10 novembro 2013

ENTERRAR O TRIDENTINISMO

    
1. “Tridentino” é, segundo os dicionários, um adjectivo relativo à cidade italiana de Trento ou ao concílio aí realizado, no séc. XVI (1545-1563), para tratar dos problemas do mundo católico, abalado pelo movimento da Reforma protestante, um rio de muitos afluentes. Este demorado concílio, duas vezes interrompido, alimentou, durante muito tempo, polémicas preconceituosas e ideológicas, entre adversários e apologistas. Com o acesso directo às fontes documentais, oficiais e privadas, além da maior atenção aos factores políticos e sociais que o influenciaram, foi-se atenuando o “mito” da decadência defendida por uns e a apologia divinizante de outros. O rigor possível do conhecimento histórico torna a sua revisitação importante para distinguir o que lhe pertence e o que são criações da sua posteridade.
 Este concílio chegou tarde - já estava consumada a cisão na igreja do Ocidente – e começou a ser tão lento na reforma, devido à inercia da cúria romana, que o jesuíta Roberto Belarmino chegou a defender a celebração de um novo. No entanto, durante séculos, o prestígio e a autoridade do concílio de Trento foi sempre crescendo e, levado pelas circunstâncias, exerceu uma função reguladora de toda a vida eclesial. Os papas, do fim do século XVI e seguintes, orientaram tudo para que a Igreja visse no Concílio de Trento a regra última da fé e da disciplina, o filtro indispensável para o conhecimento da verdade. Nele estava englobado e assumido tudo o que havia de bom no passado e a solução de todos os problemas doutrinários e institucionais do presente e do futuro, da Igreja e do mundo. Num manuscrito, conservado na biblioteca universitária de Bolonha, uma mão anónima escreveu: quem estuda este (concílio) a fundo pode dizer que conhece todos os concílios que foram celebrados no passado, porque, em síntese, os contem a todos.
A Igreja pós-tridentina foi adquirindo uma tal solidez que, na fase aguda da separação protestante, ninguém a teria julgado possível. É do conhecimento geral que este tridentinismo conseguiu penetrar, de maneira notável, em certas zonas do meio reformado.
2. Recorrer à expressão tridentinismo soa mal e não figura no dicionário, mas é uma descoberta feliz de G. Alberigo, um grande historiador italiano. Serve para designar o sistema ligado ao prestígio do referido concílio que, na Igreja Católica, fez depender tudo – governo, teologia e disciplina – do poder absoluto do papado romano e da sua cúria. Em nome da unidade religiosa e da obediência ao sucessor de Pedro, reprimia o que o pudesse pôr em causa, considerando a emancipação política, cultural e religiosa do mundo moderno apenas um somatório de erros que o envenenava[1].
Para Yves Congar, trata-se de um sistema simultaneamente teológico e jurídico, centrado na cúria romana, bem organizada e poderosa. Não era apenas um centro de decisão. Depois da supressão das universidades ou centros religiosos de estudos e mediante a instauração de colégios teológicos, em Roma, teve como consequência a própria centralização da teologia. Dominava a formação dos espíritos através de manuais latinos, vigiava as publicações e o ensino, deixando pouco espaço à criatividade e à originalidade. Esta teologia pós-tridentina construiu uma eclesiologia que era, sobretudo, uma hierarquiologia sob o signo da afirmação da autoridade, em clima de controvérsia. No plano do culto e da piedade, predominavam o sacramentalismo, as práticas exteriores e o aumento de novas formas de devoção, favorecidas pela enorme distribuição de indulgências[2].
3. A tendência a concentrar tudo no papado, na teologia do magistério e nas suas proposições irreformáveis teve expressões ultra- ridículas, estudadas, com muito cuidado, por J-M. Tillard[3]. O papa é o sucessor de Deus, pastor de todos os fiéis e enviado para assegurar o bem-comum da Igreja universal e o bem de cada uma das Igrejas. Não esqueçamos que o próprio Pio IX dizia: a tradição sou eu! São expressões extremas do ultramontanismo que, pela boca de Lamennais, confessava: “sem papa não há Igreja; sem Igreja não há cristianismo, sem cristianismo não há sociedade: por isso, a vida das nações europeias tem a sua fonte, a sua única fonte, no poder pontifício”.
Não podemos recuperar aqui as afirmações recolhidas por Yves Congar sobre a autoridade, na eclesiologia do séc. XIX. G. Alberigo julgava que o tridentinismo tinha morrido no Vaticano II. De facto, ressuscitou nos anos 80, com as chamadas proposições irreformáveis do magistério, mesmo quando não traziam o certificado da “infalibilidade”. É a teologia que sofre e imigra. Espero que tenha sido das últimas décadas de esterilidade teológica.
Ao que parece, o Papa Francisco quer voltar a dar a palavra a todos os católicos e ouvir todas as pessoas de boa vontade.
Frei Bento Domingues, O.P.
           10.11.2013
 
 
 
   
 

[1] Cf Novas perspectivas sobre o Concílio de Trento.Concilium 07.09.1965, pg 58-72; Du concile de Trente au tridentinisme,  Irénikon, 54,1981.pg 192-210
[2] Yves Congar, Eglise et Papauté, Cerf, Paris,1994, pg 51-64 ; Cf Bernard Sesboüé/Christoph Theobald, La Parole du Salut, T. 4, Désclées, 1996, pg 176 ss
[3] J.-M. Tillard, O.P., L’évêque de Rome ,Cerf, 1982                                 
 
 

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