"O Papa Francisco centra no encontro pessoal,
no diálogo, na transparência da presença, no sorriso, na acolhida das pessoas,
no estímulo a não temer medo e testemunhar a fé cristã”, avalia o teólogo.
"A teologia do Papa se distingue dos
anteriores pelo acento na dimensão pastoral”, assinala João Batista Libânio em
entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ao comentar a visita de
Francisco ao Brasil durante a Jornada Mundial da Juventude.
Na sua avaliação, "os dois Papas anteriores
se empenharam em transmitir nas viagens, com a consciência da própria
responsabilidade da unidade e da guarda do depósito da fé, a doutrina oficial
da Igreja. E falavam longamente de temas teológicos ou da moral. O Papa
Francisco fez outra opção. Preferiu o discurso direto, próximo das pessoas a
tocá-las pela transparência da presença e por teologia simples, acessível com
toque pessoal e afetivo. Para ele, sem sentir e ouvir as pessoas, as falas não
atingem”.
Para o teólogo, Bergoglio aposta na mudança das
estruturas da Igreja "pela força do élan missionário, servindo as pessoas
em comunidade”, o que "implica renovação interna da Igreja e diálogo com o
mundo”, e alerta para "o risco da ideologização da pregação do evangelho.
Sempre presente, sob diversas formas: reducionismo socializante,
psicologização, atitude gnóstica e pelagiana. Haja discernimento!”.
João Batista Libânio é padre jesuíta, escritor e
teólogo. É doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de
Roma. Atualmente, leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e é
Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais.
É autor de inúmeros livros, dentre os quais Teologia da revelação a partir da
Modernidade (5. ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2005), Qual o caminho entre o crer
e o amar? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2005) e Qual o futuro do Cristianismo? (2.
ed. São Paulo: Paulus, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como avalia a visita do Papa ao
Brasil?
João Batista Libânio - Chamaram realmente a
atenção na pessoa do Papa em visita ao Brasil, antes de tudo, a simplicidade, o
despojamento da pompa que costuma cercar tais visitas, a tranquila alegria do
rosto acolhedor. Mostrou-se próximo das pessoas, especialmente das crianças e
dos pobres. Não temeu, em momento nenhum, a cercania do povo. Circulava com
vidro abaixado precisamente para saudar a gente e sentir-lhe o calor humano.
Devolvia o mesmo afeto que recebia.
IHU On-Line - Qual foi o discurso mais importante
do Papa Francisco no Brasil? Por quê?
João Batista Libânio - A importância dos discursos
depende do ângulo de análise. Prefiro distinguir vários tipos de discursos,
cada um com valor próprio e incomparável. Antes de tudo, falou aos jovens.
Destinatário principal da viagem. Na maioria dos discursos referiu-se a eles.
Três pontos me pareceram fundamentais. Antes de tudo, mostrou-se preocupado com
eles na situação de crise em que estão por razões do desemprego, de exclusão
por parte do sistema, do assédio da cultura presentista e do prazer e do
dinheiro, sem falar do desânimo que os ameaça diante da corrupção, da política
em curso. Em face de tal situação, fala-lhes de esperança, de utopia, de
coragem, de não ter medo de enfrentar a realidade, dando testemunho da própria
fé. E, finalmente, incentiva-os à ação, a sair às ruas, a protestar e a criar
uma sociedade e Igreja novas. Chama-os "porta do futuro”.
Outros dois discursos parecidos na tônica se deram
também fisicamente vizinhos. A visita a Manguinhos e ao hospital de dependentes
químicos. Aí predomina o olhar da compaixão, do cuidado, do afeto, da palavra
de incentivo e coragem na luta. De novo, revela fina atenção às pessoas que
sofrem.
Há os discursos à sociedade, aos políticos, aos
intelectuais. Recorda-lhes a responsabilidade de manter a memória da história
do povo e a esperança de construir o futuro de sociedade justa, fraterna,
solidária. E insiste fortemente na importância do diálogo.
Três discursos visaram antes ao interno da Igreja:
ao CELAM, aos Bispos do Brasil e aos religiosos. Aos religiosos lembrou três
pontos fundamentais: a origem da vocação que vem de Deus, a missão de anunciar
o evangelho e a promoção da cultura do encontro. Sobre os dois discursos
maiores aos Bispos do Brasil e do CELAM veremos mais a baixo
IHU On-Line - Teologicamente, o que é possível
compreender pela Teologia do Povo, adotada por Bergoglio? Em que consiste a
teologia do papa?
João Batista Libânio - A teologia do Papa se
distingue dos anteriores pelo acento na dimensão pastoral. Evitando todo corte
artificial e equivocado entre dimensão teológica e pastoral, como nos adverte
K. Rahner – toda teologia é pastoral, toda pastoral é teologia -, a diferença
retrata acentos diversos. Em que ela consiste? Os dois Papas anteriores se
empenharam em transmitir nas viagens, com a consciência da própria
responsabilidade da unidade e da guarda do depósito da fé, a doutrina oficial
da Igreja. E falavam longamente de temas teológicos ou da moral. O Papa
Francisco fez outra opção. Preferiu o discurso direto, próximo das pessoas a
tocá-las pela transparência da presença e por teologia simples, acessível com
toque pessoal e afetivo. Para ele, sem sentir e ouvir as pessoas, as falas não
atingem. Por isso, mostrou-se atento aos sinais do povo e falava, reagindo a
eles.
IHU On-Line - Alguns especialistas estão chamando
Francisco de Wojtyla de esquerda. Como vê essa interpretação?
João Batista Libânio - Não creio que a distinção
esquerda e direita sirva para o caso. Prefiro dizer que João Paulo II estava
preocupado com a doutrina, com a verdade, com o perigo dos erros no campo da
fé. O Papa Francisco centra no encontro pessoal, no diálogo, na transparência
da presença, no sorriso, na acolhida das pessoas, no estímulo a não temer medo
e testemunhar a fé cristã.
IHU On-Line - O papa Francisco reiterou a
necessidade de uma "conversão pastoral”. Como vê essa mensagem aos bispos
do Brasil e do CELAM?
João Batista Libânio - Conversão pastoral
significa precisamente isso: proximidade do sofrimento, das angústias, da vida
das pessoas e daí falar-lhes palavras de conforto, de estímulo, de coragem, de
esperança, a partir da fé em Jesus Cristo e na Igreja. Repetiu em várias
circunstâncias quase à guisa de refrão duas frases: Não tenham medo e mantenham
a esperança viva! Espera, portanto, da Igreja institucional que saia dos
rincões fechados e vá às ruas encontrar e dialogar com as pessoas em seus
problemas e dificuldades. Portanto, uma Igreja mais pastoral que administrativa
a visar ao encontro e diálogo com povo e não à organização. Eis a conversão
pastoral!
IHU On-Line - Quais foram os pontos mais
contundentes do discurso do papa para os Bispos da CNBB e do CELAM?
João Batista Libânio - Ao falar para os bispos,
tomou como metáfora do discurso o evento das aparições de Nossa Senhora
Aparecida. Usa expressões fortes do agir de Deus nela: humildade, surpresa,
reconciliação. Toca-nos esperar a lentidão de Deus, o reconhecimento do
mistério que habita o povo, em vez de enveredar-nos pelo caminho da
racionalização apressada. Em lugar da riqueza dos recursos, desenvolvamos a
criatividade do amor.
Insiste em não ceder ao medo, desencanto,
desânimo, lamentações! Em seu lugar, coragem, ousadia, sair às ruas, dialogar
com as pessoas, ouvi-las nas mais diversas situações, sem preconceitos, sem
juízos prévios, caminhando a seu lado.
Entre si, que os bispos mantenham a colegialidade,
solidariedade, diversidade sem forjar unanimidade que violente as riquezas
regionais. Na sociedade, cabe à Igreja anunciar com clareza e liberdade o
Evangelho.
Aos bispos do CELAM, fala de seu papel de
colaborar solidária e subsidiariamente para promover, incentivar e dinamizar a
colegialidade episcopal e a comunhão entre as Igrejas. Discurso bem diferente
da verticalidade romana tão acentuada nos últimos tempos. Apoia-se em dois
pontos importantes: o patrimônio herdado do Encontro de Aparecida e a renovação
em curso das Igrejas particulares.
Chamou a atenção logo no início, ao recordar a
Conferência de Aparecida, ao clima de partilha entre os bispos de suas
preocupações, à oração e ao ambiente religioso com a "música de fundo” do
cântico, das orações e da participação dos fieis peregrinos. Sentiam os bispos
a presença do "Povo de Deus”. No horizonte, estava a Missão Continental. E
tudo isso aconteceu em Santuário Mariano, em que se sentia a presença da Virgem
Maria.
Ele aposta na mudança das estruturas da Igreja,
não pela via "do estudo de organização do sistema funcional eclesiástico”,
mas pela força do élan missionário, servindo as pessoas em comunidade. Isso
implica renovação interna da Igreja e diálogo com o mundo.
Alerta para o risco da ideologização da pregação
do evangelho. Sempre presente, sob diversas formas: reducionismo socializante,
psicologização, atitude gnóstica e pelagiana. Haja discernimento! Alude aos
fatores negativos do funcionalismo e do clericalismo que pedem a conversão
pastoral de que se falou acima. Rejeita fortemente a Igreja autocentrada,
autorreferenciada e insiste na proximidade e no encontro com o povo, como
maneira de a Igreja atuar. Nesse discurso, o silêncio que pesava sobre a
realidade das CEBs é rompido, colocando-as, porém, não no contexto diretamente da
libertação, mas da piedade popular e da superação do clericalismo.
IHU On-Line - Considerando que Francisco
participou da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe,
que postura a Igreja de Roma deve adotar em relação à Igreja do Brasil?
João Batista Libânio - Difícil de responder. Não
sei até que ponto ele conseguiu no pouco tempo de convivência em Aparecida e em
outros encontros conhecer a Igreja do Brasil. Pelo discurso que fez parece que
vai insistir numa Igreja simples, próxima do povo, desclericalizada, voltada
para o diálogo, saindo de si e assumindo o espírito missionário. Desagrada-o a
Igreja autorreferenciada, voltada para dentro, para a sua organização em vez de
ir ao encontro do Povo. Noutras palavras, prefere que o clero seja antes
pastoral que jurídico, antes perto do povo que habitando palácios.
IHU On-Line - O papa tem organizado várias
comissões para reformar a Cúria Romana. Que tipo de reforma vislumbra?
João Batista Libânio - Só depois das primeiras
decisões que tomar, ao ouvir a Comissão, teremos ideia por que caminho irão as
reformas. Aguardemos.
IHU On-Line - O Papa declarou na entrevista de
volta a Roma que uma Igreja sem mulheres é como um Colégio Apostólico sem
Maria, contudo, não é favorável à ordenação de mulheres e disse ainda que é
preciso uma profunda teologia da mulher. Como avalia essas declarações,
especialmente num contexto latino-americano, em que há uma expectativa em torno
da ordenação de mulheres?
João Batista Libânio - O Papa Francisco não começa
o pontificado como se a Igreja não tivesse nenhuma história e tradição que
merecesse ser respeitada. Doutro lado, percebe que no passado se cristalizaram
estruturas hoje caducas. O jogo difícil lhe é pedido de discernimento, aliás
carisma dos jesuítas, de manter a tradição em tensão com a inovação. A
ordenação das mulheres é um dos casos difíceis. É sabido que houve ordenações
de diaconisas no início da Igreja, mas não de presbíteras. Até onde os
conceitos de então são idênticos aos de hoje? O texto de João Paulo II fechando
a questão da ordenação presbiteral da mulher tem tom bem incisivo, mas não
definitivo no sentido dogmático do termo. Até onde um outro Papa pode abri-lo?
Questão em discussão para sim e para não. Afirmações contundentes de papas
anteriores manifestaram-se mais tarde equivocadas. Se o leitor tiver
curiosidade neste ponto, consulte a obra de GONZÁLEZ FAUS, I.. A autoridade da
verdade: momentos obscuros do magistério eclesiástico. São Paulo: Loyola, 1998.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
João Batista Libânio - Os gestos e as palavras do
Papa Francisco no Brasil ficarão gravadas, como alguém que veio estar perto de
nós e não descarregar sobre nós conhecimentos doutrinais, normas, fazendo valer
sua autoridade de Papa. Simplicidade, proximidade, alegria, esperança, coragem,
não ter medo, saída de nós para encontrar e dialogar com todos: eis as palavras
chaves que nos deixou.
Adital
Quinta, 08 de agosto de 2013.
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