1. Não
há só um modelo de família. Ao longo dos tempos e segundo a diversidade de
povos e culturas, os historiadores e os antropólogos podem testemunhar tanto a
pluralidade das suas formas como a sua presença constante. Mesmo hoje, em
Portugal, apesar da maior fragilização dos laços conjugais, o aumento dos
divórcios, a diminuição dos casamentos e dos filhos, a família apresenta-se, do
ponto de vista da realização e da estabilidade emocional, a grande referência.
Mais de 70% dos portugueses continua a associar a felicidade à vida em casal. O
fim de uma relação não põe em causa esse ideal, embora seja vivido em novos
cenários[1]. É sugestiva a descrição
que alguns sociólogos espanhóis fizeram do ciclo vital dos nascidos no ano
2000. Antigamente, o ciclo vital constava de três ou quatro etapas, agora, de
modo mais complexo e diluído, pode estender-se a nove.
A experiência vital
começa, para muitas crianças, com o cenário, feliz e curto, de um lar normal,
de um filho pequeno com os seus pais. A esta breve etapa, segue-se outra, um
pouco mais longa: esta mesma criança vivendo só com a mãe, separada ou
divorciada. Uma terceira experiência é, talvez, a de um adolescente vivendo num
novo lar com a sua mãe recasada e com uma figura menos atractiva, a de um pai
adoptivo ou padrasto. Chegado à maioridade, esse jovem unir-se-á à sua noiva,
vivendo com ela em união de facto. Num quinto ciclo vital, a maioria destes
jovens acaba por se casar com o seu par e, depois de poucos anos, entram na
sexta etapa, a dos divorciados. Irão passar por um tempo de solidão, mas voltam
a casar. Chegados a esta etapa de maturidade, ficarão viúvos e irão para um lar
ou residência de terceira idade, onde, esporadicamente, o filho ou a filha ou o
neto o irão visitar[2].
2.
Perante esta situação – com esta ou outras configurações – a “Pastoral da
Família” pode ser tentada por um regresso ao passado que já deu quase tudo o
que tinha a dar e se tornou inabitável. O cristianismo, aliás, não é a
nostalgia de um paraíso perdido, mas a saudade de um futuro de transfiguração.
É verdade que muitos pais, ao não desejarem reproduzir um mundo em que nem
sempre foram felizes, não encontraram as alternativas que imaginavam. Por outro
lado, certa educação liberal, preocupada em não impingir valores convencionais, deixou os jovens abandonados a si
mesmos ou como se diz, com desencanto, obrigados
a não acreditar em nada.
A Pastoral da Família não se destina a restaurar
uma herança em ruinas e algo idealizada, por isso é ainda mais necessária e
urgente. Deve ser mais exigente. Além do esforço para estabelecer laços
estimulantes entre gerações, tem de saber escutar, acompanhar, dialogar com
todas estas novas formas de viver em casal, propondo a descoberta existencial
da hierarquia de valores, sem tentar impor o que só pode ser escolhido.
A pergunta a que temos de responder, por obras e
palavras, é esta: que podemos nós, Igreja - de solteiros e casados, de casados
e recasados - aprender com estas novas experiências onde o bem e o mal, o santo
e o perverso, os êxitos e os fracassos humanos andam sempre mais ou menos
misturados? Que caminhos abrem estas realidades a outras formas de viver o
Evangelho?
Os casais cristãos – os que não se julguem o casal-modelo – em vez de guardar a sua
experiência num cofre-forte familiar, como diz o Papa, podem estimular as novas
gerações a desenvolver uma espiritualidade que não tem necessariamente de
reproduzir as mais recomendadas no mercado religioso do passado e no mundo
clerical. Alguém dizia que as homilias dos padres, nos casamentos, oscilavam
entre as tentativas apoetadas e as apatetadas, tendendo todas para um moralismo
sem ética praticável.
As apresentações da doutrina católica da família
tendem a mostrar um itinerário que arranca do Antigo Testamento e vem até aos
nossos dias como uma auto-estrada, com raros e pequenos desvios. A ocultação
das sombras e do escuro não favorece a verdade.
O papa Francisco sabe que as questões da
contracepção, da coabitação, do divórcio, das novas uniões, das uniões entre
pessoas do mesmo sexo, a adopção de novas tecnologias de fertilidade, etc.,
apresentam dificuldades que não podem ser resolvidas de forma abstracta, com
mais ou menos tolerância ou intolerância. A consulta que desencadeou é mais do
que um inquérito. Sendo um método de dinamização de toda a Igreja, não se
espere que fique tudo resolvido no Sínodo.
3. Jesus
Cristo nasceu e cresceu numa família de cultura e religião judaicas. As
narrativas do Novo Testamento não ocultam o longo contencioso que viveu com
esta instituição. A fonte das suas reacções mal-humoradas acabam por ser o seu
maior elogio. O desígnio de Jesus era lançar a corrente do mundo família:
reunir todos os filhos de Deus dispersos. Não aguentava que a sua família o
quisesse prender ao modelo que ele queria superar. Não suportava, por outro
lado, que o direito mosaico fosse invocado para abandonar a mulher aos
caprichos do marido[3].
A família será sempre uma feliz controvérsia.
Frei Bento Domingues,
O. P.
25.011.2013
In Público
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