"Creio que há uma mudança
que está se operando em parte do clero, do episcopado e de muitos fiéis,
sobretudo mulheres na direção de uma nova ética sexual. O fermento está na
massa. É preciso esperar que a levede lentamente”, diz a teóloga.
Confira a entrevista.
“O papa usou uma tática de não
tocar de forma clara nos assuntos litigiosos na Igreja numa primeira visita.
(...) Quis ser acolhido como Papa com um novo jeito de ser mais próximo e
afetivo e sem as pompas que caracterizam a vida dos pontífices seus
predecessores”, avalia Ivone Gebara em entrevista concedida à IHU On-Line por
e-mail. Para ela, Francisco age como “se acreditasse que com ele uma nova era
na Igreja Católica Romana pudesse ser inaugurada. Mas, não podemos esquecer que
o Papa Francisco é o mesmo cardeal Bergoglio de Buenos Aires e suas posições
contrárias ao casamento gay, ao aborto, aos anticoncepcionais são bem
conhecidas do povo argentino”. E aponta: “E mais, a teologia e a ética sexual
oficial da Igreja Católica ainda se referem a um mundo pré-moderno onde os
avanços da ciência não tivessem afetado a cultura e a moralidade das pessoas”.
A teóloga afirma que a resposta
do papa aos jornalistas referente à ordenação das mulheres a “surpreendeu”. “A
surpresa não foi o ‘não’ em relação à ordenação, mas quando afirmou a
necessidade de uma ‘teologia da mulher’ na Igreja”, menciona.
E esclarece: “Com essa resposta
evidenciou um desconhecimento da luta e da produção teológica das mulheres por
muitas décadas. E isto é preocupante para um pontífice que está à frente de uma
Igreja majoritariamente feminina. Não sei se o desconhecimento é real ou se corresponde
a uma postura política em relação ao movimento de mulheres no mundo e na
Igreja. Nesse sentido avalio a visita como deixando a desejar, sobretudo que a
maioria dos jovens presentes na Jornada Mundial da Juventude era de mulheres”.
Ivone Gebara é doutora em
Filosofia, pela Universidade Católica de São Paulo, e em Ciências Religiosas,
pela Université Catholique du Louvain, na Bélgica. Ela lecionou durante 17 anos
no Instituto de Teologia do Recife - ITER, até sua dissolução, decretada pelo
Vaticano, em 1989.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como avalia a
visita do Papa ao Brasil?
Ivone Gebara - Quando fazemos uma
avaliação de alguém, sobretudo, de um personagem público como o Papa Francisco,
nos damos conta da parcialidade de nossas avaliações. Cada pessoa avalia a
outra a partir de um ponto de vista ou de uma expectativa ou de uma frustração.
No fundo nenhuma avaliação é completa, mesmo as que se pretendem ser avaliações
gerais. Não fujo à regra. Repito como tantos outros analistas que a figura do
Papa Francisco é muito simpática, sua proximidade das pessoas e seu esforço de
usar uma linguagem mais simples e compreensível são dignos de nota. Além disso,
tem tomado posições importantes em relação ao governo da Igreja especialmente
em resposta aos escândalos do Vaticano assim como posições significativas na
linha da denúncia da injustiça social como quando esteve na Ilha de Lampedusa
no sul da Itália. As posições de alguém são sempre interligadas às ações
presentes e do passado.
Minha avaliação toca também o meu
compromisso em relação à causa das mulheres que se expressa de diferentes
formas e nos diferentes contextos. A resposta que deu aos jornalistas na volta
à Itália quando perguntado sobre a ordenação das mulheres me surpreendeu. A
surpresa não foi o “não” em relação à ordenação, mas quando afirmou a
necessidade de uma ‘teologia da mulher’ na Igreja. Com essa resposta evidenciou
um desconhecimento da luta e da produção teológica das mulheres por muitas
décadas. E isto é preocupante para um pontífice que está à frente de uma Igreja
majoritariamente feminina. Não sei se o desconhecimento é real ou se
corresponde a uma postura política em relação ao movimento de mulheres no mundo
e na Igreja. Nesse sentido avalio a visita como deixando a desejar, sobretudo
que a maioria dos jovens presentes na Jornada Mundial da Juventude era de mulheres.
IHU On-Line - Diferente dos
outros papas, Francisco não abordou em seus discursos questões de gênero e
moral, por exemplo. O que o silêncio do papa sinaliza?
Ivone Gebara - Creio que o papa
usou uma tática de não tocar de forma clara nos assuntos litigiosos na Igreja
numa primeira visita. A meu ver, mas posso estar enganada, quis ser acolhido
como Papa com um novo jeito de ser mais próximo e afetivo e sem as pompas que
caracterizam a vida dos pontífices seus predecessores. É como se acreditasse
que com ele uma nova era na Igreja Católica Romana pudesse ser inaugurada. Mas,
não podemos esquecer que o Papa Francisco é o mesmo cardeal Bergoglio de Buenos
Aires e suas posições contrárias ao casamento gay, ao aborto, aos
anticoncepcionais são bem conhecidas do povo argentino. E mais, a teologia e a
ética sexual oficial da Igreja Católica ainda se referem a um mundo pré-moderno
onde os avanços da ciência não tivessem afetado a cultura e a moralidade das
pessoas. Por exemplo, os insistentes conselhos da Igreja contra os
preservativos e anti-concepcionias revelam o quanto esses conselhos são
anacrônicos em relação ao mundo de hoje. E mais, como esse tipo de exigência
provoca o surgimento de comportamentos dúbios em muitas pessoas no que se
refere a moral sexual. Cada um age conforme suas necessidades e crenças e a
Igreja institucional age a partir de princípios ignorando a vida real das
pessoas.
IHU On-Line - Questionado sobre o
fato de não ter mencionado esses assuntos em seus discursos, Francisco disse
que os jovens já sabem qual é a posição da Igreja em relação a tais temas. Como
a senhora vê essa resposta? Vislumbra alguma mudança na doutrina da Igreja ou
na maneira de abordar esses temas?
Ivone Gebara - Creio que no calor
do grande espetáculo das falas do papa e do ambiente de convivência dos jovens,
esses assuntos capitais não foram tocados por Francisco e não houve igualmente
insistência dos jovens para isso, ao menos publicamente. Penso que o papa não
desconhece o fato de que os problemas acima enumerados são fundamentalmente
problemas da juventude e não dos mais velhos. O mesmo se poderia dizer das
drogas. Entretanto, se a resposta não foi dada diretamente pelo Papa, aliás,
uma resposta que seria bastante conhecida, foi dada por alguns grupos de Igreja
talvez até apoiados por autoridades episcopais.
Em muitas sacolas entregues aos
jovens havia um manual de moral sexual em diferentes línguas e, por incrível
que pareça, um pequeno feto em forma de boneca assim como um pequeno terço em
que cada conta representava um fetinho. Eu quase não acreditei. Precisei ver
com meus próprios olhos para confirmar. Queriam instruir os jovens contra o
aborto dessa forma realista, violenta e desrespeitosa dos corpos e das dores
humanas.
Sinto que precisamos crescer em
humanidade, precisamos nos aproximar de forma desarmada das questões e dores
alheias. Com o sistema legalista de pureza apresentado por muitos grupos e
pessoas da Igreja corremos o risco de acirrar as diferentes formas de violência
e a mentira nas relações humanas.
Apesar disso, creio que há uma
mudança que está se operando em parte do clero, do episcopado e de muitos
fiéis, sobretudo mulheres na direção de uma nova ética sexual. O fermento está
na massa. É preciso esperar que a levede lentamente.
IHU On-Line - Considerando os
primeiros meses da atuação do Papa Francisco, o que é possível vislumbrar
acerca de seu pontificado?
Ivone Gebara - Creio que ele
começa com um ponto positivo. Há uma inegável aceitação de sua pessoa e uma
esperança em relação a reformas na Igreja Católica. Mas sabemos bem que embora
líderes sejam importantes às estruturas de poder e outras, mudam apenas com o
empenho coletivo. Nesse sentido creio que os grupos católicos espalhados pelo
mundo deveriam manifestar-se mais, fazer propostas e enfrentar a realidade
plural da Igreja. Creio que essa realidade plural deveria ter direito de
cidadania respeitada. É difícil dizer isso quando desenvolvemos ao longo de
séculos a ideia da Igreja una, santa e apostólica. O convite ao respeito das
diferenças, o convite à inclusão parecem ser apelos lançados em nosso século
nas mais diferentes instituições. E as instituições religiosas não podem deixar
de ouvi-los.
IHU On-Line - Deseja acrescentar
algo?
Ivone Gebara - Gostaria de
reforçar a ideia de que a Igreja também somos nós. Isto significa sair de uma
concepção clerical ou papal da Igreja. Em outros termos, a Igreja não são
apenas os bispos e não é apenas o Papa. Não são eles que nos entregam a fé. Não
são eles que nos dão Jesus Cristo. Não são eles que nos levam a aderir aos
valores que sustentam a vida. Eles têm uma função, sem dúvida, mas a realidade
da fé se inscreve em cada pessoa, depois se sustenta na comunidade de fiéis
capazes de ser uns para os outros justiça, misericórdia, compaixão e ajuda
mútua na manutenção da vida. Sair da valorização dos esquemas hierárquicos e
buscar a responsabilidade coletiva nas pequenas e grandes ações é um real
desafio para todas/os nós.
Entrevista especial com Ivone
Gebara
Sábado, 17 de agosto de
2013
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