A exortação é densa e aborda muitas questões, mas
uma das mais centrais é, visivelmente, o olhar do Papa sobre a pobreza, sobre
os pobres. Pela minha conta, a palavra "pobre" ou "pobres"
ocorre 66 vezes. Uma das sete grandes questões abordadas pelo Papa é precisamente
“A inclusão social dos pobres” analisada com alguma profundidade nos parágrafos
186-216 do documento. Aí reconhece que é necessário resolver as causas
estruturais da pobreza, afirmando com esperança que “a Igreja fez uma opção
pelos pobres” (198) e que deseja “uma Igreja pobre para os pobres”. Contudo, a
nível do funcionamento da Igreja como instituição, não esconde a sua
preocupação com “a falta de cuidado pastoral pelos mais pobres” (70) e
considera que “cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos
de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam
integrar-se plenamente na sociedade.” (187)
Acontece que a pobreza tem cara de mulher – os
estudos realizados a nível nacional e internacional indicam que cerca de 70%
dos pobres são mulheres. Porquê? Com satisfação li que o Papa aborda algumas
das causas desta discrepância: “Duplamente pobres são as mulheres que padecem
de situações de exclusão, maus tratos e violência, porque frequentemente têm
menores possibilidades de defender os seus direitos.” (212). Mas as causas são,
obviamente, mais profundas e complexas, a nível internacional como a nível
nacional. Entramos aqui nas desigualdades de género que tanto têm empobrecido a
humanidade no seu todo, quer material, quer espiritualmente – ou seja, por
razões de ordem cultural, as mulheres têm tido um menor ou nenhum acesso, em
comparação com os homens, à educação, à saúde, à alimentação, à herança em
igualdade com os seus irmãos de sangue em algumas culturas, à formação
profissional, ao emprego remunerado (ganham menos do que os homens por trabalho
de valor igual), aos meios de comunicação social, à investigação científica,
aos lugares de decisão política, económica, militar e religiosa. Basta
constatar que, em Portugal, a maior parte dos beneficiários do Rendimento
Social de Inserção são mulheres. Em todo o mundo são esmagadoramente as
mulheres as responsáveis por famílias monoparentais.
Onde é que a Igreja entra neste contexto? Ela (ou
seja, os seus membros) é simultaneamente parte da solução e parte do problema.
Da solução, porque são muitas vezes pessoas integradas na Igreja, nomeadamente
freiras, que se encontram na primeira linha de apoio àquelas que são mais
pobres e desafortunadas.
Por outro lado, as autoridades religiosas,
constituídas na sua totalidade por homens celibatários, ao continuarem a
proibir as mulheres católicas de utilizarem meios contraceptivos eficazes, ao
pedirem aos Estados para condenarem à prisão as mulheres pobres que recorrem ao
aborto, ao não apoiarem programas de saúde sexual e reprodutiva, (morrem por
ano, de causas evitáveis, cerca de 280.000 mulheres em todo o mundo, por
estarem grávidas ou darem à luz), ao excluírem as mulheres dos lugares de
decisão na esfera religiosa, estão objectivamente a contribuir para a pobreza
feminina. Isto não é ideologia de género, que tão estranhamente preocupa os
bispos portugueses, mas a dura realidade (ver Carta Pastoral da Conf. Episcopal
Portuguesa, Fátima, 14 Nov 2013).
Acredito na coerência deste Papa – mas a tarefa é
árdua, pois vai ter que ser capaz de desassossegar as mentes e os corações de
um número demasiadamente grande de pessoas que temem uma Igreja pobre para as
pobres.
Ana Vicente
Membro do Movimento Internacional Nós Somos Igreja
in Público
24.12.2013
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