07 outubro 2013

PERDÃO DA DÍVIDA

 
1. Tornou-se uma banalidade e um expediente moralista dizer, com estilo enfático, que as nossas sociedades estão irremediavelmente dominadas por imperativos de produção, produtividade e crescimento dos lucros. Hoje, o poder não é militar, religioso ou ideológico, mas tecno-económico. Os modelos e instrumentos que usa – servidos por gráficos e mais gráficos, números e mais números - dispensam a preocupação com as pessoas e os seus estados de alma ou de corpo.   

Seja como for, num mundo onde tudo se compra e vende, parecerá ridículo falar de “perdão da dívida”, embora seja uma questão inevitável, mesmo para Portugal. Persiste uma crença económica de grande simplicidade que, de forma mais ou menos apurada, reza assim: se cada um procurar apenas o seu interesse, consegue-se um mundo justo e calmo, auto-regulado por essa mão invisível de que falava Adam Smith (1723-1790). A experiência por ele evocada repete-se todos os dias: não é da bondade do homem do talho, do comerciante da cerveja ou do padeiro que esperamos o almoço, mas do interesse que todos eles têm em fazer negócio. Com o dinheiro que ganho, compro o que permite a outros garantir a sua subsistência.

       Esta harmoniosa crença talvez funcionasse bem se toda a criatura tivesse unhas, viola e escola, oportunidades iguais e saúde. Para cada um se tornar providência de si próprio, parece que ainda falta alguma coisa. Por isso, a solidariedade e o voluntariado não servem apenas para alimentar a preguiça.

O próprio Séneca (4 a.C.- 65 d.C.), diante da mentalidade mercantilista do seu tempo, lamentava que já não se perguntasse pelo que as coisas eram, mas quanto custavam. Sublinhava, no entanto, que o gesto capaz de manter o laço que une os seres humanos, enquanto humanos, era o dom da gratuidade. Para Sócrates, só era digna de crédito a palavra que não se exercesse como um negócio. Aristóteles não era menos avisado: o dinheiro não tem filhos e a moeda não serve apenas para marcar o preço das coisas. Como intermediário, mostra que nós existimos em relação complementar, não destrutiva, uns dos outros.

2. Max Weber escreveu, em 1904, uma obra célebre, “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. Situando a condição cristã na gestão da criação confiada por Deus aos seus filhos, a Reforma protestante parecia libertar e santificar o espírito empreendedor.

João Calvino (1509-1564) autorizou o empréstimo com juros, proibido até então pela Igreja Católica, mas praticado pelos judeus, durante a Idade Média, a principal actividade financeira que lhes era autorizada. Ao romper com este tabu no seio do cristianismo, o reformador de Genebra afastou o entrave ao desenvolvimento da livre empresa. A sua reflexão integrava os interesses do conjunto da economia: o dinheiro, na sociedade, religa as pessoas entre si; parado é estéril, mas o empréstimo, com juros, coloca-o em circulação. O dinheiro é tão produtivo como qualquer outra mercadoria.

Calvino é acusado de ter libertado os demónios da busca selvagem do lucro, mas ele tomou algumas precauções – sem dúvida insuficientes - para defender os pobres dos usurários. O empréstimo, para o consumo do necessitado, deve ser sem juros e sem esperar o reconhecimento do devedor.

         Diante das derivas que fazem da Reforma a religião do dinheiro, o filósofo protestante, Jacques Ellul, cunhou uma fórmula muito sugestiva: é preciso profanar o dinheiro. Lembra que importa retirar ao dinheiro Mamon, de que fala o Evangelho, as suas promessas ilusórias e reduzi-lo à sua função de simples instrumento material de troca. Como realizar este empreendimento profanador? Numa sociedade dominada pelo dinheiro idolatrado, J.Ellul convida os cristãos a introduzir a esfera do dom e da gratuidade.

3. Não seria eticamente aceitável fazer despesas com o propósito de as não pagar. Mas o “perdão da dívida”, desde as épocas mais recuadas até aos tempos mais recentes, nada tem de insólito. A própria Alemanha, depois de guerras criminosas, beneficiou largamente desse gesto ancestral.

Há 60 anos, 20 países, entre eles a Grécia, Irlanda e Espanha, decidiram perdoar mais de 60% da dívida da Alemanha Ocidental. Segundo uma análise de Éric Toussaint - historiador e presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo -, a dívida antes da guerra ascendia a 22,6 mil milhões de marcos, com juros. A dívida do pós-guerra foi estimada em 16,2 mil milhões. No acordo assinado, em Londres, estes montantes foram reduzidos para 7,5 mil e 7 mil milhões respetivamente. Isto equivale a uma redução de 62,6%. O historiador alemão, Albrecht Ritschl, confirmou que existiu um perdão de dívida gigantesco ao país, que no caso do credor Estados Unidos foi quase total. Em 1953, os Estados Unidos ofereceram à Alemanha um haircut, reduzindo o seu problema de dívida a praticamente nada (Cf. Dinheiro Vivo 28/02/2013).

Pedir o perdão da dívida pode ter inconvenientes. Não lutar por ele, é continuar com o país estrangulado. Na Eucaristia, os cristãos confessam que é no perdão que Deus manifesta o seu poder. Demos essa oportunidade a Angela Merkel.
         Frei Bento Domingues, O.P.
         06.10.2013
       in Público

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