A Lista de
Bergoglio fala do tempo em que o actual Francisco passava os dias entre o
breviário e maneiras de despistar a polícia.
B.J.
Harrison (conselheiro da família Corleone, acerca do então recém-eleito João
Paulo I): O Papa está a fazer exactamente o que disseste que faria, está a
limpar a casa.
Michael
Corleone: Devia ter cuidado: É perigoso ser um homem honesto.
In O
Padrinho (III)
Uma das
cenas de O Padrinho que mais me marcou foi a da confissão de Michael Corleone
(MC). Recordo a cena: MC vai falar de negócios com um cardeal - futuro João
Paulo I - que, lendo o seu sofrimento existencial, o desafia: “Não quererá
confessar-se?”. MC, perplexo, escusa-se com os 30 anos que tinham passado desde
a última confissão. Aliás, de que serviria a confissão se não se arrependesse?
O cardeal atalha: “Ouvi dizer que é um homem prático. Que tem a perder?”. E
leva-o para um lugar do jardim, cheio de flores, onde costuma ouvir os seus
padres em confissão. Depois de hesitar, MC começa: traíra a mulher (ouvem-se os
sinos pela primeira vez), traíra-se a si próprio (quantos católicos conseguirão
acusar-se deste pecado?), matara homens e ordenara a morte de outros, e até
mandara matar o seu próprio irmão. Aqui, MC chora. A cada hesitação, o cardeal
incentivara-o: “Go on, my son”.
Já em casa,
conta a boa nova à irmã: que se confessara. Perante a estranheza dela, diz-lhe:
“É que era um homem bom, um verdadeiro padre. Poderá mudar as coisas”.
Fui-me
recordando desta cena à medida que, ao longo dos meses, ia lendo sobre o “novo
estilo” do Papa Francisco. Não seria também ele dos poucos a conseguir que um
MC se confessasse, por ser um “homem bom”? Mas uma dúvida subsistia em mim,
como em muitos outros: sabendo-se que a Igreja argentina colaborara tanto com o
ditador Videla (e com os que se lhe seguiram) e que, na altura do golpe de
estado (1976), o agora Papa Francisco era Provincial dos Jesuítas, poderia ele
estar inocente quanto a um eventual colaboracionismo com um regime que, como
escreve o jornalista italiano Nello Scavo em A Lista de Bergoglio (2013), “teve
como consequência o desaparecimento de, pelo menos, 30 mil pessoas, a
apropriação de mais de 500 filhos[as] de condenados[as] à morte, a detenção de
milhares de activistas políticos, o exílio de aproximadamente dois milhões de
pessoas, além dos 19 mil fuzilados nas ruas”? Quanto à prisão e tortura de dois
jesuítas, antigos professores de Bergoglio (e um deles até fora seu director
espiritual), Franz Jalics (ainda vivo) e Orlando Yori, o que fizera o seu
Provincial por (ou contra) eles? Confesso que a leitura de Scavo me trouxe um
grande alívio e uma grande admiração pela atitude discreta mas firme do então
P. Jorge. Independentemente da posição religiosa de quem a ele recorria – e por
vezes, em vez de confiar apenas na oração, ajudava mesmo quem colocava
resistências a uma ajuda provinda de “padres” -, dir-se-ia que ajudou todos os
que pôde, escondendo-os nas instalações dos Jesuítas a pretexto da efectuação
de um retiro espiritual, conduzindo ele próprio o carro quando levava suspeitos
(mesmo que se tratasse de uma mulher), usando, nas cartas, linguagem críptica
para iludir a censura, recorrendo aos telefones de rua para evitar escutas,
tentando saber do paradeiro de desaparecidos e libertá-los, tecendo redes de
ajuda em que, como é costume nas organizações de resistência, uma pessoa se
limita a fazer um acto concreto, sem saber o antes e o depois. Admiro-lhe a
coragem, os nervos de aço, a perspicácia, a capacidade de acolhimento e de
ternura, a fé.
Scavo fala
“sobre a coragem daquelas noites sem receio da caça aos infractores. Sobre dias
passados entre o breviário e os postos de bloqueio, pensando em maneiras
de evitar os controlos, de despistar a polícia, de enganar os generais.
Para levar sãos e salvos, para lá da fronteira, os adolescentes destinados aos
matadouros clandestinos. [...] Talvez rezasse entre uma curva e a seguinte.” E
entre uma página e outra desta Lista notável, admiro também o desprendimento de
quem, basicamente, só dela falou vagamente em comissões de inquérito. Um “homem
bom”, que decerto conseguiria também despertar em MC o melhor de si mesmo.
Docente
aposentada da Universidade do Minho
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