esperança cristã, pano de fundo de todas as lutas e projetos pastorais e apostólicos…
Desde o Vaticano II, a Igreja contou com papas que testemunharam, com a sua vida e ação, a fidelidade à Obra de Deus, as urgências do Evangelho, a preocupação incansável com o mundo das pessoas. Assim vai continuar. Por certo, será escolhido um crente, venha de onde vier, capaz de sentir as preocupações do Evangelho, das pessoas concretas e dos tempos que correm. Porém, a Igreja não é só o Papa e ninguém pode subir à varanda, para que aí, bem instalado, apenas veja e critique o que, a seu gosto, se passa ou não se passa. O gesto de Bento XVI foi de amor à Igreja e de desinstalação, para nos dizer que, na comunidade eclesial, não há compromissos por procuração, nem aceita, como o carisma, a crítica fácil, alheia à vida e à missão.
Mais do que de especulações fáceis e de ditos inconscientes, o tempo que corre até à eleição do novo papa, é, para todos os cristãos e suas comunidades, tempo de reflexão, oração, enraizamento do compromisso que nasce da fé Tempo de exame de consciência sobre o amor efetivo à Igreja conciliar e às normais exigências da missão.
Opinião | António Marcelino| 21/02/2013
Correio do Vouga
Ao ser eleito, sabendo que ele conhecia bem a Cúria Romana, tive esperança de que viria por ele, finalmente, a sua urgente reforma. Sabia que a clareza do seu pensamento e a vasta cultura de que era portador, dariam caminho à Igreja, necessitada de luz orientadora e governo maleável, então a contas com um mundo perturbado, um laicismo exacerbado, as muitas mazelas próprias, públicas e ocultas. Vi como ele soube dar atenção ao essencial do Evangelho, à vastidão da cultura emergente, como denunciou o carreirismo clerical romano. Assumiu, com humildade, o grave problema da pedofilia. Não teve receio de mostrar o valor profético de Lutero, um proscrito de muitos séculos. Foi corajoso ao enfrentar perigos e ameaças em terreno onde não eram palavras vãs. Fez viagens de que, pela idade e pelo rigor dos programas, se podia dispensar, incarnando, de modo vigoroso, o seu dever de pastor universal. Falou claro aos bispos ao partilhar com eles as dificuldades da evangelização, e foi sempre muito cordial com eles nos seus encontros públicos e privados. Mostrou atenção ao sofrimento das pessoas pelas dificuldades morais sentidas ante problemas que se generalizavam. Sentiu-se interpelado por situações na Igreja que o punham a ele mesmo na ribalta e em contradição com situações de bispos, que lhe mereciam o maior respeito. Soube interpretar o Vaticano II com sabedoria e mostrou que, nos seus documentos, está a fonte da renovação necessária. No seu estilo, mostrou grande amor à Igreja e à sua missão no mundo. Respeitou chefes religiosos e políticos, sem deixar dúvidas sobre a seriedade e a verdade das suas palavras e gestos.
Apesar de tudo, inesperadamente, decidiu deixar, com total liberdade, o governo da Igreja, alegando o que estava à vista: idade avançada, saúde com limitações, cansaço insuperável, exigências do bem da Igreja. Deixou problemas em aberto, talvez porque, no seu pensamento, não havia ainda chegado a hora do enfrentamento.
Este gesto é um sinal a exigir discernimento. Muitos, mesmo estranhos à vida da Igreja que não à sua missão na história, o vêm lendo com perspicácia que falta, talvez, a alguma gente de dentro. Conhecendo Bento XVI, não é difícil admitir quanto terá sofrido com a situação da Cúria Romana, a estrutura criada para apoio ao Papa no governo da Igreja. Fez algumas reformas significativas, mas sentiu-se impotente ante os conflitos, manobras e até traições, que se foram levantando a seus olhos, a ponto de tolher o seu caminho. Fala-se de favorecimentos e corrução no Vaticano e há sempre algum fundamento neste falar livre. A reforma da Cúria não se faz sem o Papa e a colaboração séria dos que aí trabalham. Esta colaboração parece ainda faltar.
O trabalho da Igreja onde está implantada depende muito dos bispos e o Papa pôde ver, nas suas viagens apostólicas e nos grupos que chegavam a Roma, o trabalho insano que estes realizam em toda a parte. E, se não fazem mais, para além das suas limitações naturais, é porque encontram as dificuldades de um centralismo romano controlador que, à revelia do Vaticano II, cada dia cresce e bloqueia iniciativas, sem consultas prévias. O Colégio Apostólico, essencial à missão da Igreja e ao seu dia a dia, vai-se desvalorizando. As Conferências Episcopais nunca foram queridas, nem amadas, pelos poderosos da Cúria Romana e, nos seus países, salvo exceções meritórias, mais somam bispos que esforços organizados de evangelização e de presença eclesial na sociedade.
Mas, o Papa não poderia ter enfrentado esta situação, se na realidade ela lhe era dificultadora da sua missão? Se reconheceu a sua impotência, é porque nem sempre conhecer o caminho se tem capacidade para o percorrer. O poder inconcebível da Cúria Romana e a sua ferrugem de séculos não se apalancam facilmente. Mas é preciso enfrentar a situação, e desde já. A impotência confessada de Bento XVI, assim o exige.
A Igreja tem de se interrogar, a todos os níveis, sobre o significado deste gesto tão interpelador, como incómodo. Não pode, porém, deixar de se confrontar com as grandes preocupações de Bento XVI: o conhecimento aprofundado e o seguimento total de Jesus Cristo, o Senhor e Mestre; a verdade vivida e testemunhada a todo o custo; a evangelização, a pedir um novo fôlego; a prática da caridade, lei prioritária e insubstituível dos cristãos e comunidades; o espírito de serviço ao Povo de Deus e desprendimento de privilégios da hierarquia, uma premência de todos os dias; o diálogo com o mundo e a cultura emergente, uma exigência sem hiatos; a presença fraterna junto dos que mais sofrem, um dever; a esperança cristã, pano de fundo de todas as lutas e projetos pastorais e apostólicos…
Desde o Vaticano II, a Igreja contou com papas que testemunharam, com a sua vida e ação, a fidelidade à Obra de Deus, as urgências do Evangelho, a preocupação incansável com o mundo das pessoas. Assim vai continuar. Por certo, será escolhido um crente, venha de onde vier, capaz de sentir as preocupações do Evangelho, das pessoas concretas e dos tempos que correm. Porém, a Igreja não é só o Papa e ninguém pode subir à varanda, para que aí, bem instalado, apenas veja e critique o que, a seu gosto, se passa ou não se passa. O gesto de Bento XVI foi de amor à Igreja e de desinstalação, para nos dizer que, na comunidade eclesial, não há compromissos por procuração, nem aceita, como o carisma, a crítica fácil, alheia à vida e à missão.
Mais do que de especulações fáceis e de ditos inconscientes, o tempo que corre até à eleição do novo papa, é, para todos os cristãos e suas comunidades, tempo de reflexão, oração, enraizamento do compromisso que nasce da fé Tempo de exame de consciência sobre o amor efetivo à Igreja conciliar e às normais exigências da missão.
Opinião | António Marcelino| 21/02/2013
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