1. Fez
50 anos, no passado dia 11 de Abril, a publicação da Pacem in Terris do Papa João
XXIII. A sua mensagem transpôs as fronteiras das igrejas, das religiões e até
do bloco soviético. Dirigida a todas as pessoas de boa vontade, a todas pedia colaboração
na construção da Paz. O seu programa tinha a verdade como fundamento, a justiça
como norma, o amor como impulso e a liberdade como clima.
Escrita dois meses antes de morrer, dois anos
depois da construção do muro de Berlim e dois meses depois da crise dos mísseis
de Cuba, incorporou, na Igreja Católica, a defesa dos direitos humanos.
Neste mês (de 2 a 4), o Conselho Pontifício
Justiça e Paz procurou redescobrir a fecundidade do espírito e da letra desse
acontecimento exemplar. O Movimento Nós Somos Igreja já tinha realizado uma
conferência sobre esse documento, que encontrou fortes resistências no Portugal
de 1963.
Ontem, o mesmo movimento promoveu uma Conferência
sobre a DSI, a cargo de M. de Lurdes Paixão e Carlos Portas, com testemunhos da
Comunidade de Sant’ Egídio, do Microcrédito, da DariAjudar e do P. Constantino
Alves, dos Filhos da Caridade.
2. Entende-se
por Doutrina Social da Igreja (DSI) sobretudo o corpo doutrinal do papado
romano elaborado desde os finais do século XIX até ao declinar do século XX
(1891-1991). Esta identificação manifestou-se inadequada no Vaticano II, mas
foi retomada no Magistério de João Paulo II. Deixando a Igreja de ser definida
a partir da hierarquia e do seu exclusivo discurso, era normal que a doutrina social
dos papas não pudesse continuar a ser identificada, sem mais, com a doutrina social
do Povo de Deus, confrontado este com desafios diferentes nos diversos
continentes.
O grande teólogo e historiador, Marie-Dominique
Chenu O.P. viu, na chamada DSI, a ideologia do poder romano, cristalizado em
torno do bispo de Roma, o Papa. Não incarnava os comportamentos emanados do
Evangelho e inscritos nas práticas sociais, económicas e políticas dos
católicos. Acerca desta realidade, seria preferível falar de Evangelho Social, isto é, a repercussão da mensagem de Jesus nas diversas
sociedades, no seu devir histórico e cultural.
Por essa razão, Jean-Yves Calvez, ex-provincial
dos jesuítas franceses, publicou 3 volumes sobre os cristãos enquanto pensadores
da realidade social[1]. Ao lado do ensino social dos papas,
dos bispos, do Concílio, existe um trabalho, uma reflexão e investigações
feitas por pensadores independentes que, muitas vezes, alimentam, provocam e
renovam o pensamento oficial. No último volume faz o balanço das publicações
que surgiram depois do Concílio. Ele próprio realizou um trabalho crítico sobre
Os silêncios da doutrina social católica.
A obra
mais significativa, que refaz toda esta vasta problemática, chama-se Les Souverainités, de Hugues Puel[2]. O autor, um dominicano
de formação pluri-disciplinar (direito,
economia, ciências políticas, filosofia e teologia) acompanhou, durante
cinquenta anos, o movimento Economie et
Humanisme. A sua grande preocupação está centrada na formulação de uma ética para a economia.
3. São
numerosas as publicações em torno da DSI, umas de carácter expositivo, outras
de tom apologético e, algumas, acentuadamente críticas. Multiplicaram-se os trabalhos
jornalísticos sobre o banco do Vaticano e as suas mais que suspeitas ligações.
Hugues Puel já tinha mostrado as deficiências de um certo discurso oficial da
Igreja Católica sobre a economia monetária e financeira. Em 1929, os Acordos de
Latrão entre Pio XI e Mussolini marcaram o futuro. Mussolini encontrou neles um
meio de afirmar o seu regime. O papado, ao abandonar o direito aos estados pontifícios,
ganhou o reconhecimento como Estado (Vaticano), sem dúvida minúsculo, 44
hectares, mas cada vez mais reconhecido na diplomacia mundial. O bispo de Roma
é, ipso facto, chefe da Igreja
Católica, titular da Santa Sé, Chefe de Estado.
A Itália, pelos referidos acordos, pagou à Santa
Sé uma grande quantidade de dinheiro. Que fazer com ele, perguntou o Papa? O
Palácio do Vaticano foi restaurado, foi lançada a Rádio Vaticano, mas ainda
sobrava muito dinheiro. Serviu para criar uma instituição financeira que, em
1942, passou a ser um órgão directamente ligado à Santa Sé, com o nome de
Instituto das Obras Religiosas (IOR). A partir dos anos 70, tornou-se um
verdadeiro paraíso fiscal e multiplicaram-se as notícias de escândalos.
Ao
regressar à eclesiologia do Vaticano II, o papa Francisco não se cansa de
repetir que a Igreja somos todos nós. Sendo assim, a DSI terá de resultar das
respostas que a pluralidade das comunidades cristãs, situadas em culturas
diferentes, souberem dar a antigas e novas perguntas: que fizeste do teu irmão? Que economia é essa que tem no centro o culto
idolátrico do dinheiro e exclui os doentes, os idosos, os jovens e as crianças?
Que religião é esta que reza o Pai-Nosso
e tem uns irmãos à mesa e outros à porta?
E se trocássemos umas ideias sobre isto?
[2] Les Souverainités Pouvoirs
Religieux.Pouvouirs Séculiers. Cerf, 2012
Frei Bento Domingues O.P.
20.10.2013in Público
Nota NSI: A Isabel Bento, da Comunidade de Sant'Egídio, infelizmente, não pôde comparecer por motivos alheios à sua vontade.
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