27 outubro 2013

Não fechar o futuro

   
1. Repetia-me, há dias, um amigo, um anticlerical de velha tradição: se for verdade que um jesuíta, conservador e autoritário, se converteu em irmão de Francisco de Assis e que os cardeais fizeram dele o Papa da Igreja Católica Romana, não posso continuar a dizer que não há milagres…

         Muitos católicos, humilhados pelas narrativas de escândalos ocultados durante muitos anos, voltaram a socorrer-se de um velho adágio: Deus escreve direito por linhas tortas. Alguns dos que, entretanto, tinham ido dar uma volta por outras paragens religiosas ou agnósticas, estão de regresso. Não faltam os que estão na expectativa. Aqueles que sempre defenderam as opções da hierarquia, mesmo nas situações mais absurdas, organizam-se, agora, para impedir os estragos que este papa, sem devoção pelo Vaticano e demasiado inconveniente nas pinturas que faz do carreirismo eclesiástico, está a causar ao mundo católico. Este movimento até já tem a sua oração: “Senhor, antes que seja tarde, ilumina-o ou elimina-o”.

Persiste, todavia, nessas reações contrastadas, o grande equívoco que João XXIII quis desfazer, ao convocar o Vaticano II: a tendência inveterada de identificar a Igreja com a hierarquia. Fala-se muito, e com razão, na urgência de reformar a Cúria, mas debatem-se pouco as funções que deve desempenhar, a composição que deve ter, a duração dos mandatos, assim como as modalidades de prestar contas à Igreja, de forma periódica.

Jorge Bergoglio estava consciente de que teria de conduzir esse processo com prudência, a virtude cardeal das decisões corajosas, ponderadas e sábias, a não confundir com o medo de tocar na máquina dos interesses instalados, dispostos a boicotar qualquer tentativa de reforma eficaz. Um reformador não é um tonto com iniciativa.

O papa resolveu começar imediatamente a reforma pela cúpula, para que a Igreja não continue a meter tanta água. Tinha de ser ele a romper com o estilo palaciano e retomar, na prática, a sentença de Santo Agostinho: “para vós sou bispo, convosco sou cristão”.

Se não mostrasse, em concreto, o seu modo de ser cristão, bispo e papa, não tinha autoridade para fazer exigências radicais à Cúria, cujos “eminentíssimos cardeais precisam de uma eminentíssima reforma”, para usar a expressiva linguagem de D. Frei Bartolomeu dos Mártires no Concílio de Trento. Isso explica as suas prioridades: celebrou a 5ª Feira Santa numa prisão de jovens, foi à ilha-cemitério de Lampedusa, às favelas do Rio de Janeiro e aos pobres da Sardenha. Estabeleceu o centro na periferia. Mostra assim que só pode viver a sua missão apostólica na defesa dos excluídos por um sistema mundial, que tem como fruto a globalização da indiferença, a nossa vergonha!

2. Se, com essas iniciativas, estivéssemos perante um fenómeno de populismo e idolatria papal, não seria o próprio Bergoglio a dizer: já basta de Francisco, Francisco, Francisco!

O que o papa procura é centrar as suas preocupações na reconstrução de uma Igreja que seja um nós aberto ao mundo. Herdou, porém, uma questão gritante que papas anteriores, com argumentos duvidosos, afirmaram estar definitivamente encerrada. A pergunta sempre adiada é clara: qual o papel das mulheres numa Igreja, onde são a maioria? O sinal inequívoco de que entrámos num tempo novo será dado pela resposta que se encontrar, com as mulheres, para esta questão. Enquanto os homens não perceberem que elas próprias têm uma contribuição insubstituível a dar para a inteligência do sentido da fé, das suas expressões sacramentais e organizativas, continuaremos, na prática, com o comportamento que Jesus violou: sem contar mulheres e crianças.

A este propósito, convém conhecer um texto que procurou fechar um debate que estava aberto, a Carta Apostólica de João Paulo II, Ordinatio Sacerdotalis (22.05.1994).

Reza assim: “ainda que a doutrina sobre a ordenação sacerdotal, reservada exclusivamente aos homens, tenha sido conservada pela Tradição constante e universal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, hoje em dia, é considerada por várias tendências, aberta ao debate. Chega-se mesmo a atribuir um valor puramente disciplinar à posição tomada pela Igreja, de não admitir as mulheres à ordenação sacerdotal”.

João Paulo II não quis deixar o debate aberto: “É por isso, para que não subsista nenhuma dúvida sobre uma questão de grande importância, que diz respeito à constituição divina da própria Igreja, declaro, em virtude da minha missão de confirmar os meus irmãos (cf. Lc 22, 32), que a Igreja não tem, de maneira nenhuma, o poder de conferir a ordenação sacerdotal a mulheres e que esta posição deve ser definitivamente sustentada por todos os fiéis da Igreja” (cf. DC, 19.06.1994).

3. João Paulo II perdeu uma bela ocasião para convocar um concílio, cuidadosamente preparado com as mulheres e no qual elas tivessem uma presença significativa. Ao ter feito a opção que fez, perdeu a oportunidade de rever palavras, gestos, conceitos e interpretações acerca dos ministérios ordenados, que não significaram a mesma coisa ao longo de dois mil anos. Nenhum papa tem poder para encerrar a Igreja e o Mundo de forma definitiva.

Frei Bento Domingues, O.P.

27.10.2013
in Público

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