1. Vai faltando paciência para tanta
conversa sobre a situação de Portugal antes, durante e depois da troika. Conversas
de avaliações e mais avaliações, de segundo resgate ou não, de programas
cautelares, de ajustamentos e desajustamentos, de renegociação da dívida, de
pedido de mais tempo, de ameaças com os nossos misteriosos credores, de
promessas de regresso aos mercados, de recessão com ou sem espiral e com
medições fantasiosas dos défices na elaboração dos orçamentos que não são para
entender, mas para sofrer.
Conversas sobre a
dívida pública, em crescimento, acompanhada de austeridade e mais austeridade, de
cortes e mais cortes nas magrezas das pensões da gente que não é rica, com a
máquina de fazer desempregados, de tornar os pobres mais pobres e os remediados
sem remédio.
Conversas nos jornais,
nas rádios e televisões sobre aumento da emigração e diminuição do acesso ao
ensino superior, sobre a impossível renovação etária e a solidariedade entre
gerações, os idosos estarão a mais e as crianças não serão a esperança.
O recurso
ao vocabulário psicanalítico - de masoquistas a sádicos – para classificar o
comportamento dos portugueses sobre a sustentabilidade ou insustentabilidade da
dívida, tornou a conversa fiada numa troca de insultos. A Constituição da
República e o Tribunal Constitucional surgem como cartas fora do baralho.
2.
Na área cultural, de predominância judeo-cristã, vale a pena retomar a questão
do Jubileu, sem catálogos de “indulgências” e tendo diante dos olhos a escandalosa
distância entre ricos e pobres. Algumas organizações retomaram a problemática
do “perdão da dívida” do Terceiro Mundo, inspiradas na tradição do Antigo
Testamento (AT), do Ano Sabático e do Ano Jubilar.
Não pretendo sugerir e muito menos provar, seja o
que for, a partir da Bíblia. Não é um livro, mas a biblioteca base, ou de
referência, de judeus e cristãos, com algumas marcas no Islão, escrita ao longo
de séculos e composta de muitos géneros literários que exigem vários métodos de
leitura e de interpretação. Não é um ditado divino, mas um conjunto de
testemunhos da intervenção de Deus, se acolhidos na fé, quanto à sua
intencionalidade essencial.
No AT, sobretudo em
algumas correntes da teologia da prosperidade,
a riqueza é valorizada como uma bênção divina. A saga dos patriarcas bíblicos
mostra que uma grande família, abundância de rebanhos, ricas colheitas e uma
vida longa valem como assinatura da bondade de Deus. O contrário é sinal de
castigo. Ser rico é um sinal da graça; ser pobre é uma vergonha, uma miséria.
Acontece,
porém, que a desigualdade na repartição da riqueza levanta problemas. Ver ricos
ao lado de pobres, no seio daquele que se considerava o povo de Deus, era um
escândalo, feria a ordem divina: ”não
deve haver pobres entre vós”. Mas havia. Perante esta situação inaceitável,
para não carregar mais, mas abrir o futuro, surgiu uma legislação audaciosa,
expressa no Ano Sabático, de 7 em 7 anos, e no Ano Jubilar, de 49 em 49,
destinados ao repouso da terra, ao perdão das dívidas e à libertação dos
escravos (Lev.25; Êx. 23; Deut. 15).
A lição é clara: só uma redistribuição periódica
dos bens permite abater a espiral infernal da pauperização.
3. Servindo-se do profeta Isaías, Jesus
apresentou o seu programa, na Sinagoga de Nazaré, como um grande Jubileu: proclamar um Ano da Graça do Senhor (Lc,
4,16-22). Entre as muitas parábolas acerca do perdão de dívidas, S. Mateus
(18,23-35), fez um retrato espantoso da nossa situação europeia: o perdoado de
uma enorme dívida, estrangulou um pobre devedor. Vamos ao texto.
O Reino do Céu é comparável a um rei que quis
ajustar contas com os seus servos. Um deles devia-lhe dez mil talentos. Não
tendo com que pagar, o senhor ordenou que fosse vendido com a mulher, os filhos
e todos os seus bens, a fim de pagar o que devia. O servo lançou-se, então, aos
seus pés, dizendo: Concede-me um prazo e
tudo te pagarei. Levado pela compaixão, o senhor daquele servo mandou-o em
liberdade e perdoou-lhe a dívida. Ao sair, esse servo encontrou um dos seus
companheiros que lhe devia cem denários. Segurando-o, apertou-lhe o pescoço
dizendo: paga o que me deves! O seu
companheiro caiu-lhe aos pés, suplicando: concede-me
um prazo que eu te pagarei. Mas ele não concordou e mandou-o prender, até
que pagasse tudo quanto lhe devia. Ao verem o que tinha acontecido, os outros
companheiros foram contar o sucedido ao senhor. Este mandou-o chamar e
disse-lhe: Servo mau, perdoei-te tudo o
que me devias, porque assim me suplicaste; não devias também ter piedade do teu
companheiro, como eu tive de ti?
Seria um anacronismo não ter em conta a distância
social, económica e cultural entre a sociedade em que Jesus viveu e a nossa,
mas esta parábola exprime a atitude que gostaríamos de ver nos que, há 60 anos,
foram perdoados de uma dívida colossal e hoje procuram humilhar as vítimas, não
só dos seus erros, mas de uma situação internacional que não provocaram.
Frei Bento Domingues, O.P.
13.10.2013
in Público
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